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quinta-feira, abril 25, 2024

Especialista elogia Brasil por reconhecer mulheres vítimas de mutilação genital como refugiadas

De acordo com estimativas das Nações Unidas, 4,3 milhões de meninas correm o risco de sofrer mutilação genital feminina neste ano

O Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) aprovou o acolhimento de meninas e mulheres que tenham sido vítimas de mutilação genital feminina (MGF) na condição de refugiadas. A decisão vai ao encontro de medidas endossadas pelas Nações Unidas pela erradicação da prática e foi elogiada por especialistas.

Sheila de Carvalho, presidenta do Conare, afirma que a decisão, anunciada no último dia 20 de março, demonstra o compromisso do governo federal com toda e qualquer violência de gênero. “Estamos construindo um governo para todas as mulheres, todas independente de suas origens. Essa medida adotada pelo Conare reforça nosso compromisso de enfrentamento à violência de gênero em uma perspectiva global”, disse Carvalho.

No Brasil, a definição de refúgio segue o disposto na Lei nº 9.474, de 1997, segundo a qual será reconhecido como refugiado todo indivíduo que “devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país”.

A Lei inclui ainda os migrantes forçados devido à grave e generalizada violação de direitos humanos. O Conare entende que a prática de mutilação genital viola os direitos humanos, podendo ser enquadrada no artigo 1º, inciso III da Lei. Segundo o Comitê, trata-se de uma violação do direito à não discriminação com base no gênero, perpetuando a desigualdade entre homens e mulheres.

Especialistas comemoram decisão do Conare

Dulce de Queiroz Piacentini é assessora especial de Direitos Humanos para as Nações Unidas da Nova Zelândia e autora do livro Direitos Humanos e Interculturalismo: Análise da prática cultural da mutilação genital feminina. Para a pesquisadora, a decisão do Conare é uma grande vitória.

“O governo brasileiro dá um excelente exemplo – que se espera seja seguido – no espaço internacional. O Brasil já firmou compromisso inúmeras vezes com os direitos humanos, não só internamente, na nossa Constituição, como internacionalmente, através sobretudo dos diversos tratados internacionais de direitos humanos no âmbito das Nações Unidas. Assim, a resolução do Conare demonstra a vontade política do Brasil de avançar no respeito a esses direitos básicos que pertencem a todas as pessoas, estejam elas onde estiverem”, afirma Piacentini.

O Conare acrescenta que a prática é condenada por diversos tratados e convenções regionais e internacionais, e, além da violação com base no gênero, vaia contra o direito à vida (se o procedimento resultar em morte), o direito à saúde e o direito a estar livre de tortura, punição ou tratamento cruel, desumano ou degradante. Além disso, por ser praticada normalmente em meninas menores de 15 anos, é uma transgressão também aos direitos da criança.

A decisão se dá pouco após o lançamento do Programa de Aceleração de Políticas de Refúgio para Afrodescendentes pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), em janeiro deste ano. O Comitê considera a aprovação um marco na luta global contra violência de gênero e justiça racial, uma vez que a maioria das vítimas da mutilação genital feminina no mundo são mulheres negras.

Segundo a coordenadora de Elegibilidade, Amarílis Tavares, “a decisão é bastante inovadora entre os sistemas de refúgio do mundo, porque inaugura uma abordagem sistêmica que reconhece a condição de refugiadas de todo um grupo vulnerável que existe, infelizmente, em muitos países. É uma medida protetiva dos direitos humanos dessas mulheres e meninas, e uma sinalização importante contra a continuidade da prática”.

ONU quer acabar com a mutilação genital feminina até 2030. (Foto: UNICEF/Nesbitt).

Mutilação genital feminina no mundo

Informações da The Woman Stats Project apontam que a prática está concentrada em 30 países da África e do Oriente Médico, e em alguns países da América Latina, Leste Europeu, América do Norte, Austrália e Nova Zelândia onde vivem comunidades de migrantes.

Para esses grupos, trata-se de uma tradição que pode estar ligada a um  rito de passagem ou a crenças sobre castidade. “É indispensável esclarecer que o ritual não tem a ver, em princípio, com religião. Sua origem remonta a tempos anteriores ao surgimento da religião muçulmana. Aliás, a MGF não é perpetrada pela maioria dos muçulmanos, embora tenha adquirido uma conotação religiosa nos lugares em que são muçulmanas as que a praticam. Em países da África, a MGF é praticada tanto pelos animistas, pelos cristãos, pelos muçulmanos como pelos judeus etíopes”, explica Piacentini.

De acordo com as últimas estimativas do UNFPA, o Fundo de População das Nações Unidas, 4,3 milhões de meninas correm o risco de sofrer mutilação genital feminina neste ano. E a previsão é de que esse número chegue a 4,6 milhões até 2030. Além disso, existem mais de 200 milhões de sobreviventes.

Mutilação genital feminina é uma luta global

Em 2016, a UNFPA lançou, em parceria com o UNICEF, o programa Eliminação da Mutilação Genital Feminina: Cumprindo a Promessa Global, que trabalha para eliminar a mutilação genital feminina por meio de intervenções em 17 países onde a prática é prevalente. Nos últimos cinco anos, a ONU apoiou mais de 3.000 iniciativas e vem colhendo resultados. Recentemente o UNICEF realizou uma pesquisa na Etiópia, um dos países com as mais altas taxas de mutilação genital feminina no mundo. O relatório aponta que 87% dos homens do país se dizem contrários à prática.

Contudo, a UNFPA reconhece que ainda há muitos desafios para que se alcance o fim da prática. “A MGF viola os direitos de meninas e mulheres e limita as suas oportunidades de viverem uma vida com saúde, educação e dignidade. Os efeitos combinados dos conflitos, pobreza, alterações climáticas e desigualdade continuam a afetar os nossos esforços de eliminar, nos próximos oito anos, esta grave violação de direitos humanos. Por isso, é preciso alterar as relações de poder e a desigualdade de género em que esta prática se baseia”, explica a diretora do Escritório de Genebra da UNFPA, Mônica Ferro.

Piacentini defende que a prática só será erradicada se a decisão partir das próprias comunidades e, para isso, é preciso haver um diálogo que busque a conscientização. “A mudança, para ser efetiva, deve ocorrer de dentro (das comunidades, com auxílio de seus próprios líderes) para fora, e não de fora (por opinião ou imposição de outros países) para dentro. Com mais acesso à informação e um trabalho enorme de educação liderado por agências da ONU em parceria com diversas ONGs, hoje uma menina tem um terço a menos de chance de passar pela MGF quando comparado com 25 anos atrás. E já há milhões de mulheres que vivenciaram a prática e não querem que suas filhas passem por ela”, comenta a pesquisadora.

Traumas físicos e psicológicos

Sobrevivente da mutilação genital feminina, Waries Dirie tornou-se embaixadora da ONU para lutar contra a prática. Foto: The Desert Flower Foundation.

A mutilação genital feminina gera uma série de problemas não só no corpo, como na psiquê das vítimas. A remoção parcial ou total da genitália pode levar a infecções do trato urinário, problemas menstruais, dor, diminuição da satisfação sexual e complicações no parto; além de depressão, baixa autoestima e transtorno de estresse pós-traumático.

A modelo e ativista Waris Dirie nasceu na Somália e foi mutilada aos cinco anos de idade. Ela fugiu de casa quando tinha 13 anos, ao saber que seria obrigada a casar com um homem de 60. Waris migrou para a Inglaterra com a ajuda de uma tia e, aos dezoito anos, conheceu o fotógrafo Terence Donovan. Ele viu nela a beleza que Waris nunca tinha enxergado.

A jovem tornou-se uma modelo famosa e, posteriormente, passou a atuar junto à ONU em campanhas pela abolição da MGF. Em 1998, ela lançou a autobiografia Desert Flower (Flor do Deserto), que se tornou best-seller em todo o mundo e foi adaptada para o cinema em 2008. Na obra, Waris conta em detalhes como levou anos para entender a magnitude do que tinha lhe acontecido. “Sinto que Deus fez meu corpo perfeito do jeito que nasci. Então aquele homem me roubou, tirou meu poder e me deixou aleijada. Minha feminilidade foi roubada. Se Deus queria que essas partes do corpo desaparecessem, por que ele as criou?”, narra a ativista.

Waris se tornou líder de uma campanha internacional contra a mutilação genital e em 2002 fundou a Desert Flower Foundation (Fundação Flor do Deserto), que organiza diversas ações para erradicar a prática. “As pessoas acham que isso é ‘um problema das mulheres, em algum lugar da África’ e é exatamente por isso que as mutilações ainda acontecem. Se fosse com homens, não estaríamos sentados aqui discutindo. Mas é apenas mais um problema para as mulheres”, critica Dirie.

Desafios para países de acolhida à vítimas de mutilação genital

Conflito e deslocamentos forçados podem aumentar os riscos de violência. Foto: OMS/M Sethi.

A mutilação genital feminina tornou-se um desafio também para os países que recebem migrantes vítimas da prática – como pode ser o caso do Brasil após a decisão do Conare.

Na Europa, por exemplo, a organização  End FGM European Network (Rede Europeia para o fim da MGF) busca aproximar as comunidades às organizações da sociedade civil, construindo sinergias e cooperação com todos os atores relevantes para a questão.

A guineense Sona Fati, embaixadora da instituição em Portugal, fala da importância de se debater o tema para ampliar o número de pessoas engajadas. “Quanto mais formos, mais fácil e mais rapidamente conseguiremos vencer esta prática extremamente violenta contra a mulher. Contra o corpo da mulher. No entanto, não é um assunto unicamente da mulher. É um assunto da mulher, é um assunto do homem, é um assunto de todos nós enquanto sociedade. E todos nós somos necessários nessa luta”, declara a ativista.

Piacentini ressalta ainda a importância de entender a complexidade dessa questão antes de formarmos qualquer julgamento. “Embora possa ser difícil, nossa primeira postura tem que ser de respeito às comunidades que a praticam. Do contrário, qualquer iniciativa no combate à prática vai parecer um ato de imperialismo cultural. Por isso, no meu livro, proponho um diálogo intercultural, onde uma cultura possa aprender com a outra. Afinal a cultura é uma categoria dinâmica, que está sempre mudando, seja internamente ou no contato com outras culturas”, conclui a especialista. 

Com informações da ONU e do Ministério da Justiça

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