Por meio dessas redes extraoficiais, brasileiros e haitianos driblam a desconfiança que paira sobre ONGs acusadas de não entregar a ajuda prometida; ao mesmo tempo, pedem um novo olhar sobre o país
Por Rodrigo Borges Delfim
Com colaboração de Eva Bella e Fabio Ando Filho
O Haiti foi o país mais atingido pela passagem do furacão Matthew, no começo de outubro. O total de mortos passa de mil, os desabrigados são milhares, sem contar os prejuízos materiais. Tudo isso em um país que vive grandes contradições: tem o orgulho de ser a primeira nação negra independente no hemisfério ocidental, por meio de uma rebelião de escravos, enfrentando o poderio da França de Napoleão; mas sofre com instabilidades políticas e está sujeito a catástrofes ambientais. Fugindo desses dois fatores e em busca de uma vida melhor, milhares de haitianos tentam a sorte em outros países – e de lá, procuram ajudar, na medida do possível, os parentes e amigos que ficaram na terra natal.
Com os haitianos que vivem no Brasil não é diferente. Acompanham as notícias sobre o país, ficam apreensivos com estado de saúde dos entes queridos e pensam em formas de ajudar os que estão a milhares de quilômetros de distância. No entanto, a cobertura sobre o país que chega ao Brasil e as informações sobre meios disponíveis para ajuda geram desconfiança em muitos haitianos.
“Se eu disser que conheço uma organização que está mandando ajuda para o Haiti, eu estaria mentindo. Falo isso porque eu conheço os políticos de lá. Além da situação crítica do povo, muitas pessoas se aproveitam desse sofrimento para ficarem ricos. “Nem penso em mandar um real para lá porque nem acredito que vá chegar de fato a quem precisa, quase nada chegaria para o povo”, responde o haitiano Fenitho Duverna, que vive em São Paulo e acompanha pela internet as notícias sobre o Haiti. Seus parentes moram em uma área alta da capital, Porto Príncipe, que não foi atingida pelo furacão.
Residente em Porto Príncipe, a haitiana Rosena Rebecca Olivier lembra contatos que possui com haitianos que vivem no exterior e reclamam da atuação dessas ONGs. “Eles acham que as instituições tem que sair do país para deixar que os haitianos entre eles façam as distribuições, que não precisa de todas essas pessoas cheguem ao país. que só o dinheiro de uma passagem para o Haiti poderia salvar uma vida”, conta.
Redes informais e ação direta
Diante desse quadro, de que forma ajudar de fato as pessoas que estão no Haiti? A resposta pode estar em redes informais existentes dentro do próprio Haiti, como as acionadas por Rosena junto com o professor e pesquisador brasileiro Werner Garbers Elias Pereira, também residente na capital haitiana. Por meio dessas redes são mobilizados voluntários e recursos que ajudam a coletar as doações e a distribuí-las nos locais mais necessitados.
“As doações chegam com mais eficácia porque utilizam mais o conhecimento dos haitianos, que tem várias redes de solidariedade e colaborativismo que a comunidade internacional não sabe nem que existe ou mesmo ignora. Havia uma insatisfação com as formas tradicionais de ajuda. Por isso decidimos fazer isso que seria chamado de ação direta: quer dizer, todos voluntários, sem remuneração, sem grandes estruturas custosas, etc. É só botar gasolina nos carros – que até agora veio por doação também – e ir, sabe?”, explica Werner.
Um grupo foi criado no Facebook para divulgar os pedidos de doação, formas de colaborar e também para mostrar o que tem sido entregue e onde (clique aqui para acessar). Do Brasil, conta Werner, já chegaram cerca de R$ 2.500 que foram convertidos para gourde, a moeda haitiana. O dinheiro que chega é usado para comprar os mantimentos que são distribuídos nas áreas mais afetadas. No último final de semana, Werner e Rosena estiveram na região sul do Haiti, a mais afetada pelo furacão, entregando as doações, e fizeram um relato sobre a situação encontrada.
Werner explica que essas redes informais são comuns dentro do Haiti e ajudam a levar as doações a locais nos quais outras instituições não conseguem ou mesmo não tentam chegar. “As redes de colaboração do Haiti, dentro de sua sociedade, muitas vezes são assim mesmo, sem reconhecimento sem instituição. E não entender isso é um dos fatores que fazem a comunidade internacional não ser tão eficaz aqui e continuar trabalhando de outra forma”.
Durante a visita a Les Cayes, uma das áreas devastadas pelo furacão, Rosena reencontrou a avó, da qual não tinha notícia desde a tempestade. “Logo depois do furacão eu percebi que onde morava minha avó foi devastado também. Aí eu comecei a chorar, fiquei uma semana sem notícia dela. Então o Werner e eu decidimos ir lá visitá-la e passar em Petit-Goãve, outra região devastada que estava no caminho. Lá também distribuímos comida para algumas pessoas mais atingidas. Trabalho para ajudar familiar e amigos, e também as pessoas que eu não conheço, me sinto bem assim”, contou Rosena.
Por onde doar?
Doações em dinheiro podem ser feitas para a conta abaixo, no Brasil
titular:Patricia Elias Pereira
Banco do Brasil
Agência: 0813-3
conta: 6548-x poupança,
modalidade: 51
Um novo olhar sobre o Haiti
Haitianos e brasileiros envolvidos com o país enfatizam que o pós-furacão é mais um exemplo de que é necessário um novo olhar sobre o país caribenho, apesar de todas as dificuldades que atravessa atualmente e ao longo de sua história.
“O mais importante é ter alguma outra forma de relação e de ajudar o Haiti, pois estamos no paraíso das ONGs, para onde já veio e vem muito dinheiro em muitas ocasiões, mas que não chega ao seio da população. Precisamos repensar as formas, e conseguir criar formas de ajudá-los, inclusive a médio e longo prazo”, observa Werner.
O haitiano Dady Simon, que vive em São Paulo, se queixa da cobertura da mídia, que reforça estereótipos de pobreza sobre o Haiti e pouco ou nada fala sobre a história do país. “Precisamos ver o país de forma diferente. Ninguém gosta que sujem a bandeira de seu país. E na TV só aparecem coisas ruins sobre o país. Precisamos de pessoas que ajudem de verdade, com paixão, sem hipocrisia. A joia do Caribe [apelido que o Haiti recebeu quando ainda era a mais rica colônia francesa] precisa levantar do chão e se libertar. Mesmo diante da destruição, o país não perde sua beleza”.
Nas redes sociais, circula uma mensagem que atenta justamente para a necessidade desse novo olhar sobre o Haiti. Traduzida para o português, fica assim: “Querida mídia, se você insiste em começar todo artigo sobre o Haiti com ‘o país mais pobre do hemisfério ocidental’, acrescente respeitosamente ‘a primeira nação negra independente do hemisfério ocidental, primeira nação independente pós-colonial liderada por negros no mundo e única nação cuja independência foi fruto de uma rebelião bem sucedida de escravos'”.
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