Legislação conserva avanços, mas também se vê diante dos desafios trazidos pelas novas dinâmicas migratórias ao Brasil; elas requerem respostas transversais que envolvem governos, sociedade civil e os próprios refugiados
Por Carla Mustafa*
Em São Paulo (SP)
No dia 22 de julho de 1997 foi sancionada a Lei Federal nº 9.474/97 que trata sobre o tema do refúgio e estabelece direitos e deveres, procedimentos e implementação do Estatuto do Refugiado. Após 20 anos da promulgação, nova dinâmicas e fluxos migratórios surgiram, assim como os desafios de integrar estas pessoas à sociedade.
O refúgio é um instituto de proteção jurídica na esfera do direito internacional, como prevê a Convenção de 1951 relativa ao Estatuto dos Refugiados da Organização das Nações Unidas. Necessariamente é considerada como uma questão humanitária por haver temor de perseguição e possível dano à integridade física ou à vida de quem solicita e pelo contexto do fluxo migratório forçado (o que significa que diante de determinadas situações, a pessoa não tem outra alternativa a não ser deixar o país onde habita para sobreviver).
Cumpre salientar que dada a natureza jus cogens do refúgio, é garantido o princípio do non refoulement, ou seja, a pessoa em situação de refúgio não poderá ser devolvida ao país de onde foi forçada a sair, a partir do momento em que é feita a solicitação. Por vezes é o próprio Estado nacional quem viola os direitos fundamentais dos refugiados ou age de maneira omissa a coibir tais práticas, por esta razão a não devolução é determinante para efetiva proteção.
A Lei do Refúgio no Brasil
Em 1961, o Brasil promulgou a Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados com reservas (Decreto nº50.215/61). O Protocolo de 1967 sobre o Estatuto do Refugiado foi promulgado em 1972 (Decreto nº 70.946/72). Apenas em 1990 que a Convenção de 1951 foi ratificada sem reservas pelo Brasil (Decreto nº99.757/90). Outros instrumentos de proteção ao refugiado foram ratificados como a Declaração de Cartagena, a declaração de San José sobre refugiados e pessoas deslocadas e a convenção sobre o Estatuto dos Apátridas.
Em âmbito nacional, em 1997 foi sancionada a Lei Federal nº 9.747/97 que instituiu a natureza jurídica do refugiado, bem como a implementação da Convenção de 1951 e criação do Comitê Nacional para Refugiados (CONARE). Além do dispositivo legal, um conjunto com instruções normativas foi elaborado para garantir a vigência e eficácia desta lei.
O art. 1º da Lei de Refúgio define três hipóteses para reconhecimento da condição de refugiado:
1) fundado temor de perseguição em razão de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opinião política;
2) quem não possui nacionalidade e por temer perseguição não pode permanecer do país em que se encontra;
3) graves violações de direitos humanos. Esta proteção pode ser estendida aos familiares diretos (ascendentes, descendentes e cônjuges) e indiretos (necessita demonstrar dependência econômica).
Deste modo, são elementos essenciais para a solicitação de refúgio: fundado temor, perseguição, extraterritorialidade e princípio do non refoulement.
Como extraterritorialidade, tem-se que refúgio só poderá ser solicitado em país diferente da nacionalidade ou da residência do indivíduo. No Brasil, pode ser requerido a qualquer tempo da entrada em território nacional, sendo garantido o direito à identidade civil, carteira de trabalho e documento de viagem (art. 6º da Lei de Refúgio). O solicitante de refúgio (quem aguarda o reconhecimento da condição de refugiado) também, terá direito aos documentos de identidade e carteira de trabalho, válidos por 1 ano e renováveis até decisão definitiva.
O termo de solicitação de refúgio preenchido deverá ser entregue em alguma unidade da Polícia Federal que encaminhará ao CONARE, órgão responsável pela análise individual de cada pedido a ser realizada em Plenária. Este Comitê tem na sua formação órgãos ministeriais (Justiça, Relações Exteriores/Itamaraty,Trabalho, Saúde, Educação e Desporto), Polícia Federal, sociedade civil e ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados). Atualmente, o órgão dispõe de apenas 13 funcionários em seu efetivo para analisar todas as solicitações em todo território nacional.
Após o envio das informações pela Polícia Federal ao CONARE, haverá uma entrevista com um oficial de elegibilidade para verificar as informações que motivaram o pedido de refúgio, posteriormente é realizado o julgamento. Não há prazo estabelecido para que o órgão analise e julgue as solicitações e alguns casos é possível aguardar 3 anos para obter a resposta definitiva. Isto ocorre porque a estrutura criada pela lei em 1997 não acompanhou o crescente fluxo de refugiados, o que compromete a celeridade e eficácia das decisões. No ano de 2010, foram 966 solicitações de refúgio e 4.357 refugiados reconhecidos; em 2016 foram 9.552 pessoas, de 82 nacionalidades distintas, reconhecidas como refugiadas, segundo dados do CONARE.
A Lei de Refúgio garante a integração local (arts. 43 e 44) que consiste em mecanismos que facilitam e flexibilizam algumas questões relacionadas à documentação e educação (revalidação de diploma estrangeiro) em função da própria condição de refúgio. Nestes casos, não há a exigência de provas e documentos para o exercício de direitos ou cumprimento de deveres por ser uma situação extraordinária.
Destaca-se iniciativas adotadas por algumas Universidades que criaram um processo seletivo de acesso aos cursos de graduação e pós-graduação diferenciado à população em situação de refúgio. Infelizmente a questão da revalidação de diploma estrangeiro ainda é um ponto controverso, pois mesmo havendo a previsão legal, há ainda o custo da taxa administrativa para a análise que é variável entre as Universidades Públicas, de acordo com o princípio da autonomia.
Ademais, em alguns casos, para o exercício de determinadas profissões além do diploma revalidado, é necessário a anuência do órgão de classe. É o que ocorre principalmente com profissionais liberais como médicos, engenheiros, arquitetos e outros. No caso específico de advogados, há uma vedação expressa do exercício da advocacia por estrangeiros, podendo estes apenas atuar como consultores em direito estrangeiro e estando totalmente proibidos de postular em juízo ou consultoria em temas de direito brasileiro (Provimento No. 91/2000 do Conselho Federal da OAB).
Avanços e entraves
Se por um lado a Lei de Refúgio é benéfica ao garantir a permanência regular e acesso à documentação, por outro lado alguns obstáculos são enfrentados no processo de integração, sobretudo dos solicitantes de refúgio que por estarem em situação provisória. Algumas barreiras de ordem social, cultural e até mesmo jurídica podem dificultar a adaptação e reintegração destas pessoas à sociedade. Somente a lei de refúgio é insuficiente para garantir a proteção necessária, de modo que a falta de implementação de políticas públicas que viabilizem o acolhimento dos refugiados ainda é um desafio.
Com a Constituição Federal de 1988 e a descentralização política-administrativa do Brasil, a gestão de políticas públicas para refugiados é delegada ao Estado e ao Município, que de meros executores de diretrizes centralizadas pela União, tornam-se fomentadores de iniciativas a partir da localidade e com viés de governança compartilhada entre governo, sociedade civil e comunidade internacional para superar obstáculos jurídicos, políticos, estruturais, institucionais, sociais e culturais que estas pessoas enfrentam.
No âmbito do Município de São Paulo, em 2013 houve a criação da Coordenação de Políticas para Imigrantes (CPMig) que compõe a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania e atua de maneira transversal, intersetorial e intersecretarial. A cidade é ainda um polo atrativo para migrantes e refugiados que buscam acolhida e continuidade do curso de suas vidas.
Nesse sentido, no ano seguinte foi inaugurado o CRAI (Centro de Referência e Atendimento do Imigrante) como um espaço de acolhimento humanitário e especializado nas singularidades que o contexto da migração voluntária ou involuntária trazem. Neste equipamento municipal, há atendimento psicológico, jurídico e social independentemente da situação migratória e documental. Ainda em 2014, pela primeira vez migrantes e refugiados puderam compor o Conselho Municipal Participativo, como cidadãos atuantes na agenda pública municipal.
Em 2016, após um processo de ampla participação da sociedade civil e do protagonismo dos migrantes e refugiados, foi sancionada a Lei Municipal nº 16.478/16 que trata da Política Municipal específica para esta população. Formou-se um comitê intersetorial com 13 integrantes do Poder Público e 13 integrantes da sociedade civil para debater sobre diversos temas como: trabalho, educação, saúde, moradia, assistência social, cultura, lazer, esportes e participação social, combate à xenofobia e toda forma de discriminação.
Entre as medidas propostas, tem-se: não criminalização da situação imigratória, acesso igualitário a serviços públicos, universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos dos imigrantes, atendimento qualificado à população migrantes com sensibilização de agentes públicos, assistência social, acesso à saúde respeitando a diversidade, inclusão no mercado de Trabalho, fomento ao Empreendedorismo, acesso à educação para todas crianças, adolescentes, jovens e adultos, políticas habitacionais, utilização do espaço e equipamentos públicos para cultura, lazer e esportes.
O Comitê Estadual para Refugiados foi criado pelo Estado de São Paulo em 2007 por meio do Decreto nº 52.349/07, como órgão pertencente à Secretaria de Justiça e Cidadania. É composto por Secretarias de Estado (Casa Civil, Saúde, Educação, Economia e Planejamento, Habitação, Emprego e Relações de Trabalho, Assistência e Desenvolvimento Social, Relações Institucionais, Cultura e Segurança Pública) e sociedade civil representada organizações não governamentais voltadas a atividades de assistência e proteção a refugiados no Estado e no País.
Entre as atribuições, está a construção de políticas de assistência, inclusão social e garantia de direitos humanos e elaboração do Plano Estadual de Acolhida e Assistência ao Refugiado. O Projeto de Lei nº1313/15 que institui o Programa Estadual de Acolhimento de Refugiados no Estado do São Paulo está em tramitação na Assembleia Legislativa.
Além disso, o governo estadual, desde 2014, mantém a Casa de Passagem Terra Nova que oferece acolhida e atendimento multidisciplinar (atividades pedagógicas, orientação jurídica, assistência social e psicológica, aulas de português) à população migrante e refugiada, preferencialmente àqueles em situação de maior vulnerabilidade como famílias, mulheres grávidas ou com crianças, idosos, pessoas com problemas de saúde e/ou deficiência, vítimas de tráfico de pessoas e/ou trabalho análogo a escravo). Enfatiza-se o envolvimento do refugiado no processo de integração, já que uma equipe elabora um plano de metas a serem cumpridas e redução de danos de acordo com as demandas trazidas por eles.
Há também a criação do Centro de Integração da Cidadania do Imigrante – CIC Imigrante que oferece atendimento jurídico gratuito, cursos de idiomas e profissionalizantes e atendimento ao trabalhador. Os atendentes são migrantes e refugiados, bem como brasileiros que dominam outros idiomas para facilitar a comunicação.
No Brasil, há a instalação de Comitês Estaduais para população migrante e refugiada no Paraná, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e Mato Grosso do Sul. Ainda que seja de maneira gradual, o tema do refúgio está cada vez mais presente na agenda pública, promovendo diálogo entre governo e sociedade civil.
À União, cabe a elaboração da Política Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia, sendo que o CNIg (Conselho Nacional de Imigração) apresentou uma minuta, mas ainda dependente de regulamentação pelo Poder Executivo Federal como prevê o art. 120 da Lei 13445/17 (Nova Lei de Migração). Além disso, é o governo federal que tem competência para fazer as tratativas internacionais em relação ao refúgio com outros Estados e Organizações Internacionais. Em âmbito interno, é responsável pela implementação da Lei de Refúgio, Nova Lei de Migração e resoluções normativas do CONARE e CNIg.
Além dos governos
A sociedade civil tem papel importante na questão dos refugiados, pois não raras vezes acaba assumindo a função do Estado em determinados aspectos. Nesse sentido, algumas entidades do terceiro setor propiciam a integração e acolhida humanitária de pessoas em situação de refúgio. Há também ações realizadas individualmente sem qualquer vínculo com alguma instituição e empresas que se sensibilizam com a causa.
Outro ponto importante é a participação da própria comunidade migrante e refugiada acolhendo seus pares, já que o vínculo e empatia se estabelecem de maneira natural devido às condições inerentes à migração e processo de integração. Há associações de diversas nacionalidades que apoiam e compartilham sua vivência sob a ótica do refugiado com orientações práticas relativas ao cotidiano e minimizando os obstáculos a serem superados.
Destaca-se que o protagonismo dos imigrantes como sujeitos de direitos é primordial para efetividade de seus direitos e interesses, em oposição à visão vitimizada, assistencialista e mero expectador que se tende a ser vinculada aos migrantes e refugiados. Em razão disso que o refugiado deve ser foco das ações, participando ativamente dos processos decisórios e contribuindo com sua vivência. O refúgio não pode e nem deve ser um estigma que homogeniza a situação de todos que solicitam esta proteção, ao contrário, deve-se entender o indivíduo com toda sua potencialidade e singularidade.
Os marcos jurídicos são mecanismos fundamentais para a proteção e devem implementados por políticas públicas para garantir sua eficácia em todo o processo que envolve as questões migratórias: desde a acolhida até a integração eficiente das pessoas em situação de refúgio. Sob o prisma dos direitos humanos, é possível instituir diretrizes que garantam os direitos e bem estar dos refugiados, considerando-se principalmente que a migração é um elemento de desenvolvimento humano, pois contribui em diversos aspectos: culturais, sociais, econômicos, laborais, entre outros.
A necessidade da convergência
Os desafios dos fluxos migratórios e a resposta dada pelo poder público devem necessariamente ter uma perspectiva transversal, multidisciplinar e inclusiva, sobretudo analisando critérios de equidade para se alcançar um resultado efetivo. Apenas considerar o princípio da igualdade entre migrantes e nacionais não é suficiente para nortear políticas públicas, é preciso que ações sejam planejadas embasadas em elementos de igualdade e justiça social de acordo com a individualidade e situações específicas. Não se trata somente de determinar a entrada e saída de migrantes em território nacional, mas também criar mecanismos que possibilitem e facilitem a permanência e integração destas pessoas à sociedade.
A mobilização e participação de diversos atores faz com que a questão dos refugiados seja uma responsabilidade compartilhada por todos que defendem os princípios e direitos fundamentais, sobretudo a dignidade humana. É necessária uma convergência de propósitos assumidos em todas as esferas (governo e sociedade civil) para que cumpramos o dever moral, social e jurídico de acolher refugiados com intuito de construir uma sociedade mais livre, justa e solidária como prevê a Constituição Federal.
Carla Mustafa é advogada, Membro da Comissão de Relações Internacionais da OAB/SP, especialista em Direito Penal e Processual Penal e Direitos Difusos e Coletivos pela Escola Paulista de Direito.
Referências:
ACNUR. Manual de Procedimentos e Critérios a Aplicar para Determinar o Estatuto do Refugiados – de acordo com a Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967 relativos ao ACNUR. Nota de orientação sobre extradição e proteção internacional de refugiados. Genebra, 2008. Disponível em: <http://www.acnur.org/t3/fileadmin/Documentos/portugues/BD_Legal/Documentos%20Acnur/Diretrizes%20e%20pol%EDticas%20do%20ACNUR/Extradi%E7%E3o/Nota_orienta%E7%E3o_extradi%E7%E3o_refugiados.pdf> Acesso em: 02 de junho de 2017.
ACNUR. Dados sobre refúgio no Brasil. Disponível em http://www.acnur.org/portugues/recursos/estatisticas/dados-sobre-refugio-no-brasil/. Acesso em 17 de julho de 2017.
BRASIL. Lei n. 9.474, de 22 de julho de 1997. Disponível em: <www.planalto.gov.br>. Acesso em 02 de junho de 2017.
JUBILUT, Liliana Lyra. O Direito Internacional dos Refugiados e a sua aplicação no Ordenamento Jurídico Brasileiro. São Paulo: Metodo, 2007 Disponível em http://www.acnur.org/t3/fileadmin/Documentos/portugues/Publicacoes/2013/O_Direito_Internacional_dos_Refugiados.pdf. Acesso em 02 de junho de 2017
ONU. ACNUR. Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados. 1951. Disponível em http://www.acnur.org/fileadmin/scripts/doc.php?file=fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados. Acesso em 02 de junho de 2017.