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quinta-feira, novembro 21, 2024

Inconstitucional, Estatuto do Estrangeiro continua cerceando imigrantes e negando cidadania

Por Rodrigo Borges Delfim

A mudança na legislação migratória é uma bandeira antiga dos imigrantes e da sociedade civil organizada em torno da temática dos migrantes no Brasil. E acontecimentos recentes mostraram o quanto essa mudança é necessária para garantir cidadania aos não-brasileiros que compõem a sociedade brasileira.

Herança da ditadura militar e em vigor desde 1980, o chamado Estatuto do Estrangeiro enxerga o imigrante como uma questão de segurança nacional e uma potencial ameaça ao país. Ela é anterior à Constituição Federal de 1988, e como vai contra o espírito da Carta Magna, tem boa parte de seus artigos considerados inconstitucionais desde então. Mesmo assim, essa legislação migratória continua em vigor e regula tanto a permanência como o ingresso de estrangeiros no país.

Na Marcha dos Imigrantes de 2015, cartazes pedem fim do Estatuto do Estrangeiro. Crédito: Rodrigo Borges Delfim/MigraMundo
Na Marcha dos Imigrantes de 2015, cartazes pedem fim do Estatuto do Estrangeiro.
Crédito: Rodrigo Borges Delfim/MigraMundo

“É preciso grande cautela em relação à sua aplicação [o Estatuto]. A Constituição Federal de 1988 estabelece a igualdade entre nacionais e não nacionais, com a exclusiva exceção dos direitos políticos, o que também está em discussão a exemplo da PEC 347/2013 [que institui o direito ao voto para o imigrante, mas está parada no Congresso Nacional]. Dessa forma, qualquer norma que negue direitos por questão de nacionalidade colide com a Constituição Federal e assume um caráter inconstitucional. Aliás, esse é o entendimento de que a mobilidade humana internacional, como fato social, não representa tema de segurança nacional, mas sim de direitos humanos. Disso tudo, verifica-se a urgência de aprovação do novo marco legal para as migrações no Brasil que revogue integralmente o Estatuto do Estrangeiro”, analisa Giuliana Redin, professora do Departamento de Direito e da Pós-Graduação em Direito da UFSM (Universidade Federal de Santa Maria).

O Estatuto era considerado até “esquecido” por certos atores e instituições ligadas à temática migratória por supostamente “não ser mais aplicado”. Mas ele foi invocado e aplicado em pelo menos dois grandes acontecimentos nos últimos meses, ambos relacionados ao artigo 107  do Estatuto, que proíbe a participação de imigrantes em atividades políticas – proibição que não encontra respaldo na Constituição Federal atual.

A primeira delas foi a intimação para depor da professora italiana Maria Rosaria Berbato, da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Em 7 de abril passado ela foi intimada a depor na Polícia Federal de Belo Horizonte por conta da participação em debates e eventos sobre a crise política atual no país. A outra foi a carta aberta publicada em 15 de abril pela Fenapef (Federação Nacional dos Policiais Federais), a partir dos boatos de que imigrantes da Bolívia, Paraguai e Venezuela estariam “invadindo” o Brasil para engrossar os atos em apoio à agora presidente afastada, Dilma Rousseff. Os boatos foram desmentidos, mas tiveram repercussão em grandes meios de comunicação do país, especialmente após a carta da Fenapef invocar o artigo 107 do Estatuto.

Os bolivianos que estavam nos ônibus parados na GO-060, na verdade, vieram a Goiânia para evento do Grupo Sion, do ramo imobiliário. Crédito: PRF-GO
Os bolivianos que estavam nos ônibus parados na GO-060, na verdade, vieram a Goiânia para evento do Grupo Sion, do ramo imobiliário. Crédito: PRF-GO

“A instrumentalização de sanções como deportação e expulsão tal como previsto nessa legislação também pode ser considerada inconstitucional na medida em que inexiste o direito fundamental ao devido processo legal e são aplicadas a partir do poder discricionário, sem fato tipificado. Eventual invocação de dispositivos inconstitucionais dessa natureza implicaria em uma política de medo e de constrangimento ao exercício e reivindicação de outros direitos, o que é gravíssimo na perspectiva do Estado Democrático de Direito, sobretudo nesse momento histórico de crise política. Para que não sejam estabelecidas arbitrariedades em razão de uma legislação autoritária ainda vigente, pelo seu mau uso ou interpretação equivocada, é fundamental que essa legislação seja definitivamente revogada”, lembra Giuliana.

Reações

A sociedade civil organizada tem reagido contra as invocações recentes do Estatuto do Estrangeiro com debates e outras manifestações públicas. Uma delas aconteceu no último dia 6 de maio, em evento prévio do VII FSMM (Fórum Social Mundial de Migrações), que lembrou que a manutenção do Estatuto é uma das responsáveis pela fragilidade social vivenciada pelos imigrantes no Brasil.

Também tem sido divulgadas notas públicas e até mesmo estudos mostrando a defasagem do Estatuto do Estrangeiro em um contexto federal e até internacional. O ITTC (Instituto Terra, Trabalho e Cidadania) divulgou um documento intitulado “Nota técnica: Constituição e tratados garantem o direito à participação política e sindical às pessoas migrantes no Brasil”.

“Diversos autores apontaram que, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Estatuto em questão mantém artigos que não podem ser aplicados, como por exemplo os que limitam o acesso a direitos básicos como educação, saúde e moradia”, cita o documento, que lembra ainda tratados internacionais assinados pelo Brasil e que vão contra a legislação migratória ainda vigente. É mais um elemento que ajuda a reforçar a necessidade de mudança do marco legal das migrações no país.

As pressões já produziram pelo menos um efeito prático. A Comissão de Direitos Humanos do Senado aprovou uma audiência pública dentro do grupo para discutir “as tentativas de coibir a participação política de cidadãos estrangeiros no Brasil”. Mesmo ainda sem uma data definida, a aprovação da reunião já é considerada um avanço.

“Essa audiência é politicamente importante. Está na hora de pressionar a comissão especial da Câmara a examinar o novo projeto de lei”, ressalta a professora Bela Feldman-Bianco, professora colaboradora do programa de pós-graduação em antropologia social da Unicamp. Ela ainda é representante da ABA, a Associação Brasileia de Antropologia, que tem se posicionado com veemência contra as invocações recentes do Estatuto do Estrangeiro.

Projetos em pauta

O histórico de propostas para mudar o marco legal das migrações no Brasil remontam ao começo dos anos 1990, mas nenhuma delas conseguiu reunir forças a ponto de ser aprovada. Um dos projetos que chegou mais longe é o PL 2516/2015, que atualmente está na fila de pautas da Câmara dos Deputados.

O PL tem como base um projeto no Senado, o PLS 288/2013, de autoria do senador Aloysio Nunes (PSDB-SP). A esse projeto foram agregadas sugestões feitas no Anteprojeto de Lei de Migrações, criado por uma comissão de especialistas nomeada pelo Ministério da Justiça entre 2013 e 2014 e que foi alvo de diversas audiências públicas nesse período. Já aprovado em comissões do Senado, o PLS foi direto para a Câmara, onde virou o PL 2516/2015 e agora depende de apreciação por parte dos deputados para ser aprovado ou retornar ao Senado – se isso acontecer, o projeto terá de ser votado em plenário pelos parlamentares.

A comissão que analisa o projeto desde que chegou à Casa, em agosto de 2015, é presidida pela deputada Bruna Furlan (PSDB-SP) e tem como relator o deputado Orlando Silva (PC do B-SP). “Entendemos que os migrantes podem nos ajudar. E gostamos de acolher aqueles que escolhem o Brasil para viver”, disse Bruna, durante encontro em Brasília com entidades da rede de proteção a migrantes, em outubro passado. “A Lei do Senado rompe parâmetros e avançou, mas é sempre possível avançar mais um pouco”, reforçou Silva no mesmo evento.

Orlando Silva e Bruna Furlan (2º e 3º, da esquerda para a direita), durante evento das redes de proteção para imigrantes. Crédito: Rodrigo Borges Delfim/MigraMundo (out.2015)
Orlando Silva e Bruna Furlan (2º e 3º, da esquerda para a direita), durante evento das redes de proteção para imigrantes.
Crédito: Rodrigo Borges Delfim/MigraMundo (out.2015)

O PL tinha o mês de novembro de 2015 como previsão inicial de votação em plenário, mas acabou deixado de lado em parte por conta da crise política, mas também por divisões em meio à sociedade civil organizada sobre o projeto. Ainda pairam dúvidas e receios sobre como ficaria a divisão de atribuições com a mudança – a concentração de poderes na Polícia Federal e a presença ou não de uma entidade civil como autoridade nacional migratória estão entre as principais questões. Já aconteceram outras audiências em torno do PL este ano, mas em um ritmo bem menor do que no fim do ano passado.

E no fim de maio, o projeto na Câmara teve o acréscimo do PL 5293/2016, de autoria do deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ), que foi apensado ao PL 2516/2015 e “define a situação jurídica do estrangeiro no Brasil, cria o Conselho Nacional de Imigração, e dá outras providências”. O histórico da tramitação do projeto pode ser consultado aqui.

“Infelizmente nós não conseguimos revogar o Estatuto nos últimos anos. Na hora que estávamos fortes e tínhamos condições de fazer, as forças se dividiram por conta de interesses próprios. Não adianta contemplar interesses pontuais e deixar uma estrutura que, no todo, depõe contra nós. Não fizemos o avanço no momento que deveria ter sido feito e a situação atual não nos ajuda. Vamos acompanhar o que vai acontecer com atenção para sabermos como agir”, refletiu a professora Deisy Ventura, do Instituto de Relações Internacionais da USP e que integrou a comissão de especialistas que elaboraram o Anteprojeto, durante o evento pré-FSMM em maio.

Com esse atraso, existe o temor de que o PL acabe obsoleto antes mesmo de ser aprovado – e com isso, que o Estatuto do Estrangeiro ganhe nova sobrevida e continue a gerar situações de insegurança jurídica e social para imigrantes no Brasil.

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