As populações migrantes no Brasil são pioneiras e tem como objetivo construir um legado as próximas gerações, ainda que não possam ver os resultados dessa mobilização em vida. Além disso, a Comigrar (Conferência Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia) representa uma oportunidade única de mobilização e incidência política que precisa ir além do evento em si, de modo a colaborar para esse fim.
Foi o que defendeu Esdras Hector, especialista em Cooperação Internacional e Políticas Públicas e residente no Brasil desde 2011. As declarações foram feitas durante uma live promovida pelo IPPMig (Instituto de Políticas Públicas Migratórias) e pelo MigraMundo na última terça (2) que teve como objetivo debater o que se pode esperar da próxima Comigrar. Esdras participou da primeira edição, em 2014, e está envolvido na construção da segunda, que acontece no próximo mês de junho (dias 7, 8 e 9) em Foz do Iguaçu (PR).
A transmissão completa está disponível no canal do IPPMig no YouTube e pode ser vista também pelo player abaixo. A live foi conduzida por Isabella Traub, advogada e fundadora do Instituto, e Rodrigo Borges Delfim, fundador e editor do MigraMundo.
Participação na Comigrar 1 e expectativas para a próxima
A trajetória de Esdras no Brasil ajuda a ilustrar a história recente das migrações no Brasil. Ele atuou como voluntário em favor dos haitianos que chegavam ao Acre no começo da década de 2010, quando ocorreu o ápice desse movimento migratório.
Essa participação o levou a ser convidado a participar da primeira Comigrar, em 2014, como observador. Segundo ele, a conferência de 2014 ajudou a nacionalizar e visibilizar a questão haitiana.
O pesquisador haitiano lembrou, no entanto, que uma série de questões levantadas durante a primeira Comigrar seguem sem um direcionamento claro por parte do poder público de modo geral. Entre elas estão: a questão do visto humanitário, que permanece como um ato do Poder Executivo e sem um critério claro para concessão; a existência de mediadores culturais para facilitar o atendimento a imigrantes em instituições públicas, como a Polícia Federal; o reconhecimento de diplomas obtidos no exterior e outras.
Vale lembrar que a Comigrar é um processo consultivo, que visa colher contribuições dos imigrantes e da sociedade civil para elaboração de uma futura Política Nacional migratória, um dos pontos que seeguem pendentes da Lei de Migração, em vigor desde o final de 2017. Pensando nesse aspecto, Esdras Hector aponta que a expectativa em torno da nova Comigrar está muito alta e isso pode gerar um certo sentimento de frustração caso esse caráter do evento não seja bem entendido.
No entanto, o pesquisador crê os imigrantes que estão no Brasil hoje são como pioneiros que podem e devem colaborar para que portas sejam abertas no sentido de ajudar a fomentar uma sociedade mais justa, inclusiva e aberta ao outro. E cita a própria experiência no país como exemplo.
“Acredito que nós imigrantes devemos mostrar que somos pioneiros, que vamos abrir portas. Podemos não ver os resultados [das mobilizações], ainda vivenciar as dificuldades, mas precisamos agir para que nossos filhos e netos tenham um ambiente melhor. Talvez falte um pouco de maturidade para entender o processo político. Eu mesmo me frustrei em alguns momentos nesse processo, mas foi importante para o meu aprendizado”.
Comigrar como oportunidade para mobilização
Durante a live com o MigraMundo e IPPMig, Esdras Hector também sentiu que ocorreu um enfraquecimento da mobilização tanto dos migrantes quanto da sociedade civil especialmente após a aprovação da Lei de Migração, em 2017.
“Depois que a Lei de Migração foi aprovada, houve uma diminuição do engajamento, talvez por um desagaste do processo como um todo. Negociar com o Congresso não é fácil. Espero que a segunda Comigrar ajude a retomar e reaquecer essa demanda”.
O pesquisador haitianos prosseguiu. “Agora temos um governo que traz a pauta migratória e é preciso aproveitar esse momento. Creio que esse ânimo voltou do ano passado pra cá, quando começou a se falar da Comigrar. Estamos percebendo mais engajamento. Tem ocorrido mobilização de fato dos migrantes e da sociedade civil. E temos de aproveitar esse momento para elaborar uma proposta que ficará para as próximas gerações”.
Barreiras na comunicação e tempo curto
Durante a live, expectadores citaram que há muitos imigrantes que sequer sabem da existência da Comigrar. Tanto Esdras quanto os participantes do MigraMundo e do IPPMig citaram que há um desafio a ser enfrentado pelo poder público e pela sociedade civil, que é o de fazer com que as informações destinadas ao público migrante de fato cheguem até ele.
“O público migrante que recebe a comunicação está mais próximo da sociedade civil, a maioria está dentro de uma bolha. Alguns sequer têm momentos de lazer, estão apenas focados no trabalho. Pensamos pensar em novas estratégias para chegar nesses migrantes. Acredito que a partir da Comigrar pode ser feito um diálogo realista com os migrantes”, afirmou o pesquisador haitiano.
Outro desafio citado durante a live é o tempo curto para sintetização das propostas advindas das conferências prévias. Haverá pouco mais de um mês entre a última etapa prévia, prevista para 30 de abril, e o primeiro dia da Comigrar nacional, em 7 de junho.
“O tempo é curto e não sei como a equipe do Ministério da Justiça vai mesclar e atender tanta demanda. Creio que isso mostra hoje a intensidade e o envolvimento dos migrantes e da sociedade civil organizada para os problemas que existem e da importância de se pensar em soluções”, comentou Esdras.
De acordo com Ministério da Justiça, foram cadastradas um total de 132 conferências preparatórias, que contemplam 22 estados e três localidades no exterior. Só a segunda quinzena de março concentrou 45 dessas etapas.