Por Mariana Corrêa*
O caso de Moïse, um refugiado congolês de 24 anos brutalmente assassinado no Rio de Janeiro no último dia 24 de janeiro, escancarou a xenofobia e o racismo estrutural no Brasil. O país, conhecido internacionalmente por sua calorosa receptividade, mostrou que seu acolhimento é seletivo. Os refugiados, negros e africanos são vítimas de preconceito e violência.
Em 2011, Moïse chegou aos 13 anos com dois irmãos no Rio de Janeiro, posteriormente, sua mãe também veio. Eles fugiram dos conflitos armados presentes na República Democrática do Congo (RDC) e buscaram no Brasil uma oportunidade de viver em paz. Moïse cresceu e estudou no Rio de Janeiro, seus amigos eram brasileiros e trabalhava informalmente em um quiosque na praia da Barra da Tijuca.
No dia do seu assassinato, ele havia ido cobrar por duas diárias atrasadas quando foi agredido por pessoas conhecidas do dono do quiosque. Moïse foi amarrado em um poste e violentado com socos, chutes e golpes com um taco de beisebol até a morte. A comunidade congolesa se mobilizou para denunciar o caso nas redes sociais e na grande mídia e só assim os assassinos foram presos. No entanto, o caso ainda não está concluído.
Contexto da República Democrática do Congo
Os conflitos na RDC tiveram origem principalmente no período colonial, quando o governo belga privilegiou determinados grupos étnicos. Deram poder e direito à terra a uns em detrimento de outros, mas reverteram esse privilégio quando lhe convinha. No entanto, mesmo com o fim da era colonial, as disputas por espaço e poder permaneceram com grupos se organizando em grupos étnicos. Houve um longo período da ditadura do presidente Mobutu (1965-1997), que perpetuou a política colonial de favorecer determinados grupos étnicos e alterar o privilégio de acordo com seus interesses políticos. No entanto, a intensificação dos conflitos e a organização dos grupos étnicos mudaram após o genocídio em Ruanda e a partida de refugiados ruandeses para o Congo.
A RDC é localizada na região dos grandes lagos na África Central. A região leste do país há presença de inúmeros grupos armados os quais tem como principal objetivo o domínio da terra. Os conflitos no país se originaram, principalmente, no período colonial quando o governo belga privilegiou determinadas etnias. A política consistia em ceder poder e direito à posse de terra a uns em detrimento de outros, porém inverter esse privilégio quando lhe convinha. No entanto, mesmo com o fim da era colonial, as disputas pelo espaço e poder permaneceram com os grupos se organizando em etnias. Houve um longo período de ditadura do presidente Mobutu (1965-1997), quem perpetuou a política colonial de privilegiar determinadas etnias e reverter o privilégio de acordo com os seus interesses políticos.
Contudo, a intensificação dos conflitos e a própria organização de etnias se transformou, após o genocídio de Ruanda e a ida dos refugiados ruandeses para o congo. Os Hutus e Tutsis que eram unidos na RDC – na época, chamado Zaire – passaram a se tornar inimigos e, muitas vezes, se uniram com outras etnias. Nesse contexto, eclodiu as duas guerras do Congo (1996-2003), sendo a segunda (1998-2003) conhecida como Guerra Mundial Africana por envolver oito nações. No entanto, mesmo com o fim da guerra e com duas trocas de presidente, primeiro o pai Laurent Kabila e depois o filho Joseph Kabila, os conflitos na região permaneceram. Além disso, houve surgimento de novos grupos armados, que, frequentemente, não seguiam mais a lógica étnica.
Esses grupos atuam, principalmente, contra as populações, praticando pilhagem, recrutamento forçado, sequestro, tortura, estupro e assassinato. Durante os ataques, os moradores fogem, muitas vezes, apenas com a roupa do corpo e, frequentemente, vão para os países fronteiriços. Contudo, a maioria desses Estados, também, não é seguro, pois em alguns, como Ruanda, Uganda e Burundi, há presença dos mesmos grupos armados que atacam os congoleses na RDC. Ainda, em outros países vizinhos, como República Centro-Africana e Sudão do Sul, há guerras internas. No entanto, sair da região é extremamente difícil, logo a maioria dos congoleses permanece nos países vizinhos e apenas poucos conseguem ir para países mais distantes como o Brasil.
Ademais, há também grande tensão política na Capital, Kinshasa. Os governantes perseguem seus opositores políticos, havendo prisões arbitrárias, agressão, tortura e assassinatos. Esta é outra razão para a solicitação do refúgio, a perseguição política. Atualmente, há cerca de 1 milhão de refugiados da RDC no mundo.
Congoleses no Brasil
No Brasil, entre 2011 e 2020, os congoleses foram a terceira nacionalidade com maior número de refugiados reconhecidos, 1050 indivíduos, e o número total de residentes registrado é 2015. No entanto, de acordo com a OBMigra, pode haver mais de mil congoleses ainda não registrados. A maioria deles estão no Estado do Rio de Janeiro e em São Paulo, vivendo majoritariamente em comunidades e regiões mais pobres afastadas do centro.
A lei de refúgio brasileira é considerada muito avançada, porém as políticas públicas para o acolhimento e integração dos refugiados são muito escassas. No Rio de Janeiro, por exemplo, não há abrigos exclusivos para essa população[1]. São as organizações não-governamentais que costumam encontrar moradia para essas pessoas, muitas vezes em igrejas. No caso dos nacionais da RDC, os recém-chegados costumam receber apoio da comunidade congolesa – relativamente grande e antiga. O auxílio financeiro que recebem do governo brasileiro[2] é insuficiente até mesmo para pagar o aluguel nas regiões mais periféricas. Os solicitantes de refúgio costumam receber assistência econômica de organizações não-governamentais em seus primeiros meses no país, porém quando esta cessa, raramente, já estão inseridos no mercado de trabalho. A principal dificuldade em conseguir um emprego é o domínio do português, que necessita de pelo menos alguns meses de estudo. Aulas gratuitas também são oferecidas apenas pela sociedade civil. A maioria dos refugiados se inserem no mercado informal, apesar de terem direito legal ao mercado formal desde a solicitação de refúgio. Dificilmente, eles conseguem trabalhar em suas profissões de origem, mesmo quem possui diploma de nível superior. Além disso, frequentemente, os empregadores se aproveitam do desconhecimento da lei brasileira para explorar os refugiados, existindo casos de trabalhos análogos a escravidão. Também, há empregadores que pagam salários muito inferiores aos pagos a funcionários brasileiros.
As dificuldades experienciadas no Brasil vão muito além da ausência de políticas públicas. A população brasileira, considerada tão acolhedora, se mostra ao avesso quando o migrante não é proveniente do Norte global. Se observa um comportamento que remonta a herança de um país colonial escravista, onde o europeu era exaltado, um exemplo a ser seguido, enquanto o africano era considerado inferior, destinado ao trabalho braçal e escravizado. Infelizmente, hoje, os negros permanecem à margem da sociedade e enfrentam o racismo estrutural, por vezes velado e travestido de meritocracia, outras vezes escancarado traduzido em números de assassinatos. Enquanto, a migração realça ainda mais esse passado colonial, os europeus e os norte-americanos são muito bem recebidos e, até mesmo, enaltecidos, enquanto os africanos fazem parte do grupo dos indesejados. A xenofobia também se estende a outras nacionalidades do Sul Global, incluindo os vizinhos da América do Sul. No entanto, alguns autores rejeitam a ideia de xenofobia e defendem a existência da aporofobia, já que o preconceito é destinado aos migrantes pobres. No caso dos refugiados, o estigma é ainda maior pela sua condição, tanto que muitos solicitaram a retirada da palavra “refugiado” do cartão de residência, a qual foi substituída apenas por uma referência a lei de refúgio.
No entanto, apesar dos refugiados experienciarem a xenofobia, a aporofobia e o preconceito em relação a condição de refugiado, os africanos sofrem essas discriminações ainda mais intensamente em razão do racismo estrutural da sociedade brasileira. Um exemplo é a diferença de solidariedade e comoção que houve na chegada dos sírios comparada com a recepção aos congoleses. Os salários são outro reflexo dessa desigualdade. Há uma crença de que os africanos não podem ser qualificados profissionalmente. A África, além de ser considerada frequentemente homogênea pelos brasileiros e ocidentais, é sempre associada a pobreza, baixo desenvolvimento, doenças e guerras. Assim, os africanos não são considerados aptos a ocuparem cargos que demandem de maior nível educacional.
O estigma contra os africanos é para além do campo profissional. Em 2014, quando houve ebola na Guiné Conacri, país distante da RDC, ocorreram muitos episódios de xenofobia direcionados aos congoleses. Nesse período, uma congolesa relatou que um médico se recusou a atendê-la no hospital, sob a alegação que estava levando ebola para a instituição. Os congoleses também relatam preconceito vindo de negros brasileiros mesmo em regiões pobres. Eles escutam frases como: “angolanos, voltem para sua terra”. Apesar de serem nacionais da RDC, são comumente referidos como angolanos, sendo mais um indicativo de que não importa a nacionalidade e sim que são africanos, o outro, o subalterno. As mulheres congolesas também experienciam a intersecção de gênero, além do racismo, xenofobia, aporofobia e condição de refugiadas. Há relatos de hipersexualização e xingamentos que as relacionam com a prostituição.
O Caso do Moïse é um reflexo dessa sociedade. Apesar de ter crescido e estudado em escolas brasileiras, suas oportunidades foram escassas. Cursar uma faculdade e ter um emprego formal com boa remuneração já é difícil para um jovem negro brasileiro que vem de família de baixa renda. Essa situação se torna muito mais complicada para um jovem africano refugiado, ainda que tenha chegado ao país adolescente.
Moïse estava no trabalho informal e explorado pelo seu patrão que não o pagava porque era negro, africano e de baixa renda. Moïse foi espancado até a morte porque era negro, africano e de baixa renda, sua vida não era considerada importante, era um indesejado. Seus agressores acreditavam na impunidade. A vida e a morte de Moïse é um retrato de um país racista, xenófobo e aporófobo.
Sobre a autora
Mariana Corrêa é doutoranda em Relações Internacionais pelo IRI-USP, mestra em Estudos Africanos pela Universidade de Lisboa e Bacharela em Relações Internacionais.
[1] A exceção são abrigos criados para venezuelanos vindos do programa de interiorização.
[2] Bolsa Família e, agora, Auxílio Brasil