Muitas vezes tratada como algo restrito à esfera federal, a questão migratória se dá sobretudo nos municípios onde os migrantes residem. E a falta de atenção para esse ponto leva a uma série de entraves e equívocos em relação a políticas públicas – que por sua vez, afetam diretamente essa comunidade. Colaborar para ajudar a desatar esse nó é um dos objetivos declarados da recém-criada Rede Nacional de Cidades Acolhedoras, fomentada pelo Ministério da Justiça e da Segurança Pública.
Institucionalizada por meio de portaria assinada no último dia 9 de novembro, a Rede Nacional de Cidades Acolhedoras é um grande fórum que visa apoiar o desenvolvimento de capacidades institucionais para integração local da população migrante, incluindo pessoas em situação de refúgio e de apatridia. Além disso, ela também almeja fomentar a institucionalização de políticas municipais para essa comunidade.
“É fundamental o papel das cidades na acolhida, na integração e na construção de políticas públicas para migrantes, refugiados e apátridas”, disse o Secretário Nacional de Justiça, Augusto de Arruda Botelho, no evento de lançamento da rede, ocorrido nos dias 9 e 10 de novembro em Brasília.
Por outro lado, o desafio nessa área é grande. Segundo uma pesquisa feita pelo IBGE em 2018, há presença de imigrantes em 3.876 dos 5.570 municípios brasileiros (69% do total). No entanto, apenas 215 deles (5,5%) contam com algum tipo de serviço de apoio voltado a essa população.
A criação da Rede Nacional de Cidades Acolhedoras integra ainda o conjunto de iniciativas para implementação da Política Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia (PNMRA). Nesse meio, também dialoga com a segunda edição da Conferência Nacional de Migraçõe, Refúgio e Apatridia (Comigrar), que vai acontecer em junho de 2024 em Brasília.
Como aderir à rede
Para ingressar na Rede Nacional de Cidades Acolhedoras, as gestões municipais interessadas devem firmar um Termo de Adesão a ser assinado pelo prefeito ou pelo secretário da pasta com competência sobre políticas para pessoas migrantes, refugiadas e apátridas. Esse documento precisa ainda ser encaminhado para o correio eletrônico [email protected].
A adesão ao fórum é voluntária e dispensa experiência prévia no assunto, algo que visa ser disseminado justamente por meio dessa nova rede.
“Ao constituir-se como um espaço para o diálogo intergovernamental sobre migrações, refúgio e apatridia, com protagonismo dos municípios, a Rede possibilitará o compartilhamento de subsídios técnicos para a tomada de decisão, a nível municipal, sobre a política para migrações, refúgio e apatridia e oportunizará a troca de experiências e aprendizados”, complementou ao MigraMundo o coordenador-geral de Política Migratória da Secretaria Nacional de Justiça, Paulo Illes.
Entre as atividades que devem ser promovidas a partir da Rede Nacional de Cidades Acolhedoras estão, segundo Illes:
- a oferta de incentivos para os municípios que a ela aderirem;
- promoção de espaços de diálogo periódicos;
- promoção de capacitações periódicas de profissionais para atendimento da população migrante, refugiada e apátrida, observando o respeito à sua diversidade, especificidade e cultura.
Participação da sociedade civil
Ao todo, 252 pessoas participaram do evento de lançamento do novo fórum, sendo 33 representantes de municípios e 32 de entidades da sociedade civil, além de 25 nomes ligados a agências internacionais que acompanham de perto a questão migratória no Brasil.
A participação da sociedade civil, inclusive, é considerada fundamental no funcionamento da nova rede. Os organismos que dela fazem parte são os que chegam primeiro na população migrante. Além disso, muitas vezes, ela acaba ocupando as lacunas deixadas pelo poder público em razão da falta de políticas públicas para os migrantes.
A internacionalista Rafaela Ludolf é professora da Universidade Salvador (Unifacs), onde coordena o Centro de Serviços ao Migrante desde 2017, e representou no evento a Rede de Apoio ao Migrante da Bahia (RAMBA). Em conversa com o MigraMundo, ela destacou que a criação do fórum representa um avanço sem precedentes para o estado brasileiro e para os direitos humanos e acolhimento migratório.
“Afinal, esse acolhimento e a integração da população migrante, refugiada e apátrida acontece dentro da cidade. Ela é o local de expressão das práticas públicas e privadas e da realização plena da cidadania em todos os seus aspectos”.
Partindo da vivência local, Ludolf apontou que na prefeitura da capital baiana, Salvador, há um entendimento de que não existe a necessidade de uma infraestrutura focada nas especificidades de migrantes. Por outro lado, cita Lauro de Freitas, município na região metropolitana, que criou um Centro de Referência e Atendimento ao Imigrante (CRAI) em 2022 e tem avançado nos debates públicos e no diálogo com a sociedade civil para construir suas políticas.
“A academia, a sociedade civil e o migrante podem compartilhar as dificuldades que vivem e o poder público pode indicar as possibilidades e as limitações que possui para resolver determinados entraves. Assim cada um de nós consegue se concentrar onde precisa e ampliar a qualidade dos serviços e do atendimento que prestamos”, completou Ludolf.
Visões da ONU
A criação da Rede Nacional de Cidades Acolhedoras foi elogiada por agências da ONU que possuem maior incidência na temática migratória. De acordo com elas, a iniciativa traz para o centro do debate os atores que estão no dia a dia no acolhimento e integração da população refugiada e migrante, e felicitam o governo por esse importante avanço.
“Queremos ser parceiros da rede, colocando à disposição décadas de políticas de proteção a pessoas refugiadas, pois sabemos o papel crítico das cidades e dos atores locais no acolhimento a essas populações. Iniciativas como essa têm facilitado a integração de pessoas refugiadas e em situação de mobilidade e têm dado voz e oportunidades para que elas participem da construção de políticas públicas”, afirmou o representante da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) no Brasil, Davide Torzilli.
“A criação da Rede Nacional de Cidades Acolhedoras pelo MJSP, assim como a realização da segunda Comigrar, são excelentes iniciativas e fortalecem a capacidade que os governos locais e a sociedade civil têm de enfrentar desafios com soluções adaptadas às realidades de cada território”, completou o Chefe de Missão da Agência da ONU para as Migrações (OIM) no Brasil, Stéphane Rostiaux.
Já o diretor do Escritório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) para o Brasil, Vinícius Pinheiro, destacou que a criação da Rede representa um novo e importante marco na parceria entre a agência e o governo brasileiro em questões ligadas à migração laboral. “As cidades se encontram na linha de frente para responder aos desafios e para se beneficiarem das oportunidades decorrentes da migração, assim como se beneficiam dos talentos e das potencialidades das pessoas migrantes, refugiadas e apátridas que buscam criar uma nova vida em solo brasileiro”.