Em uma iniciativa da rede britânica BBC, diferentes cantores foram convidados para regravar a música “Times like these”, da banda Foo Fighters, lançada em 2003. Seu refrão nos lembra que “Em tempos como esses, você aprende a viver de novo. Em tempos como esses, você se doa e doa de novo. Em tempos assim, você aprende a amar de novo”. Essa mensagem de esperança e superação pretendia mostrar ao mundo como tempos de crise podem nos ajudar a sermos melhores. E a partir dessa reflexão, a análise dessa semana sobre como refugiados e imigrantes têm lidado com o tema do novo coronavírus no Brasil busca refletir sobre lições que essa população pode nos ensinar para passarmos por “tempos como esses”.
Entre os dias 27 de março de 2020 e 06 de abril de 2020, eu entrevistei por telefone 34 imigrantes e refugiados de diferentes nacionalidades que estavam seguindo as medidas de proteção da Organização Mundial da Saúde (OMS) para lidar com o coronavírus. Além de experiências de solidariedade e consciência coletiva, os entrevistados me apresentaram reflexões interessantes sobre a sua vida e seu futuro que podem ser úteis para todos nós.
Conscientização
Em primeiro lugar, alguns entrevistados reconheceram que já tinham essa experiência de ter que ficar em casa porque viveram situações de guerra, violência, racionamento de comida. Entrevistados da República Democrática do Congo, da Síria e da Venezuela disseram que já estavam acostumados com situações de isolamento e de ter que ficar em casa para sobreviver; que isso poderia até ser classificado como “normal”.
Em segundo lugar, é muito importante seguir as medidas de higiene e recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS). Os entrevistados reconheceram que estavam seguindo essas medidas de higiene e distanciamento social para proteger a eles, suas famílias e todas as pessoas. Mesmo que essas medidas fossem difíceis e que muitos entrevistados estivessem preocupados com seu futuro e questões financeiras, havia um consenso de que seguir essas medidas era o correto a se fazer. Aquilo que todos deveriam fazer. Os entrevistados reconheciam a gravidade da doença.
Interessante lembrar que a própria comunidade de imigrantes e refugiados divulgou uma campanha da comunidade refugiada e imigrante contra o coronavírus em que pessoas de diferentes nacionalidades passam informações em seus idiomas sobre como se proteger contra o novo vírus. No vídeo, os participantes recomendam as pessoas a ficarem em casa como prevenção contra essa doença. Também reforçam que grande parte da comunidade é formada por autônomos que precisam trabalhar diariamente para pagar suas contas. Assim, as medidas para ficar em casa não são ideais para eles, mas eles as estão respeitando.
Manter esperança e otimismo
Em terceiro lugar, havia espaço para esperança e otimismo. Uma reflexão que apareceu nas entrevistas é de que o mundo já teve outras epidemias e elas entraram para a História. Alguns tinham planos para o futuro como terminar a faculdade, construir uma casa, abrir uma empresa ou poder ajudar mais a família. Em geral, os entrevistados esperavam que as coisas melhorassem nos próximos três meses, que os cientistas achassem uma cura, um tratamento efetivo e uma vacina assim que possível e que as pessoas pudessem voltar para as suas vidas normais.
Outros já reconheciam que o mundo seria um novo mundo com mudanças nas relações entre os países, no modo de as pessoas trabalharem (com mais coisas feitas de maneira remota com o uso da Internet), se cuidarem e adotarem estratégias. Havia uma esperança de um futuro sem coronavírus. Os entrevistados também mencionaram a importância de ter fé em Deus e da espiritualidade para lidar com a crise e não “perder” a cabeça. Também reconheceram a importância de as pessoas ficarem positivas, evitarem ficar estressadas ou em pânico porque essa situação vai passar.
Também havia uma expectativa de que as pessoas sobrevivessem. Quando perguntados o que esperavam do futuro, muitos entrevistados diziam que queriam apenas viver. O que reforça o entendimento de que eles valorizavam a vida. Outro participante da pesquisa já esperava que as pessoas voltassem a ser felizes, que saíssem mais fortes dessa crise e que “ninguém tivesse mais medo de ninguém”. Outros já iam além esperando que essa situação fizesse com que as pessoas repensassem suas relações umas com as outras e também com a natureza. Agora seria um momento que as pessoas começariam a valorizar pequenas coisas como um abraço, um aperto de mão, estar com os amigos e ter uma casa onde ficar.
Vários imigrantes e refugiados enfatizaram a importância de os seres humanos respeitarem mais a natureza também como maneira de evitar novas pandemias. Para alguns entrevistados, esse seria um tempo para refletir contra a poluição e contra o egoísmo e para as pessoas se unirem e terem mais compaixão e empatia. Além disso, essa pandemia teria deixado clara a fragilidade das pessoas e das nações a crises sanitárias globais.
Preocupação econômica
Por outro lado, havia uma preocupação com o futuro econômico do país e com a possibilidade de uma crise econômica global, principalmente se a economia brasileira ficasse fechada por mais de um mês. Além disso, diferentes entrevistados reconheciam que é possível que governos que já eram contra a imigração continuem a usar a epidemia como justificativa para manter as fronteiras fechadas e negar a entrada de imigrantes, refugiados e suas famílias no país.
Finalmente, muitos entrevistados reconheciam a importância de continuar sensibilizando a população sobre a seriedade dessa doença e de compartilhar boas informações. Nas últimas semanas, observamos diferentes iniciativas das próprias comunidades imigrantes e refugiados para informar seus pares e também auxiliar aqueles que estão em uma situação mais difícil. Isso pode também inspirar brasileiros a fazerem o mesmo: compartilhar informações verdadeiras que de fato ajudem as pessoas e ser solidários com aqueles que mais precisam, mesmo em uma situação extremamente complicada como nessa pandemia.
Lições da pandemia
Assim, essa análise das experiências de imigrantes e refugiados nos permite destacar lições que podemos aprender com essa população. Aqui estão algumas dessas lições:
A) Resiliência. Ilustrada pela clássica fala: “siga em frente”.Os imigrantes e refugiados nos mostram que ficar em casa por uma pandemia é bem menos ruim do que ficar em casa por causa de uma guerra ou grave crise. Também os seres humanos são resilientes a ponto de se acostumarem com toques de recolher e a racionar comida como eles tiveram que fazer em seus países. Essas experiências lhes ensinaram a serem mais fortes e a continuar apesar das dificuldades.
B) Solidariedade. Em uma crise, todas as pessoas estão sofrendo, então se você pode ajudar as pessoas que estão em uma situação ainda mais difícil faça isso assim como imigrantes e refugiados estão fazendo compras para pessoas do grupo de risco e distribuindo cestas básicas e marmitas.
C) União. Traduzida na frase “Juntos somos mais fortes”. É importante que as pessoas sigam todas as recomendações da Organização Mundial da Saúde como forma de cuidar de si próprias, de suas famílias e de todas as pessoas. Se possível, que fiquem em case, adotem medidas de higiene e se alimentem bem.
D) Fé e esperança. É importante continuar em tempos de crise. Encontrar forças naqueles amamos. Ter fé que as coisas vão melhorar e esperar um futuro melhor.
E) Valorização da vida. A vida é algo muito importante que deve ser preservado em primeiro lugar. Os entrevistados nos ensinam a, apesar de todas as dificuldades, valorizar aquilo que realmente importa como nossa vida, nossas famílias e nossa saúde.
F) Criatividade. Situações de crise nos convidam a nos reinventar. A repensar nossas relações com as pessoas que estão próximas e da natureza. Alguns refugiados refletiram que as famílias estão ficando mais próximas (por causa do distanciamento social com pessoas que não moram na mesma casa) e que as pessoas estão aprendendo novas habilidades como cozinhar por exemplo. É necessário ser criativo para lidar com as dificuldades e adaptar os negócios para ajudar as pessoas. Alguns imigrantes e refugiados se reinventaram profissionalmente com a crise: artesões passaram a fazer máscaras de pano, pessoas que trabalhavam com buffet começaram a fazer entregas de comida e a vender marmitas, artistas (como Lavi Isräel que ilustra essa reflexão) usaram esse tempo de isolamento como inspiração para novas obras. Nós também podemos fazer isso.
* Patrícia Nabuco Martuscelli é doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo
*Lavi Israël, cuja obra ilustra esta reportagem, é um artista congolês que mora atualmente no Brasil
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