Por Patrícia Nabuco Martuscelli
A Lei 9.474/97, mais conhecida como a Lei Brasileira do Refúgio, completou bodas de prata neste ano. Aprovada em 22 de julho de 1997, essa legislação foi reconhecida internacionalmente e elogiada pelo Alto Comissariado das Naçōes Unidas para os Refugiados (ACNUR) como progressiva e uma boa prática no tema do refúgio a ser replicada por outros países. Nada mais justo do que reconhecer os avanços e retrocessos desses últimos 25 anos tomando como base nossa tão celebrada Lei do Refúgio.
Muita coisa mudou desde 1997 tanto internacionalmente quanto nacionalmente. Novos conflitos e situações humanitárias surgiram, o que fez o ACNUR prever que passaremos o número de 100 milhōes de deslocados forçados ainda esse ano. A Lei 9474 sedimentou a definição expandida de refúgio levando em consideração não apenas o fundado temor de perseguição por causa da raça, religião, nacionalidade, opinião política ou pertencimento a um grupo social específico, mas também situações de grave e generalizada violação de direitos humanos. Com base nesse critério, o Brasil reconheceu como refugiados tanto pessoas fugindo do conflito da Síria quanto venezuelanos, grupo esse que representa a maioria de refugiados em nosso país atualmente.
Por um lado, a Lei 9474 forneceu as bases para que o Brasil fornecesse proteção para pessoas que poderiam ter dificuldade para demonstrar um temor de perseguição individualizado. Por outro, muitos solicitantes de refúgio oriundos de locais em que há graves e generalizadas violaçōes de direitos humanos documentadas por organizações não governamentais não conseguem se beneficiar dessa cláusula porque o governo brasileiro não reconhece formalmente essa situação.
A consolidação da definição expandida de refúgio presente na Declaração de Cartagena (1984) foi um importante avanço da Lei 9474 que permitiu a proteção de milhares de pessoas como refugiadas em nosso país. Porém o uso político da grave e generalizada violação de direitos humanos para algumas nacionalidades e outras não é uma barreira para o acesso ao refúgio.
Essas novas situações de deslocamento forçado também se traduziram em um aumento no número de solicitantes de refúgio no país. Quando a Lei 9474 foi aprovada, o país não recebia dezenas de milhares de solicitantes de refúgio como tem acontecido na última década. A solução encontrada pelo Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), órgão tripartite responsável pelo processo de refúgio e políticas públicas sobre o tema no país, foi institucionalizar o processo de refúgio. A solicitação de refúgio e demais processos como solicitação de viagem foram digitalizados por meio da criação do SISCONARE. Por um lado, hoje preencher o formulário de solicitação de refúgio depende apenas de ter acesso à Internet. Por outro, nem todos os solicitantes de refúgio têm acesso à tecnologia, o que pode gerar questões sobre o real acesso ao refúgio no país.
Outro problema é a necessidade de passar pela Polícia Federal para a identificação e emissão do documento provisório. Nos últimos 25 anos, vimos uma série de empecilhos como ausência de horários de agendamento na Polícia Federal (o que foi agravado após a pandemia da COVID-19). Problemas com agendamento não são culpa da Lei 9474, porém, esse é um tema que ainda não avançamos e que mina o direito a solicitar refúgio como garantido nessa legislação.
Outro tema não previsto pela lei foi o passivo de solicitações de refúgio esperando por uma decisão. Segundo informação da Plataforma Interativa sobre dados do Refúgio do ACNUR, uma solicitação de refúgio demora cerca de 2,2 anos para ser analisada em nosso país. Ainda que o CONARE tenha tomado uma série de decisões (algumas bem questionáveis violando o direito ao devido processo legal de alguns solicitantes de refúgio), o problema de como lidar com um número cada vez maior de processos de refúgio de maneira a garantir o direito ao refúgio permanece no Brasil. Há também que se pensar que a decisão do CONARE de enviar solicitações de refúgio de haitianos para outros tipos de regularização migratória sem considerar que esses nacionais poderiam se encaixar na definição de refugiado presente na nossa lei representa uma clara violação da Lei 9474 ao negar a esse grupo o direito a ser ouvido em seu processo de refúgio.
Nesses 25 anos, a Lei 9474 ganhou apoio da nova Lei de Migração (Lei 13.445/2017) aprovada em maio de 2017 e que passou a vigorar seis meses depois. Com base em uma ótica de direitos humanos e fruto de muito advocacy da sociedade civil que trabalha com a temática, a Lei 13.445 complementa a Lei de Refúgio em diferentes temas. Contudo, a regulamentação da Lei 13.445 (feita sem consulta com os diferentes atores que participaram do processo participativo que culminou com a lei) restringe muitos dos direitos presentes no documento. Isso respingou também no tema do refúgio tornando por exemplo tanto os processos de reunião familiar quanto o de naturalização mais complicados para refugiados. Além disso, a situação emergencial criada durante a pandemia foi usada para fechar a fronteira terrestre brasileira, retornar pessoas que cruzaram a fronteira durante esse tempo (violando o princípio da não devolução) e negar o direito ao refúgio a pessoas que eventualmente conseguiram entrar no país nessa época. Confesso que achava que essas legislações estavam mais consolidadas. No entanto, foi e é preocupante ver como tanto a Lei de Refúgio quanto a Lei de Migração foram completamente ignoradas durante esse período.
Um significativo avanço não previsto na Lei 9474 tem a ver com a chegada de crianças sozinhas (conhecidas como crianças desacompanhadas). Havia um entendimento implícito na Lei que crianças solicitariam refúgio com algum representante legal, que seria a pessoa responsável pelo processo. Contudo, ainda que em pouca quantidade se comparado com a situação na Europa e nos Estados Unidos da América, o Brasil passou a receber crianças sozinhas. Em 2017, uma resolução conjunta do CONARE, Conselho Nacional de Imigração (CNIg), Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) e a Defensoria Pública da União (DPU) criou um procedimento claro em que a DPU se tornou a responsável por representar essas crianças nos procedimentos migratórios e conexos a eles. Além disso, esse documento garante a necessidade de considerar a participação das crianças nas decisões (de acordo com sua maturidade e capacidade) e o seu interesse superior.
No outro extremo, um importante retrocesso visto nos últimos 5 anos se refere ao processo de reunião familiar. A lei 9474, em seu artigo segundo, reconhece que os efeitos da condição do refugiado poderão ser estendidos para ascendentes, descendentes, cônjuges ou parceiros e demais membros familiares que dependam economicamente do refugiado que estejam em território nacional. Porém, a lei não define dependência econômica e nem explica qual o processo claro para que familiares de refugiados possam chegar ao Brasil. Até 2017, o CONARE entendia que ele era a instituição responsável por analisar a reunião familiar de refugiados. Em 2013, o órgão criou um procedimento claro para esse processo (tanto para o visto quanto para quando a família chegar ao país) por meio de Resolução 16. Contudo, tudo mudou em 2018, com a resolução 27 que consolidou o entendimento que visto de reunião familiar é de responsabilidade do Ministério das Relaçōes Exteriores e seus diplomatas e extensão dos efeitos da condição é de responsabilidade do CONARE. Isso dificultou o processo de reunião familiar, separando famílias refugiadas permanente ainda que a Lei de Migração garanta explicitamente um direito à reunião familiar a todos os imigrantes residentes no Brasil. A reunião familiar de refugiados realmente sofreu um retrocesso que muito provavelmente não foi previsto pelos idealizadores da Lei 9474.
Finalmente, 25 anos se passaram desde que a Lei 9474 foi aprovada e refugiados não participam ativamente do CONARE ou do processo de tomada de decisões envolvendo políticas públicas para esse grupo no âmbito federal. Ademais, o Brasil ainda não possui um plano de integração local para refugiados, mesmo que essa seja a principal solução duradoura em nosso país. Ainda que refugiados tenham acesso aos mesmos direitos que os brasileiros conforme o princípio da não discriminação em nossa Constituição e também na Lei 9474, refugiados e solicitantes de refúgio enfrentam barreiras diárias para acessar seus direitos à educação, saúde, benefício sociais, acesso ao sistema bancário e outros. Ou seja, a implementação da Lei 9474 em sua ótica de garantia de direitos humanos dos refugiados perpassa uma luta diárias dos próprios refugiados, ativistas e organizações que apoiam essa população.
É o momento de celebrar os 25 anos da Lei 9474. Temos que reconhecer que é importante que nosso sistema de refúgio seja baseado em um sistema de garantia de direitos em que a sociedade civil participe diretamente da tomada de decisões sobre refúgio. Isso foi consolidado com a Lei 9474. É importante ter essa base especialmente considerando governos que tendem a ser mais reticentes a temas de direitos humanos. Porém, observamos uma série de retrocessos no modo como a lei vem sendo interpretada e implementada especialmente nos últimos anos. Nesse sentido, é fundamental continuarmos a lutar todos os dias para que o espírito acolhedor presente na formulação da Lei 9474 continue vivo no Brasil.
Sobre a autora
Patrícia Nabuco Martuscelli é Professora Assistente de Relaçōes Internacionais na Universidade de Sheffield, Reino Unido