No dia 28 de julho de 2021, a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (daqui em diante Convenção de 1951) celebra seus 70 anos em meio à pandemia do novo coronavírus SARS-COv-2 e um aumento no número de pessoas deslocadas de maneira forçada no mundo. Esse breve texto reflete avanços e entraves para a proteção dos refugiados nos últimos 70 anos e os desafios que enfrentaremos pela frente.
Um primeiro avanço que a Convenção de 1951 trouxe foi criar formalmente a figura do refugiado, ou seja, uma pessoa que sai de seu país de origem ou residência habitual por causa de um fundado temor de perseguição devido a sua raça, nacionalidade, religião, pertencimento a um grupo social específico ou opinião política. Ainda que diferentes estudos tenham mostrado como a construção da figura do refugiado estava baseada em aspectos coloniais (o que explica por exemplo as restrições geográficas e temporais presentes na Convenção de 1951), na presente data o conceito de refugiados é universal sendo aplicado a qualquer pessoa independente de quando e onde ela foi perseguida.
Nos últimos anos, a crescente e sedimentada jurisprudência do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) e reflexões de pesquisadores de diferentes disciplinas contribuíram para o entendimento de conceitos fundamentais para o tema dos refugiados principalmente o de perseguição e de pertencimento a um grupo social específico por exemplo. Esse desenvolvimento da interpretação do conceito de refugiados permitiu a proteção de diferentes grupos incluindo mulheres sobreviventes de violência sexual baseada no gênero e pessoas LGBTI.
Também definições regionais de refugiados incluindo na América Latina com a Declaração de Cartagena de 1984 expandiram as condições que podem justificar a proteção internacional do refugiado. É possível reconhecer que há uma consolidação do conceito de refugiado no mundo. Porém, diferentes estudos mostram que apesar de cada vez mais pessoas saírem de seus países de maneira forçada, um número cada vez menor de pessoas vem sendo reconhecida como refugiadas e acessado os direitos consagrados a essa população em 1951.
Um exemplo disso é o fato de que muitos sírios não são reconhecidos como refugiados na Europa por não conseguirem mostrar que eles possuem um temor individualizado de perseguição dado que o conflito armado per se não configuraria uma situação de perseguição por causa de um dos cinco fatores elencados no texto do tratado internacional. Como essas pessoas não podem ser devolvidas para um local em que suas vidas estejam em risco (o que é decorrente do princípio da não-devolução – non-refoulement– presente na Convenção de 1951 e em outros tratados internacionais), Estados fornecem uma proteção temporária (chamada em alguns casos de proteção subsidiária ou proteção humanitária) que não garante os mesmos direitos que a categoria de refugiados.
Países mais fechados
É fato que o número de pessoas em necessidade de proteção internacional e sob o mandato do ACNUR tem crescido nos últimos anos, o que pode ser observado no relatório de junho passado das Tendências Globais sobre Deslocamento forçado no mundo desse ano. No entanto, atualmente há uma infinidade de novas categorias incluindo a categoria de venezuelanos (venezuelans abroad) que são utilizadas para que Estados não cumpram aquilo que foi acordado há 70 anos em Genebra.
Dois outros movimentos por parte dos Estados somam-se a esse para evitar o reconhecido da condição de refugiado para pessoas que se encaixariam nesse conceito: sistemas de reconhecimento de refugiados cada vez mais complexos voltados para eficiência e atividades para evitar a entrada de potenciais refugiados o que é feito por meio de acordos questionáveis que violam o princípio da não-devolução e programas questionáveis de externalização do reconhecimento de refugiados. De nada adianta o conceito de refugiado ter se consolidado se ele não é aplicado na prática ou se pessoas não podem se quer chegar no território de um outro Estado para solicitar refúgio.
Dentre os países que adotam seus próprios sistemas de reconhecimento de refugiados, é possível perceber processos de refúgio cada vez mais complexos, desenhados para conseguirem deportar pessoas de maneira eficiente e pouco preocupados com os direitos daqueles que solicitam refúgio. Processos de refúgio em países do Sul e do Norte global envolvem uma série de procedimentos que tentam provar a não credibilidade de solicitantes de refúgio que têm cada vez mais dificuldade de navegar tais processos sem a ajuda de um especialista no assunto.
Ao mesmo tempo, Estados têm adotado diferentes estratégias para evitar que potenciais solicitantes de refúgio possam se quer solicitar refúgio. Acordos entre a União Europeia e Líbia e Turquia possuem o objetivo claro de evitar a chegada de pessoas em necessidade de proteção em solo europeu, o que mostra como a interpretação do princípio de não-devolução tem se tornado cada vez mais “criativa”. A política australiana (que pode ser replicada pela Dinamarca) de manter solicitantes de refúgio em centros de detenção fora do território australiano até que seus processos de refúgio sejam aprovados também mostra esse objetivo de manter pessoas em necessidade de proteção fora dos territórios nacionais como uma tentativa de não ter que aplicar aquilo que está na Convenção de 1951.
Fator pandemia e mais desafios
Finalmente, a Convenção de 1951 está sendo aplicada desde o ano passado em um contexto de pandemia. Diferentes estados no Norte e no Sul Global adotaram medidas que violam os direitos de refugiados e solicitantes de refúgio e a Convenção de 1951. O Brasil, por exemplo, manteve por muito tempo as fronteiras terrestres com a Venezuela fechadas, o que impediu que esses nacionais pudessem chegar ao Brasil para solicitar refúgio. É claro que Estados têm usado a pandemia como justificativa para fechar fronteiras, separar famílias e negar os direitos de refugiados e solicitantes de refúgio. A Convenção de 1951 não menciona nem uma vez os termos “pandemia”, “epidemia” e “saúde”. De fato, esse tratado não foi pensado para uma pandemia. Porém, não há qualquer artigo nesse documento que legitime que os Estados deixem de cumprir a Convenção de 1951 em estados de excepcionalidade como a pandemia atual. Pelo contrário, essa pandemia demanda que Estados continuem a garantir o direito de refugiados e solicitantes de refúgio principalmente considerando que conflitos armados, emergências humanitárias e situações de perseguição não pararam por causa da COVID-19.
Há uma série de questões nos próximos anos que apresentarão desafios para a Convenção de 1951. O primeiro deles é o crescimento de pessoas deslocadas de maneira forçada que precisam de proteção internacional, mas que não entram no conceito de refugiado do documento. Aí estão pessoas deslocadas internamente de maneira forçada e pessoas que cruzam fronteiras por causa de desastres e eventos relacionados com a mudança climática. Vários estudos reconhecem questões climáticas como principais deslocadores nos próximos anos. Um segundo desafio envolve o tema da não-devolução, o que inclui discussões sobre repatriação voluntária de refugiados e acordos questionáveis sobre pessoas que tentam cruzar fronteiras internacionais por terra e mar.
Finalmente, há a redução do poder de barganha de organizações internacionais que dependem financeiramente de Estados o que tem permitido que alguns governos adotem medidas que vão contra a Convenção de 1951. Para os próximos anos, é necessário continuar a luta, ativismo e a vigilância constantes para que os Estados garantam os direitos para refugiados e solicitantes de refúgio já presentes em 1951 e a sua extensão para proteger todos aqueles que precisam sem exceção.
* Patrícia Nabuco Martuscelli é doutora em ciência política pela Universidade de São Paulo, Mestre e Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília – [email protected] e Twitter @Patnabuco
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