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sábado, novembro 23, 2024

Os deserdados da terra e a migração

Por Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs

O escritor e dramaturgo britânico John Galsworthy ambienta sua obra prima – The Forsyte saga (A saga dos Forsyte) – a cavalo entre os séculos XIX e XX. O obra, publicada em três volumes, lhe valeu o premio Nobel de Literatura no ano de 1932. No contexto entre a decadência da aristocracia e a ascensão da burguesia, caminhando para o ocaso da era vitoriana, a trilogia trata de sublinhar “o sentimento de propriedade e de herança” como fio condutor da manutenção do status quo. Segundo o autor, os membros da família Forsyte, a qual se converte em uma espécie de metáfora da classe dominante, além de fazer render com grande obstinação a riqueza adquirido ao longo de várias gerações, procura cultivar com cuidado as flores do jardim da própria casa, evitando a mistura com as “ervas daninhas da plebe”.

A Revolução Industrial consolida-se literalmente a todo o vapor. Uma floresta de chaminés cobre as cidades mais relevantes. Aumenta sem precedentes a produção e a produtividade, o comércio e o consumo por parte da população. Ao mesmo tempo, às vésperas da Primeira Guerra Mundial, um trágico replicar de sinos antecede e anuncia sinais de crise, seguido de um surdo rumor de canhões. Em meio a semelhante clima, acumula-se de forma crescente a propriedade da terra, a renda sobre o capital e o poder de aquisição sobre os bens produzidos em série pelas novas fábricas. Ao lado dessa concentração exponencial, cresce igualmente o êxodo do campo em direção à zona urbana, bem como o número de operários, desempregados e de emigrantes. Estes últimos deixam o velho
continente em busca de novas oportunidades nas Américas, na Austrália e na Nova Zelândia, por exemplo. Os historiadores estimam que aproximadamente 65 a 70 milhões de pessoas migraram para fora da Europa entre 1820 e 1920.

Convido o leitor a fazer um salto de 100 anos. De fato, além da depressão dos anos de 1930, desde a década de 1970, e prolongando-se pela virada do século xx para o XXI, outra crise abate-se sobre a economia mundial, cada vez mais globalizada. Toda crise de ordem socioeconômica costuma abrir
abismos para os que escorregam e tombam e, ao mesmo tempo, descortinar horizontes para os que se aprumam, se equilibram e sobem. Falências e bancarrotas, oportunidades e opções se mesclam, se confundem e se complementam, as últimas em detrimento das primeiras. Toda crise é terreno fértil para decadência e ascensão. O tecido da sociedade se rasga e se recompõe, simultaneamente, reestruturando a pirâmide social.

Essa reestruturação, como se pode imaginar, sacode as bases da política econômica, seja em nível nacional e regional ou internacional. A base e o pico da pirâmide voltam a distanciar-se. Dados e Estatísticas, com abundância de números, tem mostrado como nas décadas recentes, coexistem lado a lado a concentração de renda e riqueza, por uma parte, e a exclusão social, por outra. “Ricos cada vez mais ricos às custas de pobres cada vez mais pobres”, alertava o Papa João Paulo II há mais de 30 anos. Juntamente com o agravamento do aquecimento global e das catástrofes naturais, sobrepõem-se terremotos e tsunamis de caráter socioeconômico e cultural, causando não poucos deslocamentos humanos. Em regiões pontuais do planeta multiplicam-se fugas e êxodos de massa, resultando em milhões de migrantes, refugiados e prófugos. Não faltam exemplos: Venezuela, Honduras, Haiti, Líbano, Líbia, México, Myanmar…

Da mesma forma que na Grã Bretanha do final do século XIX e início do XX, também hoje o capital se concentra, enquanto os trabalhadores se dispersam como um exército errante, em busca de migalhas de oportunidades: subempregos, trabalho informal e semiescravo. Agrava-se a crise e agravam-se as injustiças, assimetrias e desigualdades sociais. O exército errante não mora, acampa. Essa errância dos deserdados da terra, por outro lado, se vê cada vez mais rechaçada por muros, leis antimigração, políticas restritivas, nacionalismo populista, xenofobia, racismo e discriminação crescentes. Cabe uma pergunta desafiadora, tanto para a Igreja e a sociedade civil quanto para os governos e autoridades internacionais: onde e quando tais deserdados encontrarão, por fim, uma
pátria que os acolha com a justiça e a dignidade de cidadãos!?…

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