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quarta-feira, dezembro 18, 2024

Políticas migratórias no Brasil: desafios, retrocessos e caminhos para o futuro

Chega-se ao segundo Dia Mundial do Imigrante do governo Lula 3 sem um rumo certo para a política migratória brasileira; data representa uma oportunidade para refletir sobre como atuar para garantir direitos e lutar contra retrocessos

Por Paulo Illes*

O Dia Mundial do Imigrante, celebrado em 18 de dezembro, representa uma oportunidade para refletir sobre os avanços e desafios das políticas migratórias no Brasil e no mundo. O Brasil, como ator central no cenário internacional, tem adotado políticas mais humanizadas, mas ainda enfrenta obstáculos institucionais e estruturais que merecem atenção. Desde o acordo bilateral Brasil-Bolívia em 2005, passando pelo Acordo sobre Residência do Mercosul (Mercado Comum do Sul) de 2009 e a criação da primeira política migratória local em São Paulo, o país acumula conquistas importantes, como a aprovação da Lei de Migração n. 13.445 em 2017, que trouxe uma perspectiva humanitária ao substituir o antigo Estatuto do Estrangeiro, de 1980, herdado da ditadura militar.

No entanto, o 18 de dezembro também é uma data para refletir sobre políticas ameaçadas. Um exemplo preocupante é o direito à liberdade de circulação, que tem sido fragilizada por medidas recentes do governo brasileiro. Por meio de uma Nota Técnica, o Ministério da Justiça e Segurança Pública mudou seu entendimento em relação à solicitação de refúgio para pessoas em trânsito, ou seja, aquelas cujo destino final não é o Brasil. Segundo o novo posicionamento, essas pessoas devem obrigatoriamente continuar viagem até o destino final ou retornar ao país de origem. Essa medida, além de desconsiderar a situação de vulnerabilidade dessas pessoas, viola frontalmente o princípio do non-refoulement (não devolução), previsto tanto na legislação nacional quanto nos acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário. Casos como os registrados no aeroporto de Guarulhos, com centenas de pessoas na área restrita, evidenciam o impacto dessa mudança, negando às pessoas em trânsito o direito fundamental de solicitar refúgio. Vale ressaltar que estas pessoas são oriundas de países africanos e asiáticos. Esse retrocesso alinha-se às práticas restritivas da União Europeia e dos Estados Unidos, com o risco de, num futuro próximo, em nome da segurança e da “proteção”, o Brasil institucionalizar Centros de Detenção nos aeroportos para imigrantes que aguardam deportação. Esse modelo, debatido e rejeitado nos diálogos que antecederam a aprovação da Lei de Migração de 2017, é perigoso e desvirtua a função da área reservada do aeroporto como espaço de trânsito, transformando-a em um lugar de permanência. O caso de Evans, imigrante de Gana, que faleceu no aeroporto de Guarulhos em agosto enquanto aguardava a possibilidade de solicitar refúgio e tratar sua saúde, revela a gravidade desse cenário.

Essa questão foi central na 15ª Marcha do Imigrante, realizada no dia 1º de dezembro na Avenida Paulista, sob o tema “Não ao retrocesso nas políticas migratórias” e “Migrar é um direito humano”. A marcha, organizada pelos movimentos sociais, trouxe à tona a necessidade de justiça por Evans e reiterou reivindicações históricas, como o direito ao voto dos imigrantes. Lembrou-se que a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) apresentada em 2013 pelo deputado federal Carlos Zarattini, que propõe o direito de voto para imigrantes com mais de dois anos de residência regular, encontra-se parada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, sem avanços significativos.

Paulo Illes, Ex-Coordenador Geral de Política Migratória do DEMIG/MJSP, durante a 15ª Marcha dos Imigrantes, em São Paulo. (Foto: Rodrigo Borges Delfim/MigraMundo)

Diante desse cenário, é urgente destacar o papel da Comissão Mista no Congresso Nacional, que atualmente discute as políticas migratórias, mas que poderia ser melhor ocupada pelos movimentos sociais. É necessário que o governo dê respostas transparentes sobre temas centrais, como sua posição em relação ao direito de voto dos imigrantes e a regulamentação do artigo 120 da Lei de Migração, que visa articular a União, os estados e os municípios para a construção de uma governança migratória coordenada. Também pairam dúvidas sobre os encaminhamentos das propostas levantadas durante a Conferência Nacional de Migração, Refúgio e Apátridas (Comigrar). Pergunta-se: o Brasil terá uma política migratória seguida de um plano nacional de integração de imigrantes e refugiados, ou tratará cada proposta de forma isolada e fragmentada entre os ministérios?

Esse debate torna-se ainda mais complexo quando se observa que, desde a reforma administrativa do atual governo, o Ministério do Trabalho e Emprego não assume mais responsabilidades sobre a migração, apesar de o Conselho Nacional de Imigração sempre ter pertencido a ele. A migração laboral passou a integrar o Ministério da Justiça e Segurança Pública durante o governo de Michel Temer, o que levanta questões importantes. Afinal, é adequado que a Coordenação Geral de Imigração Laboral esteja vinculada a um ministério voltado ao controle migratório e à segurança nacional? Essa estrutura tende a reforçar uma visão securitária que contraria os anseios da população imigrante e refugiada. Como escrevi em 2022, no artigo publicado pelo jornal Público de Portugal, é preciso reforçar o papel do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, garantindo que ele tenha estrutura e recursos adequados para coordenar uma política migratória que respeite os direitos humanos e promova a inclusão. Não basta transferir responsabilidades de um ministério para outro; é fundamental equipar o órgão responsável com competências e capacidade para implementar políticas nacionais efetivas.

Além disso, durante o governo de transição, o relatório apresentado pelo Grupo de Trabalho de Direitos Humanos propôs a criação de uma Secretaria Nacional de Políticas Públicas e Direitos Humanos para as Pessoas Migrantes, Refugiadas e Apátridas dentro do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania Esta ação visa garantir que o tema da migração, refúgio e apatridia esteja pautado pelos princípios dos Direitos Humanos, atuando na defesa dos direitos da população migrante no Brasil e da população brasileira no exterior. Também foi sugerida a reformulação da Operação Acolhida, passando a coordenação para uma autoridade civil e garantindo um acolhimento pautado por uma abordagem de direitos humanos e realizado por funcionários civis qualificados. O documento apresentado pelo GT de Transição sugeriu ainda a construção de um Plano Nacional de Políticas Públicas e Direitos Humanos para migrantes e refugiados, com base no artigo 120 da Lei de Migração (13.445/17), promovendo a integração local, laboral e educativa e incluiu a criação da Rede Nacional de Cidades Acolhedoras e a implementação de um Conselho Nacional de Direitos Humanos e Migração, semelhante ao Conselho Municipal de Migrantes da cidade de São Paulo, para garantir ampla participação social. Sabe-se que algumas destas iniciativas encontram-se em construção, porém chega-se ao segundo Dia Mundial do Imigrante do governo Lula sem um rumo certo para a política migratória.

Diante desses desafios, a força do movimento social organizado torna-se crucial. A mobilização demonstrada na 15ª Marcha do Imigrante é um exemplo da capacidade desses grupos de pautar o debate público e pressionar por mudanças estruturais. É a partir dessa mobilização, com a participação ativa de sindicatos, partidos políticos, sociedade civil, academia, organismos internacionais e poder público, que será possível consolidar políticas migratórias progressistas, construir um plano nacional de integração para imigrantes e refugiados e reposicionar o Brasil como referência global na defesa dos direitos humanos e da dignidade dos migrantes.

Sobre o autor

*Paulo Illes é Ex-Coordenador Geral de Política Migratória do DEMIG/MJSP (Departamento de Migrações do Ministério da Justiça)


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