Por João Chaves
Como tive a chance de expor em várias oportunidades, tenho restrições quanto aos discursos excessivamente otimistas ou emocionados sobre a Lei de Migração (Lei nº 13.445), que entrou em vigor em novembro de 2017. É muito natural que se celebre esse fato, por ter simbolizado ao mesmo tempo uma ruptura com um modelo disfuncional e bem pouco transparente de gestão migratória, e por ser um símbolo do poder da sociedade civil e dos direitos humanos num Brasil já com preocupantes viradas à direita. Ou seja, eu defendo a Lei de Migração e acho que foi um passo fundamental para a afirmação dos direitos de pessoas migrantes no país. No entanto, a realidade não é tão simples.
Espero, neste e em futuros artigos, trazer à luz algumas situações posteriores a 2017 em que não se seguiu o espírito de promoção da regularização documental e do acesso a direitos. Em meio à comemorações justas pelos avanços, há também pontos negativos, que tem sido negligenciados. E um deles atende por uma sigla: o CNIg, ou Conselho Nacional de Imigração.
Criado pelo Estatuto do Estrangeiro em 1980 com o objetivo de “ordenar, coordenar e fiscalizar as atividades de imigração”, o Conselho já conta com mais de quarenta anos de trajetória. De modo geral, é considerado um órgão quadripartite, com participação do governo, de empregadores (confederações patronais), empregados (centrais sindicais) e do setor de ciência e tecnologia (SBPC – Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), e visto como uma espécie de fórum maior do debate migratório brasileiro.
A impressão positiva sobre o CNIg perante a sociedade civil e as comunidades migrantes tem razão de existir. Especialmente nos dois governos Dilma Rousseff, o Conselho notabilizou-se por práticas inclusivas e positivas que anteciparam vários movimentos do que estaria consagrado na Lei de Migração.
Dou dois exemplos. O primeiro foi a criação da figura do visto por razões humanitárias em 2012, em favor de pessoas haitianas que chegavam aos milhares pelo Estado do Acre em busca de trabalho e sobrevivência. O segundo é pouco conhecido do grande público, mas pode ser pesquisado nas publicações anuais do Obmigra – Observatório das Migrações Internacionais: trata-se do uso da Resolução Normativa nº 27/1998, que possibilitava a concessão de “permanência por casos omissos” para garantir a regularização de milhares de pessoas de forma simplificada.
Daí a pergunta: com esse histórico, por que não se fala do CNIg após a Lei de Migração?
Na verdade, devemos considerar que, por razões organizacionais, existe hoje outro Conselho, com o mesmo nome e composição parecida. É por isso que até mesmo a numeração das Resoluções mudou, e as anteriores foram revogadas. Esse novo CNIg deixou de ter funções humanitárias ou de discussão ampla da migração internacional no país, e passou a ser um órgão de migração laboral num sentido bastante estrito – e elitista. Ou seja, com foco em trabalhadoras e trabalhadores de alta especialização, no interesse do mercado. Houve um pequeno avanço com as Resoluções nº 01 e 02 editadas em conjunto com o CONARE, que permitem a autorização de residência para fins de trabalho para solicitantes de refúgio com vínculo empregatício anterior a 21/11/2017, mas são exceções que confirmam a nova regra.
Além disso, é chocante que, após a Lei de Migração, admita-se um Conselho com alegação de pluralidade, mas que na prática é bipartite e envolve apenas governo e mercado (empregadores e empregados), com apenas um assento fora desses setores (a SBPC). A Defensoria Pública da União foi excluída das plenárias, após anos como instituição observadora. Não se cogitou a inclusão da sociedade civil e entidades de defesa de migrantes, sob o insustentável argumento de que o setor produtivo representa a sociedade. Por fim, não houve preocupação com a representação de pessoas migrantes, com o reconhecimento do papel das diásporas. O resultado final é um órgão técnico e fechado, que se concentra na migração laboral qualificada e virou as costas para o debate mais amplo sobre a política migratória brasileira e outras formas de migração.
Para quem trabalhava com o tema antes de novembro de 2017, é uma pena não poder mais contar com um espaço mais aberto para discussões sobre regularização. Por mais que hoje esteja previsto o papel do CNIg para a discussão de casos especiais não previstos em lei, pela Resolução Normativa nº 23, os espaços de avanço têm sido muito pequenos. E não há perspectiva de avanço.
Para que, nos próximos anos, o CNIg volte a ser um espaço de disputa em favor da regularização migratória, é preciso pelo aumento de visibilidade de suas discussões, com participação efetiva da Defensoria Pública, da sociedade civil e da comunidade imigrante. Se o novo CNIg não voltará a ter o protagonismo do antigo, ao menos poderá ouvir a voz dos que, nem sempre, estão abrangidos pelos interesses do mercado.
Sobre o autor
João Chaves é defensor público federal e doutorando em Ciências Sociais na UFABC. Email: [email protected]