Por Charles Pontes Gomes
De todos os órgãos, secretarias e áreas dentro do Ministério da Justiça, a menos cobiçada pelos atores políticos por seu baixo poder orçamentário e sua fraca projeção nacional é o CONARE (Comitê Nacional pra Refugiados), o patinho feio sempre andando pelos cantos intimidado diante da imponência exuberância dos colegas gansos. E os relatos que chegam de seu órgão não são nada animadores. Entra ano, sai ano, nada muda, e passaram a virar rotina episódios graves – e às vezes trágicos – envolvendo novos migrantes e refugiados.
A última tragédia foi a morte do jovem ganês em trânsito pelo Brasil com visto para o México, onde ia para uma cirurgia com um especialista, mas lá o controle migratório lhe recusou a entrada. Ele retorna ao Brasil e decide solicitar refúgio. Mas a Polícia Federal o mantém retido no aeroporto, colocando em suspenso seu direito. Com problemas de saúde, insistindo para ser levado a um hospital, acabou tendo sua demanda atendida tarde demais e, ao chegar ao hospital, já apresentava quadro de infecção generalizada. Uma investigação está sendo feita pela Polícia Civil para apurar crime de omissão do Estado. Para completar o quadro de descaso das autoridades, sua morte não foi informada no mesmo dia à representação consular de Gana, como dita a Convenção de Viena, e somente dias após o ocorrido, quando as autoridades brasileiras já o tinham sepultado, provocando uma dor ainda maior à sua família.
Além de tragédias individuais, os últimos dois anos foram marcados sobretudo pela crise dos desabrigados afegãos fugidos do regime Talibã. O Brasil adota com o Afeganistão a política “visto sem exigências”, como com os sírios, que consiste em emitir um visto temporário de curta duração no país de origem ou vizinho, sem as exigências de um visto de turistas como comprovação de renda e passagens. Uma vez em posse do visto, as companias aéras ficam autorizadas a transportá-los e, ao chegarem no aeroporto brasileiro, solicitam o refúgio. Distinta de outras nacionalidades, a condição de muitas das famílias afegãs é de absoluta carência e com necessidades extremas.
Limbo, inação, decepção, disputas, natimorto, restrições
A ausência de uma política federal de acolhida destinada aos refugiados afegãos e a falta de coordenação com governos estaduais e municipais para fornecer abrigos e alimentação vem se desdobrando em pequenas crises humanitárias com vários momentos de picos de aglomeração da população afegã no aeroporto de Guarulhos, que aí passam a viver em sub condições de higiene e saúde por um bom tempo até conseguirem vagas nos poucos abrigos da cidade de São Paulo ou de alguma organização da sociedade civil.
Algumas das crises dos desabrigados afegãos ocorreram ao longo do segundo semestre de 2022. Depois, no ano passado, os maiores picos foram em julho, com a primeira ação concreta da coordenação de política migratória do MJ em providenciar abrigo apesar de improvisado na cidade de Praia Grande (SP) e depois em novembro. Mas desde então o governo federal tem transferido verbas risíveis para a Prefeitura de Guarulhos e sempre há uma centena de afegãos no aeroporto.
Para piorar a situação, o coordenador das políticas migratórias, Paulo Illes, e a diretora do departamento de migrações, Tatyana Friedrich pediram exoneração no início do ano, perdendo a secretaria os dois atores mais empenhados em construir diretrizes para uma política pioneira no ministério. Estavam sempre em campo, ajudando na realocação dos afegãos para o abrigo, em constante contato com a sociedade civil através dos encontros da COMIGRAR, conferência que tinha o intuito de elaborar de maneira conjunta uma nova política migratória e de refúgio.
A saída de ambos foi em parte pela mudança de ministros, mas sobretudo por divisões internas e sobretudo a falta de coesão e coordenação compartilhada na Secretaria de Justiça entre secretário de justiça, a presidenta do Conare (ambos do grupo Prerrogativas) e os dois coordenadores especializados na questão migratória. Isso contribuiu para engessar a pasta migratória e selar como desapercebida a passagem de Arruda Botelho, do grupo Prerrogativas, pela Secretaria. Apesar de continuar no Ministério da Justiça, a última a sair da área foi a presidente do CONARE, Sheila Carvalho, que apesar de uma posição importante, nunca demonstrou interesse em mudar ou fazer algo novo para a política do refúgio. Antes de deixarem suas pastas e diante do fracasso da gestão da dupla Prerrogativas, Arruda Botelho e Sheila Carvalho, já que nunca criaram uma política federal de acolhida a refugiados, o ministério decide em uma portaria conjunta com o MRE condicionando a concessão dos vistos para os afegãos somente a organizações da sociedade civil cadastradas que demonstrem capacidade de poder abrigá-los.
As organizações contestaram a portaria por ter criado tantos empecilhos que ela praticamente eliminou o fluxo afegão para o país. O legado do primeiro ano fecha com uma portaria de restrição demonstrando desinteresse e descomprometimento com a pauta migratória.
Restringir, atropelar prerrogativas processuais
Arruda Botelho foi substituído na Secretaria Nacional de Justiça por um outro membro do grupo Prerrogativas, Jean Uema. Ocupando o cargo desde o início do ano e sem nunca o ver tratando sobre questões da pasta migratória, passava a impressão que seria mais um do grupo Prerrogativas que entraria mudo e sairia calado, sem aportar mudanças em uma pasta tão carente de políticas. Mas eis que para minha surpresa, o Secretário aparece não para apresentar uma nova estrutura de abrigo do governo federal em Guarulhos, mas sim para acabar com esse fluxo enorme de solicitantes de refúgio no aeroporto.
A solução apresentada pelo secretário é um acinte a qualquer advogado que preze minimamente pelo estado democrático de direto, e uma aberração aos advogados membros do grupo Prerrogativas que supostamente tanto lutam contra a justiça de exceção – como a da Lava Jato – em nome das prerrogativas do processo e do advogado. Ao estilo abracadabra, o secretário incógnito aprece na grande imprensa televisiva para anunciar que uma nova norma infralegal entra em vigor e impede a lei do refúgio de ser aplicada para migrantes que estão em trânsito e não tenham visto para entrar no Brasil. Em si, a norma desrespeita a lei do refúgio que é explicita: uma vez em território nacional, qualquer nacional de qualquer pais tem direito de solicitar refúgio e aguardar em território nacional o processo e a decisão colegiada do CONARE.
Durante a entrevista televisiva, o secretário demonstra nitidamente que pouco ou nada conhece sobre os procedimentos de refúgio adotados pelo Brasil e começa a falar barbaridades, tripudiando ainda mais sobre a lei do refúgio e criando novas normas para o processo de solicitação:
1) quem solicitar refúgio no aeroporto tem que mostrar provas que está sendo perseguido. Ora, há décadas o Brasil adota os procedimentos padrões da agência das Nações Unidas para refugiados, onde não é necessário ao solicitante ter consigo nenhuma prova de perseguição, bastando-lhe narrar a sua história de perseguição e fuga à autoridade responsável. Cabe a este, mais conhecido como oficial de elegibilidade, depois de estudar bastante a região originaria do solicitante, lhe fazer perguntas sobre lugares, eventos e fatos narrados e ver se existem ou não incongruências;
2) não poderão solicitar refúgio pessoas “vinda de países que não há risco real de perseguição”. Ao dizer isso, ele comete mais uma atrocidade contra o direito de refúgio. Importante saber que existem brasileiros que foram reconhecidos como refugiados nos EUA, assim coma há americanos refugiados no Brasil. Elementar saber que as perseguições sofridas por um solicitante de refúgio são analisadas sempre de maneira individualizada. Não é a condição do país o único critério para se conceder refúgio. A única exceção para não se conceder o refúgio de maneira individualizada seria em situação que se aplica a declaração de Cartagena e lhe concede o refúgio “prima facie”, por esta fugindo de uma região de “grave generalizada violações de direitos humanos” e não de uma perseguição.
3) por fim, as duas normas anunciadas nos itens anteriores oficializam o juízo de admissibilidade que consiste em dar o poder a autoridade que faz o controle de passaporte decide depois de verificar a veracidade dos teus dados e documentos e por uma rápida entrevista, decidir se você pode ou não solicitar refúgio. O poder discricionário da autoridade migratória nesse processo de triagem desrespeita as prerrogativas do processo de solicitação de refúgio que na lei brasileira ainda por cima e decido de maneira colegiada. Estamos entrando num sistema de justiça de exceção a Sergio Moro: meu guichê, minhas normas. Com a norma do secretário em vigor provável que todos os pedidos de refúgio sejam indeferidos sem que o devido processo legal da solicitação de refúgio seja respeitado.
O sistema de solicitação de refúgio brasileiro existente hoje no CONARE se aprimorou para se adequar aos padrões internacionais de seriedade, consistência e qualidade necessários no difícil processo de definição da condição de refugiado de um solicitante.
As falas de Jean Uema são levianas, violadoras de direitos e temerárias, pois a consequência pode ser o retorno do possível refugiado ao local onde ele corre risco de vida. Na nota técnica apresentada por Uema tratam países como Índia, Nepal e Vietnã como se fossem locais que não se caracterizam como tendo perseguições, e seriam casos em que só a lei migratória se aplicaria a eles quando chegarem no Brasil. Pela superficialidade que ele trata do assunto, provavelmente por desconhecimento, alguém do CONARE precisa explicá-lo as políticas que o governo Modi recém-reeleito vem levando para reprimir a minoria mulçumana da Índia. Importante também entender como outros países com leis mais protetivas em relação ao refúgio vem tratando essa população. O Canadá, por exemplo, recebeu em seus aeroportos nos últimos três meses mais de 6 mil solicitações de refúgio de cidadãos da Índia sem jamais que as autoridades canadenses os estivessem estigmatizando e associando a vinda deles ao país com o aumento de quadrilhas internacionais de tráfico. As autoridades canadenses, como todos nós com o mínimo de lucidez, sabemos que uma coisa é combater o tráfico e outro bem distinta são as leis e as políticas migratórias. E ambas podem conviver, não uma prosperar em detrimento da outra.
A suspensão de direitos dos solicitantes de refúgio por uma suposta promoção de segurança e combate ao tráfico de pessoas nos remete a regimes autoritários e ditatoriais. Olhar as boas práticas de países vizinhos pode ser nossa uma solução, seguir respeitando a lei do refúgio do Brasil da redemocratização e, ao mesmo tempo, combater o tráfico de pessoas com políticas adequadas para esse fim. Não se combate tráfico nenhum suprimindo direitos. Vale sempre lembrar que foi em nome também do combate ao tráfico e corrupção durante a Lava Jato que se conheceram as maiores barbaridades em termos de violações de diretos, tão bem denunciadas pelo grupo das Prerrogativas.
Pressões políticas, elites burocráticas, jogos de poder
Mesmo tendo um corpo funcional permanente que malgrado tudo garante uma certa continuidade e estabilidade no seu funcionamento, seu quadro de servidores possui uma fonte de instabilidade intrínseca que vem da ambivalência fundacional do ministério oscilando entre as agendas da Justiça/proteção de direitos e as pautas da segurança pública.
Como os seus funcionários não possuem uma carreira própria, específica do ministério, muitos servidores são policiais federais e vários deles ocupam cargos importantes de chefia. Outro fator desfavorável à pauta de proteção de direitos na definição da política de migração e refúgio se deve ao fato de o Brasil não possuir uma agência de migração e de refúgio com um corpo funcional próprio mais voltado para as formações humanísticas. Em contraste com a maioria dos países com legislação migratória mais progressista e garantista, infelizmente, ainda temos a Polícia Federal encarregada de toda a parte de documentação migratória, de receber as solicitações de refúgio, os pedidos de regularização, de naturalização e demais trâmites.
Sendo o corpo funcional da Polícia Federal muito homogêneo e disciplinado, eles tendem a ser bem corporativistas e nas interações dentro do ministério dão preferência ao trabalhar com outros membros de sua corporação que funcionários de outra carreira. Esse esprit de corp é muito presente entre eles, com pautas bem definidas onde a expansão da agenda securitária é ponto comum entre todos. A Secretaria de Justiça com as questões de soberania, território, migrações já esteve muitas vezes sob comando deles, e sempre que podem tentam se infiltrar para pautar a agenda da secretaria com suas preocupações securitárias. Ao contrário de outros países, onde são os políticos e partidos que buscam inserir o controle migratório em suas agendas eleitorais para angariar votos e tratá-la como uma questão securitária e nacionalista, colocando o migrante como uma ameaça à identidade nacional e promover políticas para restringir suas entradas.
Com a porcentagem da população migrante não passando de 5% da população brasileira, apesar do tema migratório estar totalmente fora das agendas eleitorais, no Brasil temos esse ator político coorporativo chamado Polícia Federal que, quando vê a oportunidade, faz pressão para votarmos ao viés mais securitário e restritivo e recuperar o mando da gestão migratórias como já tiveram várias vezes. Outra elite burocrática que também incorpora essa ideologia securitária com bastante facilidade e muito comum entre seus membros, mas está longe de formar maioria, são os procuradores federais e membros do Ministério Público.
Estando Jean Uema ausente nas questões das migrações e nas reuniões do CONARE, sua clara falta de conhecimento sobre o tema do refúgio, evidencia que essa agenda não é dele e nem de seu interesse, e está encapando e assinando atendendo o interesse de algum servidor da Polícia Federal que está lá SNJ, ou mesmo do Ministério Público, ou dos dois. A secretaria nacional, a Polícia Federal e o Ministério Público não são os únicos atores: o Legislativo e o Judiciário já foram acionados, e certamente essa história terá desdobramentos.
Seja como for, não será nesse governo Lula que o “patinho feio” do Ministério da Justiça terá a chance de tornar-se um Cisne. Falta ainda um Secretário com visão estratégica e consciência da importância da política do refúgio, sobretudo na esfera internacional. Um país como o Brasil, sem nenhuma pretensão bélica, sabe que é importante para sua projeção internacional ter em sua política externa frentes de ação na área humanitária. Infelizmente o Exército Brasileiro não perdeu tempo e abocanhou essa oportunidade com o projeto Operação Acolhida, construindo um grande Hub humanitário com uma grande infraestrutura para a acolhida dos migrantes venezuelanos. Deve-se investir em novas políticas migratórias de acolhida desmilitarizadas, numa roupagem que envolva os órgãos que tradicionalmente lidam com o tema: ter o Ministério da Casa Civil na parte de implementação, a Secretaria de Justiça para a proteção de direitos, e o Ministério do Desenvolvimento Social na gestão e administração dos espaços de acolhida. O aumento do fluxo de refugiados deve ser solucionado de maneira construtiva e jamais pela via restritiva, suprimindo direitos.
Sobre o autor
Charles Pontes Gomes é Diretor de Proteção do CEPREMI (Centro de Proteção a Refugiados e Migrantes Internacionais)
Charles boa tarde, gostaria de endossar o seu texto com alguns pontos de inflexão com o mesmo. Entendo que colocando em questão que o ponto de convergência no texto se refere ao que poderia vir a ser um cisne dentro do Ministério da Justiça, passando pela importância do Estado no tema de migrantes e refugiados. O texto está muito bom, mas ao focar no CONARE, ele pinta o Ministério da Justiça com um cenário, no mínimo, ambíguo, porque de fato ali o tratamento é predominantemente legal. Quando se fala de refúgio, não precisamos nos aprofundar muito para ver que ainda lidamos com o “patinho feio” da sua vocação de ser um cisne de maior envergadura sobre o tema.
Além disso, entendo que o Estado e o governo atual precisam entender que o momento atual exige estruturas adequadas para tratar da questão, migração e refúgio, e um grupo já começou a propor ao governo ainda no período da transição, eu fiz parte desse grupo, a criação urgente de uma Secretaria Nacional para Migração e Refúgio, ligada à Presidência da República. No entanto, essa ideia não avançou devido às convergências políticas que deram mais peso ao CONARE e à Conferência Nacional sobre Migração e Refúgio, interesses que até agora não se concretizaram. No caso do CONARE vemos os passo lentos sobre o refúgio, com estrutura pequena, baixo recursos humanos e financeiros, e a complexa relação dele com as Organizações internacionais, as ONG e a posição do Governos no assunto. A segunda basta ver como vai indo o processo da Conferencia, as mudanças e entradas e saídas de pessoas na ultima equipe da coordenação para o tema, dentro do Ministério da Justiça, o que levou que a estrutura proposta não passou de algumas conversas com certas pessoas.
A divisão do tema nos ministérios, assessorias e o “humanitarismo bélico exército” de fronteira são outras anomalias que envolvem o Estado, sem uma clara distinção de onde começa e termina o que é humanitário e as políticas públicas. Como estudioso do assunto, ouço dizer que o artigo não apenas denuncia, mas também oferece uma opinião e uma provocação importante para afastar os maus agouros e buscar uma solução institucionalizada para responder às múltiplas faces da migração e refúgio no país.