Processo pode atenuar ou mesmo agravar os vetos já realizados no texto que foi sancionado
Por Rodrigo Borges Delfim
Em São Paulo (SP)
Em novembro (provavelmente no dia 21) o Brasil começa oficialmente a contar com uma nova Lei de Migração (Lei 13.445/2017), aprovada em abril passado pelo Congresso Nacional e sancionada no mês seguinte. Mas os vetos feitos pela Presidência no ato de sanção da lei (23 ao todo) lançaram um sinal de alerta para toda a comunidade organizada em torno da temática migratória.
Ainda houve um movimento de indivíduos e entidades da sociedade civil para tentar derrubar no Congresso os vetos presidenciais. No entanto, o Legislativo não alterou uma linha sequer do que foi sancionado no fatídico 24 de maio. Entre os principais vetos estão:
- Anistia para migrantes que ingressaram no Brasil sem documentos até 6 de julho de 2016;
- Conceito de “migrante” – a lei sancionada conta apenas com as definições de “imigrante”, “emigrante”, “residente fronteiriço”, “visitante” e “apátrida”
- revogação das expulsões de migrantes decretadas antes de 1988;
- livre circulação de povos indígenas entre fronteiras nas terras tradicionalmente ocupadas por eles;
- extensão da autorização de residência a pessoas sem vínculo familiar direto;
- dispensa do serviço militar de brasileiros por opção ou naturalizados que cumpriram obrigações militares em outro país;
- direito dos migrantes de exercer cargo, emprego ou função pública
- concessão de visto ou de autorização de residência para fins de reunião familiar a outras hipóteses de parentesco, dependência afetiva e fatores de sociabilidade
- Definição que considera como grupos vulneráveis: solicitantes de refúgio; requerentes de visto humanitário; vítimas de tráfico de pessoas; vítimas de trabalho escravo; migrantes em cumprimento de pena ou que respondem criminalmente em liberdade; menores desacompanhados.
Para Luis Renato Vedovato, doutor em Direito Internacional pela USP e professor na Unicamp, esses vetos indicam que a interpretação das normas da nova lei de acordo com os direitos fundamentais pode não ser o horizonte do governo. “A regulamentação poderá trazer entraves para os direitos declarados, além do fato dela poder ser omissa em alguns pontos”.
Espaço para diálogos?
Sem mais a possibilidade de rever os vetos, o foco total passa a para a regulamentação da Lei de Migração. Em torno de 30 artigos dependem de outros projetos legislativos ou decretos presidenciais para se tornarem válidos.
Esse processo é motivo de expectativa e preocupação para a sociedade civil, que tem feito uma série de eventos e debates para tratar do assunto. A regulamentação tanto pode atenuar como aprofundar os efeitos das dezenas de vetos, dependendo do rumo que ela tomar. “Há que se ficar atento para que a regulamentação não se afaste do coração da nova lei, que é a proteção aos direitos fundamentais”, aponta Vedovato.
No entanto, o espaço para dialogar sobre o tema diretamente com o governo federal, responsável pela regulamentação, tem sido diminuto. O único evento público desde a sanção presidencial a permitir esse contato direto foi a consulta feita por meio da atividade presencial do Fórum de Participação Social, no último dia 4 de agosto. O evento, organizado pelo Conselho Nacional de Imigração (CNIg) e pelo Ministério do Trabalho, teve como objetivo coletar sugestões do público presente para a regulamentação da nova lei.
Os participantes da atividade – entre representantes da sociedade civil e do poder público, e migrantes – elaboraram um total de 68 propostas. Ao final, o presidente do CNIg, Hugo Gallo, disse esperar que o Conselho consiga fazer uma nova atividade presencial do Fórum no final do ano, com a Lei de Migração já em vigor e regulamentada. Ele afirmou ainda que as propostas apresentadas “foram de alto nível” e vão subsidiar as discussões já em curso no Executivo sobre a nova lei.
No entanto, atividades como a que ocorreu em 4 de agosto devem continuar a ser raridade. Em julho passado, entidades protocolaram um documento junto ao Ministério da Justiça pedindo uma reunião do Comitê de Acompanhamento pela Sociedade Civil sobre ações de Migração e Refúgio (CASC-Migrante), da Secretaria Nacional de Justiça (e vinculado ao Ministério da Justiça). Criado no final de 2013, o CASC poderia ser um dos canais de diálogo junto à pasta, uma das mais envolvidas com a temática migratória no governo federal. Esse conselho chegou a ser ampliado em 2014, no principal ato concreto do último dia da Conferência Nacional de Migrações e Refúgio (Comigrar), mas não voltou a ser convocado desde então.
Procurado pelo MigraMundo, o Ministério da Justiça informou que “não há intenção de realizar audiência ou consulta pública no momento” sobre a Lei de Migração. Por outro lado, fontes ouvidas pelo MigraMundo informaram que o Ministério da Casa Civil tomou para si a tarefa de convocar consultas e audiências quando e da forma que julgar mais conveniente.
Pressão para manter conquistas
Apesar dos vetos presidenciais, a nova Lei de Migração ainda é considerada uma conquista dos movimentos sociais, dos migrantes e de entidades da sociedade civil organizada. Ela tem como paradigma principal a visão do migrante como um sujeito de direitos e deveres – ao contrário do Estatuto do Estrangeiro (revogado a partir de novembro), que vê todo e qualquer não-brasileiro como uma ameaça à soberania nacional.
Para Letícia Carvalho, assessoria de incidência política da Missão Paz e participante ativa no processo de tramitação da nova Lei de Migração, esses pontos não foram comprometidos pelos vetos e permitem retomar avanços que ficaram de fora no ato da sanção do texto final. “Temos de olhar sempre para o rol de princípios e garantias para os migrantes que estão na lei e que foram nela mantidos. Muitas das saídas para manter essas garantias ainda estão no conteúdo da lei e que não foram vetados”.
Há ainda possibilidade da lei entrar em vigor sem que o processo de regulamentação esteja finalizado, o que a deixaria dependente da interpretação que quem for aplicá-la – por exemplo, a Polícia Federal, que lida diretamente com os migrantes no seu dia a dia.
Vedovato vê como fundamental a continuidade da mobilização que marcou a tramitação da Lei de Migração no Congresso Nacional para evitar novas perdas além dos vetos. O caminho sempre é o da pressão feita pela sociedade civil”.
Letícia destaca ainda a importância que os coletivos e associações formadas por migrantes podem ter nesse processo. “Justamente agora com a lei de Migração e com a não proibição da atividade política, estamos entrando em um momento novo. Todos esses grupos que já existem e os que ainda vão se formar são de extrema importância para o debate, para que a nova lei venha a ser aplicada e que as normas ali presentes se transformem em demandas que tragam mudanças para a sociedade e para a vida de cada um deles”.