Centenas de pessoas resgatadas do mar aguardam autorização de governos para desembarque, em meio a impasses políticos e piora das condições climáticas
Por Rodrigo Borges Delfim e Mariana Araújo
Em São Paulo e Barcelona
As ONGs Médicos Sem Fronteiras e SOS Méditerranee retomaram as operações de resgate de migrantes no mar Mediterrâneo na última semana. E os primeiros números já são suficientes para mostrar o tamanho do drama naquela que é considerada atualmente a travessia mais letal do mundo.
O navio Ocean Viking, mantido pelas duas instituições e que substituiu o Aquarius, está com 356 pessoas a bordo resgatadas ao longo dos últimos dias próximo à costa da Líbia – e aguarda autorização para desembarcar os resgatados em um porto seguro europeu.
O apelo é dirigido especialmente aos governos da Itália e de Malta, os países mais próximos do Mediterrâneo Central.
“Vamos ver qual será a autoridade que nos oferece um porto”, declarou na última terça (13) à Agência Efe a administradora do SOS Méditerranée, Sophie Rahal.
Outra ONG que atua no Mediterrâneo está em situação semelhante. A Open Arms relata ter 147 pessoas em seu barco aguardando autorização para desembarque.
A piora nas condições climáticas no Mediterrâneo, deixando o mar mais agitado, é uma dificuldade a mais para as operações de resgate e para os resgatados.
Do outro lado da corda, os governos europeus continuam a manter a política linha dura contra os desembarques dos resgatados, sob o argumento de que as operações servem como incentivo para o tráfico de pessoas.
A Itália, que tem o líder de extrema-direita Matteo Salvini como vice-premiê e ministro do Interior, reafirma a política de manter os portos do país fechados para as embarcações de resgate
Os poucos desembarques recentes só ocorreram depois de longas negociações que envolveram o envio imediato de migrantes para outros países europeus, como França, Espanha e Portugal.
Mesmo a Espanha, que ganhou destaque no noticiário em 2018 ao receber o navio Aquarius – que havia sido rejeitado por Itália e Malta – tem tomado um outro caminho. Em novembro passado o governo passou a considerar a Líbia um porto seguro – apesar do país africano ser o ponto de partida das precárias embarcações que tentam a travessia pelo Mediterrâneo.
Ao fechar os portos, os países violam pelo menos seis tratados internacionais: de direito marítimo, convênio sobre busca e resgate marítimo, declaração universal de direitos humanos, convenção de genebra, carta dos direitos fundamentais da União Europeia e convênio europeu de direitos humanos.
Dados atualizados nesta quarta-feira (14) pelo Missing Migrants Project, mantido pela OIM (Organização Internacional para as Migrações), indicam que 1.659 pessoas morreram em rotas migratórias neste ano, sendo praticamente a metade delas (843) no Mediterrâneo.
Para entender
Por que existem ONGs e associações de busca e resgate no Mediterrâneo central?
Basicamente porque a Itália e Malta (consequentemente União Europeia) deixaram de fazer seu trabalho, eliminando as operações de resgate marítimo público que existiam, criadas a partir de 2013 com a operação Mare Nostrum, consequência direta das numerosas tragédias no mar naquele ano. O saldo da operação, segundo o Ministério do Interior italiano, é de mais de cem mil pessoas resgatadas.
Em 2014 a operação Mare Nostrum foi substituída pela Triton, e mais tarde sucedida pela Sofia – ambas controladas pela União Europeia. Foram reduzidos drasticamente o pressuposto e os técnicos de salvamento, enquanto o foco principal da operação passa a ser o controle de fronteiras e não o salvamento marítimo. A resposta é o imediato aumento do número de mortes no mar.
Assim, diante da falta de operações de busca e resgate por parte dos governos europeus, ONGs e particulares viram protagonistas dos salvamentos no Mediterrâneo
A princípio a Europa (basicamente Espanha, Itália e Malta) vê o convênio com ONGs de salvamentos como complementar à sua estratégia de vigilância, mas logo estas se convertem num problema por seu papel de testemunha da escalada de mortes e desaparições no mar, o maior desastre humanitário na história da União Europeia.
Por quê não os desembarcam na Tunísia ou em outro porto africano?
Nem a Líbia nem a Tunísia (países mais próximos da Zona S.A.R do Mediterrâneo Central) podem ser considerados portos seguros segundo o Direito Internacional.
A Líbia é um Estado falido, onde persiste um conflito armado pelo controle do território. Há uma disputa de milícias entre os que controlam Trípoli e o oeste do país e as tropas de Haftar, que dominam o sul e o leste. Um reconhecido pelas Nações Unidas e União Europeia e outro aliado do Egito e Emirados Árabes Unidos.
Mesmo nesse contexto, a Itália firmou com a Líbia em fevereiro de 2017 um acordo para treinar e equipar a Guarda Costeira de Trípoli, objetivando capacitá-la para fazer resgates no mediterrâneo e evitar que os migrantes cheguem à Europa.
No caso da Tunísia, embora não tenha nenhum conflito armado anunciado e seja signatário das convenções de genebra, não dispõe de uma lei de asilo – o que deixa os milhares de solicitantes de proteção internacional no país em um verdadeiro limbo jurídico e administrativo, sem direito a autorizações de residência ou a serviços sociais básicos.