Uma personalidade musical eclética, combinada a uma visão social e política sobre a própria carreira e existência. Assim é a cantora Jéssica Areias, angolana de Luanda, com passagem por Lisboa e radicada em São Paulo desde 2009, que também é compositora e preparadora vocal.
Presença frequente em eventos ligados à temática migratória, especialmente em São Paulo, a artista mantém atuação independente e está trabalhando na divulgação de seu segundo álbum, intitulado Matura, lançado em 2021. Nesta sexta-feira (10), o show será no SESC Santos, na cidade homônima no litoral paulista.
As influências musicais vão das raízes africanas ao fado e do jazz à MPB. A vivência em uma cidade cosmopolita como São Paulo é outro fator que também reverbera em sua obra, conforme contou Jéssica Areias ao MigraMundo.
“A grande diversidade de pessoas, com suas crenças, modos de estar e ser, dentro de uma pluralidade de culturas em São Paulo, criou em mim uma vontade profunda de buscar o meu lugar. Mais do que algum tipo de aceitação por parte de um grupo específico, mas entender qual a minha história e o meu caminho nessa construção de artista imigrante em São Paulo”.
Nessa mesma entrevista, que pode ser lida na íntegra a seguir, Jéssica Areias fala um pouco mais de sua trajetória, de planos futuros e também faz mais reflexões sobre o fato de ser mulher africana e trabalhar de forma independente com a arte em um país cheio de contradições como o Brasil. “É reiterar minha existência com o meu propósito enquanto artista”.
MigraMundo: Você vive no Brasil desde 2009, mais exatamente em São Paulo. O que essa cidade já influenciou ou não em sua obra?
Jéssica Areias: São Paulo me instiga constantemente a compreender mais a fundo a minha identidade e o meu propósito enquanto artista. A grande diversidade de pessoas, com suas crenças, modos de estar e ser, dentro de uma pluralidade de culturas em São Paulo, criou em mim uma vontade profunda de buscar o meu lugar. Mais do que algum tipo de aceitação por parte de um grupo específico, mas entender qual a minha história e o meu caminho nessa construção de artista imigrante em São Paulo. Nos últimos anos, o contato com o candomblé e a capoeira, duas manifestações populares que são a matriz da cultura brasileira, tiveram grande influência na minha obra e na artista que sou hoje. Me trouxeram a sensação de pertencimento, a necessidade de acessar as minhas raízes e enaltecê-las, como filosofia de vida, criação e afirmação de identidade. O acesso às minhas origens tem sido o mote da minha criação artística deste então.
Foram sete anos entre os dois primeiros álbuns da carreira, “Olisesa” (2014) e Matura (2021). Por que esse intervalo entre ambos?
Sou uma artista autônoma e independente, e vivo totalmente da minha arte. Professora de canto e cantora, assim vou construindo minha carreira. Infelizmente, ainda não tenho um empresário ou um investidor que viabilize financeiramente minha obra artística, assim como a grande maioria dos artistas autônomos e independentes deste país. Nesse sentido é um desafio muito grande materializar meus álbuns dentro de um tempo desejado e mercadologicamente favorável para a construção de uma carreira com visão sólida e crescente. Matura foi possível graças ao edital do Proac, em 2021, em plena pandemia. No entanto, as composições que o integram já existiam há mais de 5 anos. Mediante todos os desafios como artista, os editais de cultura do estado e do governo de são Paulo, seguem sendo meu maior respiro e esperança para seguir acreditando e viabilizando a minha trajetória profissional e artística.
Além do Brasil, parte da sua carreira também se desenvolveu em Angola e em Portugal. Cada qual tem um modo de falar português. Como conciliar essas características locais em sua obra? De que forma isso contribui com sua obra?
Sou Angolana, nasci e vivi 18 anos em Luanda, minha cidade natal, onde comecei a cantar profissionalmente aos 9 anos. No último ano do ensino médio fui viver em Lisboa, onde fiquei 3 anos, tendo minhas primeiras formações de técnica vocal, teoria musical e piano. Em 2009 me mudei para São Paulo para me licenciar em educação musical, e aqui estou há 14 anos, onde fiz pós graduação em regência coral, pedagogia vocal, e gravei 3 álbuns autorais, Olisesa (2014), Matura (2021) e Cantos de Origem (2023), este último em parceria com o artista, capoeirista e percussionista Cauê Silva. O contato com três culturas diversas, mas que têm em comum a língua portuguesa foi sem dúvida um dos fatores que facilitou todos os processos de integração, tanto em Lisboa quanto em São Paulo. Carrego referências musicais oriundas dos três países, que se integraram de forma mais natural ao vivenciar um pouco o contato com as mesmas nos países de origem. Naturalmente minhas referências angolanas, os N’gola ritmo, André Mingas, Felipe Mukenga e Paulo Flores, em diálogo com Amália Rodrigues e Mariza, cantoras de Fado, e os grandes nomes da MPB, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Maria Bethânia, entre tantos outros, se unificaram de forma mais profunda como inspiração para a artista que sou, mediante a minha chegada a cada país e a vivência de cada cultura.
A pergunta é curta, mas entendo que a resposta deve ser complexa: Como é ser artista, mulher, migrante e africana no Brasil?
É ser resistência. Ser artista autônoma e independente é fazer da minha existência um ato político por essência, é viver da crença em mim mesma, na certeza de que minha obra existe para transformar o meu microcosmo num lugar melhor, que seja leve, generoso, crie pensamento critico, com consciência de classe, social e política. Ser artista mulher é ter agregada a luta de coexistir numa sociedade extremamente machista e sexista, em que preciso provar o tempo todo minha competência e profissionalismo, pois meu currículo, formação acadêmica, performance, tempo de carreira ou experiência não são suficientes. Ser artista mulher africana de pele clara, é um desafio profundo para conseguir quebrar com a ideia estereotipada de existir um fenótipo específico para se ser oriunda e pertencer a uma determinada cultura ou país. Ser artista mulher africana de pele clara migrante no Brasil, é uma busca diária para criar um caminho possível, fora da caixinha que a sociedade entende como real e possível para mim. É reiterar minha existência com o meu propósito enquanto artista, criando caminhos não previsíveis, que se vão ditando ao longo destes 25 anos vivendo de Arte.
Além da carreira como artista, você já se engajou em trabalhos como a locução da animação “A espera – a vida de uma mulher angolana em São Paulo”, produzida pelo programa “Escravo, nem pensar”. O que representou para você esse tipo de ação?
Me senti muito honrada com o convite, por poder viabilizar a história de uma mulher angolana refugiada, realidade de uma grande parcela dos imigrantes africanos, e não só, residentes no Brasil. Uma ação social fundamental para denunciar o trabalho escravo, e sobretudo dar a conhecer essa realidade tão distante para a maioria das pessoas, mas que está mais perto do que nossos olhos queiram ver. Enaltecer a força, coragem e resiliência da mulher negra angolana mediante uma realidade tão cruel, reitera meu papel social e politico como artista.
Quais os próximos planos, seja como artista, seja em causas sociais?
No próximo ano, pretendo gravar meu novo álbum autoral, tendo como fio condutor minha existência como artista imigrante, há 17 anos longe de casa.
Serviço
Jéssica Areias e o show “Matura”
Local: Sesc Santos
Endereço: Rua Conselheiro Ribas, 136 – Aparecida – Santos
Horário: 20h
Ingressos: R$ 12 (credencial plena) / R$ 20 (meia entrada) / R$ 40 inteira
Informações: https://www.sescsp.org.br/programacao/jessica-areias-4/