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quinta-feira, novembro 21, 2024

Trabalho escravo em vinícolas do Rio Grande do Sul, xenofobia e preconceito: entenda o caso e os desdobramentos

O caso de trabalho análogo ao de escravo em vinícolas gaúchas evidenciou uma série de mazelas e preconceitos que persistem na sociedade brasileira. Pesquisadora chama a atenção para a necessidade de políticas de direitos humanos e educacionais de caráter amplo

Atualizado às 11h15 de 10.mar.2023

Trabalho escravo, xenofobia, crítica a programas sociais, preconceito, posicionamento empresarial dúbio, repercussão no meio político. Esses e outros elementos se fizeram presentes em conjunto na descoberta da ocorrência de trabalho análogo à escravidão na indústria vinícola na região serrana do Rio Grande do Sul e nos seus desdobramentos.

O caso veio à tona no final de fevereiro, quando 207 trabalhadores foram resgatados de um alojamento em Bento Gonçalves, onde eram submetidos a “condições degradantes” e trabalho análogo à escravidão durante a colheita da uva para produção de suco e de vinho.

Diferente de outros casos recentes de trabalho análogo à escravidão, a ocorrência envolvendo as vinícolas ganhou repercussões tanto no meio empresarial quanto político e social. O fato do vinho ser um produto mais associado à elite contribuiu para esse maior destaque. As empresas também estão entre os nomes mais importantes do setor na região: Cooperativa Garibaldi, Salton e Aurora.

No desdobramento mais recente do caso, o Ministério Público do Trabalho anunciou em 10 de março um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para as três vinícolas, que terão de pagar um total de R$ 7 milhões de indenização por danos morais individuais e coletivos. Desse montante, R$ 2 milhões devem ser destinados aos trabalhadores resgatados e R$ 5 milhões devem ser revertidos para entidades, fundos ou projetos voltados para a reparação do dano.

Por outro lado, o caso ajuda a evidenciar mazelas existentes nas relações de trabalho no país, especialmente em setores que costumam contar com menos destaque, como o dos trabalhadores sazonais – de pessoas que vão trabalhar durante um certo período em uma atividade, exatamente o caso dos resgatados no Rio Grande do Sul.

“O novo/velho episódio fala o quanto ainda precisamos avançar no nível de fiscalização e proteção dos direitos dos trabalhadores sazonais, o que pouco é discutido”, aponta a socióloga Lidiane Maciel, do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Cartografias Sociais (NEPACS) da Universidade do Vale do Paraíba (Univap), que estuda essetipo de atividade.

Entenda o caso

Em 22 de fevereiro, 207 trabalhadores foram resgatados de um alojamento em Bento Gonçalves, na Serra do Rio Grande do Sul, onde eram submetidos a “condições degradantes” e trabalho análogo à escravidão durante a colheita da uva. A operação foi realizada pela Polícia Rodoviária Federal (PRF), Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e Polícia Federal (PF), após três dos funcionários coonseguirem fugir do alojamento e fazer a denúncia à PRF na cidade vizinha de Caxias do Sul.

O grupo foi contratado por uma empresa terceirizada, a Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde LTDA, que oferecia a mão de obra para produtores rurais da região e para as vinícolas Aurora, Cooperativa Garibaldi e Salton. A maioria dos trabalhadores resgatados é natural da Bahia e foi para o Rio Grande do Sul para trabalhar na safra da uva, com a promessa de receber salário mensal de R$ 3 mil, além de acomodação e alimentação.

No entanto, ao chegarem no RS, os trabalhadores relataram enfrentar atrasos nos pagamentos dos salários, violência física, longas jornadas de trabalho e oferta de alimentos estragados. Também disseram que eram coagidos a permanecer no local, sob a pena de pagamento de uma multa por quebra do contrato de trabalho. Além disso, foram relatados casos de violência com choque elétrico e spray de pimenta.

Os 207 trabalhadores resgatados receberam acolhimento no ginásio Darcy Pozza, em Bento Gonçalves, na quinta-feira (23). Deles, 194 voltaram para a Bahia em ônibus fretados, quatro ficaram na cidade e nove foram para outros municípios.

Trabalhadores resgatados de condição análoga à escravidão em vinícolas no RS. (Foto: Reprodução/RBS TV)

Repercussões

Questionadas inicialmente, as vinícolas disseram por meio de notas que repudiam qualquer tipo de atividade análoga à escravidão, mas que desconheciam a situação dos trabalhadores encontrados junto à empresa terceirizada. No entanto, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) disse que as vinícolas podem ser responsabilizadas e ter que pagar direitos trabalhistas aos resgatados.

Apesar da repercussão e das cobranças por parte de organismos de fiscalização, parte do setor vinícola adotou uma postura de autoproteção e chegou a minimizar a ocorrência de trabalho escravo.

O Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves soltou uma nota no dia 25 de fevereiro, na qual afirmou que que a situação descoberta na cidade tem relação com “um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade” que causa “falta de mão de obra” na cidade.

“Há uma larga parcela da população com plenas condições produtivas e que, mesmo assim, encontra-se inativa, sobrevivendo através de um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade”.

Outros organismos ligados à área econômica, no entanto, reagiram de forma bem diversa à entidade da cidade gaúcha.

A Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (ApexBrasil), por sua vez, informou na terça-feira (28) que suspendeu a participação das vinícolas Aurora, Cooperativa Garibaldi e Salton de suas atividades em razão do ocorrido na Serra Gaúcha. A entidade é vinculada ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (Mdic), que promove os produtos brasileiros fora do país.

Lidiane Maciel reforçou o coro dos organismos de controle e rechaçou a responsabilização apenas da terceirizadora de mão de obra. “Quando as empresas dependem do trabalhador migrante, elas devem estar preparadas para recebê-los adequadamente, a empresa precisa ter uma política interna de alojamento”.

Por meio de nota, a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) recomendou às igrejas que busquem “vinhos de proveniência sobre as quais não existam dúvidas a respeito dos critérios éticos na sua produção”. A medida atinge diretamente a Salton, que é fabricante do vinho Canônico, muito usado em celebrações católicas.

Além disso, nas redes sociais multiplicam-se as manifestações de repúdio de usuários às empresas envolvidas, incluindo o incentivo ao boicote de seus produtos.

O caso do vereador do discurso xenófobo

Uma das repercussões mais agudas do caso se deu na esfera política. Em pronunciamento na Câmara Municipal da cidade gaúcha, na terça-feira (28), o vereador Sandro Luiz Fantinel, ligado ao agronegócio local, disse que os acontecimentos eram “exagerados” e “midiáticos”. Além disso, fez uma manifestação xenófoba ao falar que os empresários da região não deveriam mais contratar “aquela gente lá de cima” e buscar mão-de-obra na Argentina.

“Não contratem mais aquela gente lá de cima. Conversem comigo, vamos criar uma linha e vamos contratar os argentinos. Porque todos os agricultores que têm argentinos trabalhando hoje só batem palma. São limpos, trabalhadores, corretos, cumprem o horário, mantêm a casa limpa e no dia de ir embora ainda agradecem o patrão pelo serviço prestado e pelo dinheiro que receberam”.

As falas xenófobas de Fantinel foram repudiadas por políticos de todo o Brasil. O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, afirmou que esse tipo de sentimento não tem lugar na sociedade gaúcha.

“Não admitiremos esse ódio, intolerância e desrespeito na política e na sociedade. Os gaúchos estão de braços abertos para todos, sempre”.

O deputado federal Túlio Gadêlha, por sua vez, também defendeu punição exemplar para o político.

“O Sr. Sandro Fantinel, do “Patriota” de Caxias do Sul, defendeu que empresas agrícolas contratem argentinos. Ofendeu com ataques racistas e xenofóbicos os nordestinos, e como se não bastasse, tentou normalizar o trabalho escravo. Que seja cassado e responda pelos crimes de ódio”, escreveu no Twitter.

Após a repercussão do caso, Fantinel foi expulso do partido ao qual estava filiado, o Patriota. Ao anunciar a medida, em 1º de março, a legenda considerou o pronunciamento “desrespeitoso e inaceitável”.

“O discurso está maculado por grave desrespeito a princípios e direitos constitucionalmente assegurados, à dignidade humana, à igualdade, ao decoro, à ordem, ao trabalho, já que se referem de forma vil a seres humanos tristemente encontrados em situação degradante”, diz trecho da nota divulgada pelo partido.

Além da expulsão da legenda, Fantinel também virou alvo de um processo de cassação do mandato como vereador em Caxias do Sul.

Em nota, a Associação Educadora São Carlos (AESC), que congrega instituições de acolhida e orientação a migrantes na serra gaúcha, repudiou as declarações recentes que expressaram xenofobia e que tentaram minimizar o episódio de exploração laboral.

“Consideramos inadmissível, em um país de dimensões continentais como o Brasil, qualquer tentativa de justificar violações da ordem jurídica desfigurando perfis étnicos, transformando-os retoricamente em arquétipos caricatos, preconceituosos e ofensivos a culturas que, juntas, enriquecem nosso país. Sendo a Lei fundamental para a manutenção da ordem social fraterna, cumpre a cada cidadão e entidade zelar por seu cumprimento, em especial junto àqueles que, pela forma representativa de democracia vigente, exigir igual correção junto aos Poderes”.

O que vem pela frente?

Em entrevista coletiva em 2 de março, em Genebra (Suíça), o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, afirmou que uma reunião de emergência foi convocada por seu ministério para a semana que vem. Um dos objetivos, segundo ele, será o de reavaliar o plano nacional de erradicação do trabalho escravo e considerar se novas medidas terão de ser tomadas.

“Nem de longe isso é um caso isolado. O Brasil é um país que possui problemas que ainda levam à reprodução da violência contra os trabalhadores”, disse o ministro, que não demonstrou surpresa com as declarações das empresas envolvidas, sugerindo que o que ocorreu é resultado das políticas sociais.

O jornalista Leonardo Sakamoto, diretor da Repórter Brasil, referência na cobertura sobre casos de trabalho escravo e de denúncia dessas práticas, lembrou que o trabalho escravo está presente em mais áreas do que parece em princípio, incluindo aquelas mais presentes no cotidiano urbano.

“Temos ‘escravizados do vinho’, mas também da madeira, do bife, do couro, do aço, da soja, do algodão, do café, da laranja, da erva-mate, da batata, da cebola, da mandioca, do ouro, das roupas, dos bordéis, da construção. E claro, em nossas casas, com o trabalho escravo doméstico”, ressaltou

A socióloga Lidiane Maciel ressalta a importância de uma resposta mais ampla para a questão do trabalho análogo à escravidão.

“Não adianta apenas “estourar” o alojamento. São necessárias políticas sociais que acolham devidamente esses trabalhadores, após episódios como esses, incluindo as educacionais, de assistência social e de perspectivas de trabalho legal. Do contrário, eles voltarão a situações como as relatadas no caso”.

A pesquisadora lembra ainda que essa política educacional também deve ser focada em Direitos Humanos e Cidania, de forma a combater manifestações xenófobas como as do vereador de Caxias do Sul.

Como denunciar trabalho escravo

Denúncias de trabalho escravo podem ser feitas de forma sigilosa no Sistema Ipê, sistema lançado em 2020 pela Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT) em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Além disso, dados oficiais sobre o combate ao trabalho escravo no Brasil estão disponíveis no Radar do Trabalho Escravo da SIT.

Desde a criação dos grupos especiais de fiscalização móvel, base do sistema de combate à escravidão no país, em maio de 1995, mais de 60 mil trabalhadores foram resgatados e R$ 127 milhões pagos a eles em valores devidos.

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