Quem vai aos domingos pela manhã à avenida Paulista, em São Paulo, provavelmente já deve ter notado a presença constante de um ato contra a guerra na Ucrânia, que completou um mês na quinta-feira (24). E enquanto houver guerra, haverão protestos como esses.
Essa é a promessa da comunidade no Brasil engajada nessas ações, que unem russos, ucranianos e outras nacionalidades que fizeram ou não parte da antiga União Soviética em diferentes cidades.
Em comum entre tais mobilizações há o desafio de mantê-las à medida em que o conflito se prolonga, como forma de conscientizar a sociedade brasileira e prestar apoio aos afetados pela guerra na Ucrânia.
Do WhatsApp para a rua
“Todo domingo, das dez da manhã até por volta do meio-dia, a gente se reúne nesse mesmo local até a guerra terminar. Esse é o nosso combinado. E qualquer pessoa que seja favorável à nossa causa de acabar com o conflito, de denunciar a agressão de Putin contra a Ucrânia é só aparecer por lá”, contou a socióloga e coordenadora acadêmica da Cátedra Sérgio Vieira de Mello (ACNUR) para refugiados na UFSCar, Svetlana Ruseishvili. “Russa da diáspora, nascida na Geórgia e criada em Kiev [capital da Ucrânia]”, resumiu ela, sobre sua origem e trajetória.
Segundo a socióloga, uma média de 40 pessoas toma parte na manifestação semanal na Paulista, entre integrantes da comunidade de imigrantes de países da antiga União Soviética e outros, incluindo brasileiros.
O primeiro ato contra a guerra ocorreu na sexta-feira, 25 de fevereiro, dia seguinte ao começo da invasão, no vão livre do Masp (Museu de Arte de São Paulo).
“Criamos um grupo no WhatsApp ainda na quinta-feira [24 de fevereiro], com 70 pessoas mais ou menos, e aí definimos o horário, levamos cartazes. Na sexta-feira já estávamos no vão livre do Masp. Não conseguimos reunir muita gente, mas foi tudo muito rápido. Vieram muitos ucranianos e russos, alguns brasileiros, foi um dos atos mais calorosos”, recordou Ruseishvili.
Um segundo ato ocorreu durante a semana seguinte, quando foi notada a presença de movimentos políticos, especialmente de militantes do MBL (Movimento Brasil Livre). A ação foi mal vista pela comunidade e levou ela a evitar a interação com tais grupos, para evitar um sequestro de suas pautas.
A partir do terceiro ato, para permitir a presença de pessoas que cumprem expediente comercial ao longo da semana, a opção foi por aproveitar a Paulista aberta aos pedestres aos domingos para fazer a mobilização semanal. Uma tarefa que, de acordo com a organizadora, é fruto de um grande esforço para evitar que a guerra também cause conflitos e desavenças em meio à comunidade.
“A ideia que perdura até hoje, não sem conflitos e com muito esforço, é que a gente venha a se manifestar contra a guerra como um grupo unido, independente do rancor, da tristeza que abalou a comunidade. Aqui a gente nunca olhou para o fato da pessoa ser da Ucrânia ou da Rússia. Sempre tivemos contato independente dessa origem nacional”, contou Ruseishvili.
“Claro que não posso falar por todos, mas aqui não sentimtimos essa divisão, nos falamos todos. Pelo que vejo a gente tem uma posição unida [contra a guerra]. Você pode ter cidadania de um país e ser etnicamente próximo de outro”, complementou a psicóloga, professora e tradutora russa Alina, que vive há dez anos no Brasil e também integra a organização.
Alina pediu que o sobrenome não fosse citado na reportagem por receio de impactos sobre a família, que permanece em Moscou e também é contrária ao governo Putin, que tem reprimido os atos contra a guerra. Além disso, os manifestantes tem sido presos e sujeitos a pena que chegam a 15 anos de prisão.
“Se eu estivesse na Rússia, estaria protestando também”, observou Alina, mesmo ciente dos riscos.
Mobilização, alívio e vazio
Além da capital paulista, outras cidades brasileiras como Curitiba, Brasília e Salvador também têm registrado manifestações de ucranianos, russos e outras nacionalidades contra a guerra.
A ilustradora ucraniana Anastasiia Syvash marca presença semanalmente em pontos turísticos da capital baiana, onde vive, com cartazes e informações sobre a guerra. O objetivo é consicentizar tanto turistas quanto brasileiros sobre a situação na terra natal.
“O Brasil é muito distante do meu país, e as pessoas daqui não tem sido afetadas pela guerra. Algumas ouvem sobre, outras viram as notícias nas primeiras semanas. A maioria das que nos abordam são turistas (algo em torno de 75%). A primeira semana foi boa porque a guerra estava noticiada em todo lugar e era tempo de Carnaval. Agora o público que passa o tempo na praia e assiste ao pôr-do-sol é mais difícil de alcançar. Mas continuamos divulgando informações, fazendo fotos e buscando doações para os afetados pelo conflito”, descreveu. Os protestos ocorriam inicialmente no Pelourinho e no momento são realizados na região da Barra.
Na capital baiana, Syvash conta agora com a ajuda da mãe, de 63 anos, recém-chegada de Kharkiv, segunda maior cidade ucraniana e uma das mais afetadas pela guerra. “Agora as pessoas podem ver com os próprios olhos alguém que sobreviveu à guerra. Creio que isso faz diferença”.
Mas o alívio de tê-la ao lado não preenche a sensação de vazio e tristeza com o conflito. “Tentamos pensar positivo, estamos felizes porque estamos juntas agora. Mas também nos sentimos como desabrigadas em nossos corações . Nós nem sabemos se nossa casa continua de pé”, observou a ilustradora.
Além de mãe, Syvash conta ainda com a ajuda eventual do marido brasileiro, que tem focado no trabalho para ajudar a família no Brasil e na Ucrânia. E também com a amiga belarussa Volha Yermalayeva Franco, representante da Embaixada Popular de Belarus no Brasil. O coletivo foi criado pela diáspora do país europeu que se posiciona contra o governo de Aleksandr Lukashenko, um fiel aliado de presidente russo Vladimir Putin.
“Condenamos a colaboração vergonhosa do ditador Lukashenko na guerra da Rússia contra a Ucrânia. Participamos e organizamos manifestações de solidariedade com o povo ucraniano no Brasil. Para nós é muito importante também nos posicionar contra o regime belarusso “, resume a ativista, que está em solo brasileiro desde 2011. O coletivo do qual Volha faz parte também organiza manifestações em Brasília.
Ucranianos no mundo e no Brasil
Segundo as Nações Unidas, até esta sexta-feira (25) um total de 10 milhões de ucranianos já haviam sido obrigados a se deslocar de suas casas em razão da guerra. Desse total, 3,7 milhões se toraram refugiados, deixando o país em direção a outras nações. A maior parte (2,1 milhões) está na Polônia.
Mesmo distante do conflito, o Brasil também recebeu ucranianos desde o começo do conflito. De acordo com dados do governo brasileiro, entre 24 de fevereiro [data de início da guerra] e 19 de março chegaram 894 ucranianos.
No último dia 3 de março o Brasil publicou no Diário Oficial da União a portaria que regulamentou a concessão de visto humanitário para ucranianos. O documento vale até o final de agosto.
Segundo nota conjunta dos Ministérios da Justiça e das Relações Exteriores, que assinam a portaria, o visto humanitário será emitido pelas Embaixadas do Brasil em Varsóvia (Polônia), Budapeste (Hungria), Bucareste (Romênia), Praga (República Tcheca) e Bratislava (Eslováquia). Caso os interessados já estejam em território brasileiro, devem se dirigr a uma delegacia da Polícia Federal.
Os portadores desse tipo de visto humanitário têm um prazo de 90 dias após o ingresso no Brasil para se registrarem na Polícia Federal, onde ele é transformado em uma autorização de residência temporária de dois anos. Com ela, o imigrante fica liberado para trabalhar em solo brasileiro.
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