Por Rafaela Carvalho
No início de setembro, meu celular começou a apitar com mais frequência que o normal – eu estava morando em Budapeste, na Hungria, quando vários amigos começaram a me enviar mensagens perguntando se eu estava bem. “Você está acompanhando a crise migratória? Parece que a cidade vai ficar cheia de sírios chegando do Oriente Médio”, alertavam diversos conhecidos.
Já tinha ouvido falar alguma coisa sobre a situação – sabia que era algo grave, e que milhares de pessoas estavam abandonando países como Síria, Iraque e Afeganistão em busca de uma vida melhor na Europa. Mas, como qualquer ligo no assunto, satisfiz-me apenas com as informações básicas. Mas só até eu perceber que aquilo não era suficiente.
A Keleti Pályaudvar é a maior estação de trem de Budapeste. Por lá, dezenas de composições passam todos os dias, rumando para outras cidades e diversos países da Europa – entre eles, a Alemanha, principal ponto B de civis que tinham os países citados anteriormente como ponto A.
Para muitos refugiados, a Hungria foi um obstáculo quase tão intransponível quanto o Mar Mediterrâneo. Em todo o seu trajeto rumo à Europa Ocidental, nenhum país foi tão pouco receptivo quanto o do primeiro-ministro Viktor Orban. Alegando seguir à risca as regras do Espaço Schengen, ele dizia que os refugiados não seguiriam para a Alemanha sem cumprir normais legais de registro – o que, em uma situação calamitosa, era não só improvável de acontecer como pouco prático: registrar-se como refugiado implicaria permanecer alojado no país onde o registro acontece. Presos na Hungria, país que não os queria, esses sírios, iraquianos, afegãos e tantos outros civis de demais nacionalidades estavam encurralados.
O resultado foi aquele que saiu nas manchetes de portais do mundo todo durante o mês de setembro: a Keleti Pályaudvar ficou lotada de barracas, famílias e sentimentos à flor da pele: a esperança dividiu espaço com a revolta, o lixo e o mau cheiro dividiram espaço com doações generosas. Durante dias, vidas se transformaram em ponto de interrogação.
Eu acredito em histórias como a ferramenta mais poderosa para a realização de mudanças positivas no mundo. Acredito que ouvir os outros e encontrar pontos de intersecção entre a minha vida e a vida de terceiros é o que me motiva a levantar da cama diariamente. Por isso, quando soube que a estação havia ficado cheia, corri para lá e passei dias seguidos visitando as pessoas que se alojaram no lugar.
O número de famílias de refugiados aumentou drasticamente em 2015. E segundo o Alto Comissariado da ONU para os Refugiados (ACNUR), mais de meio milhão de pessoas já saíram dos seus países de origem, tanto no Oriente Médio quanto na África, buscando asilo na Europa. São famílias cansadas de guerra, miséria e falta de oportunidades.
Mas essas são coisas que eu já lia todos os dias nos portais. Já via números e estatísticas em vídeos. O que eu não via era o fator humano dessa crise toda. Quando chamamos a crise de “migratória”, fica fácil enxergar esses refugiados como bando – um grupo de gente perdida, que não sabe pra onde ir e segue como uma manada para o próximo lugar, esperando que ele seja menos inóspito que o anterior.
Mas era mais do que isso. A crise não é só migratória. Até porque, vale lembrar, a maioria dos refugiados que escapa de seus países do Oriente Médio fica presa na Turquia ou Jordânia, por exemplo, sem sequer conseguir cruzar o Mediterrâneo. Aqueles que conseguem fazer a travessia até as ilhas gregas são pessoas que ganhavam bons salários e que, agora, conseguem pagar para entrar em um bote inflável rumo à Europa.
Foram essas pessoas que encontrei na Keleti Pályaudvar: médicos, advogados, engenheiros, contadores, professores e estudantes de boas escolas. Todos estavam lá porque o seu caminho em busca de uma vida confortável tornara-se impossível perto de casa, mesmo vivendo em condições mais favoráveis.
Do casal cujos filhos nasceram no meio da travessia para a Europa até o homem que viajava sozinho e que havia escutado sua filha dizer “papai” pela primeira vez cinco dias antes, pelo telefone, acompanhar o acampamento que aquela estação se tornou foi um soco no estômago – um lembrete de que, embora todos sejamos humanos, nem sempre somos tratados como tal. Na busca por uma vida melhor, refugiados escutavam desaforos vindos não só de Viktor Orban, mas de europeus menos tolerantes, que pregavam (e estão pregando até agora) sua deportação. Não bastasse o obstáculo geográfico, eles também precisam enfrentar o estigma que carregam simplesmente por causa de suas origens. Embora os olhos do mundo estivessem voltados para eles, as burcas e a fisionomia falavam mais alto do que os gritos de socorro, e civis eram rapidamente rotulados de homens-bomba, terroristas, infiltrados.
Não há palavra que eu possa dizer aqui que seja capaz de pregar tolerância. Não há discurso bonito, frase motivacional, nada. Não existe uma forma de usar palavras para convencer alguém de que os refugiados que foram uma intersecção da minha vida são seres humanos merecedores da nossa empatia e compaixão. Não há boa história que eu possa contar que seja capaz de reformular um pensamento intolerante. O que ofereço aqui, então, é apenas um lembrete: você não vale mais do que ninguém só porque não está nas mesmas condições das pessoas que você rotula. Você não está mais seguro só porque as lentes de uma câmera de uma agência de notícias não estão capturando um momento difícil da sua vida. Você não é uma pessoa melhor porque está vivendo uma vida mais confortável.
Você, assim como aqueles refugiados, é só mais um. E por isso, precisa se lembrar de algo muito simples: e se fosse você? E se o mundo olhasse para você pronto para dar uma opinião superficial, para te transformar em estatística? E se você fosse parte da manada que sai nas capas de jornal e se transforma em escândalo mundial aos olhos do Primeiro Mundo?
E se fosse você?
Rafaela Carvalho é jornalista independente e acompanhou a movimentação de migrantes e refugiados que chegavam em Budapeste (Hungria) durante o mês de setembro. Ela ainda colaborou com diversos veículos do Brasil com coberturas sobre o tema.
[…] que pudemos ler na internet, vocês estiveram em 5 países, conversando até com a Rafaela Carvalho, que já colaborou com o MigraMundo. Vocês poderiam nos dar um cenário de como estava a situação em cada um deles na época das […]
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