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sábado, outubro 5, 2024

“Delitos de solidariedade”: veja países que criminalizam a ajuda a migrantes

“Encorajar” um estrangeiro sem documentação pode render punições que vão de multa a prisão, dependendo do país

Por Victória Brotto
Em Estrasburgo (França)
Atualizado às 15h00 em 12/07/18

A Hungria causou polêmica ao aprovar, no último dia 20 (em pleno Dia Mundial do Refugiado), uma lei que penaliza com até um ano de prisão quem ajudar um imigrante sem documentação. “Ajuda” entende-se por dar informações sobre pedido de asilo, comida ou hospedagem.

Mas a Hungria não está sozinha nesse clube. Outros países, como França, Espanha, Estados Unidos e Niger – país africano localizado em uma intensa zona de trânsito de pessoas na região do Saara –  também criminalizam de forma institucional a ajuda a imigrantes.

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Transportar, alojar, empregar ou “encorajar” um imigrante sem documentação ocasiona em multas que equivalem a milhares de reais e até em prisão, dependendo do país. Veja como é em cada um deles:

Hungria

A lei aprovada pelo Parlamento húngaro, dominado pelo partido nacionalista e eurofóbico Fidesz, do premiê Viktor Orbán, prevê penas de até um ano de prisão para indivíduos e grupos que ajudarem imigrantes irregulares – inclusive se o auxílio for para assessorá-los e informá-los sobre como pedir asilo. O rechaço às migrações, inclusive, é uma das bandeiras do governo húngaro.

Acampamentos improvisados além da cerca de arame farpado, vistos do lado húngaro da fronteira com a Sérvia.
Crédito: Bruna Kadletz – out.2016

A nova norma foi apelidada de “Lei Stop Soros“, em referência ao magnata e filantropo húngaro George Soros, considerado uma espécie de inimigo número um do governo Orbán, reeleito em abril para um terceiro mandato como primeiro-ministro. Soros é financiador de ações de promoção aos direitos humanos mundo afora, por meio da Open Society Foundation, além de uma universidade na capital húngara, Budapeste, que criticou as medidas do governo.

Apesar de protestos da comunidade internacional, o governo Orbán aproveita o embalo das urnas para ir além. Foi aprovada recentemente uma reforma da Constituição para incluir um artigo que explicite a proibição de reassentar “população estrangeira” na Hungria (com exceção de europeus) e declare que a composição da população do país “não pode ser modificada mediante vontade externa”.

Em 2015, a Hungria foi destaque no noticiário internacional como rota de passagem de migrantes e refugiados que chegavam à Europa por meio da chamada “Rota Balcânica“, com destino a países como Alemanha e Suécia.

França

Na França, a chamada “Lei sobre ajuda à entrada ou à permanência irregular”, datada de 2008, prevê penas de cinco anos de prisão e de multas de até 30 mil euros (quase R$ 150 mil) para quem “facilitar, direta ou indiretamente a entrada, circulação ou a permanência irregular de um migrante” (artigo L.622-1 da norma). Tal crime já é chamado pela imprensa e no mundo jurídico ironicamente de “delito da solidariedade”.

Ainda de acordo com a lei, a pessoa que cometer tal “delito de solidariedade” pode perder a carteira de habilitação por cinco anos, ser impedido de trabalhar por um período de cinco anos ou mais e perder o “elemento que utilizou para cometer tal delito” – como, por exemplo, um carro.

Solicitantes de refúgio e outros migrantes fazem fila para distribuição de comida, cobertores e roupas em Calais (França).
Crédito: HRW – ago.2017

Mas esses pontos começaram a ser rediscutidos no Conselho Constitucional na última segunda-feira (25). Isso porque o advogado Patrice Spinosi apelou à corte máxima da França colocando em questão a constitucionalidade de tal normativa, diante do “princípio de fraternidade que faz parte dos princípios do Estado francês”.

Spinosi faz parte do grupo de advogados de Cédric Herrou, de 37 anos, e Pierre-Alain Mannoni, ambos condenados em 2017 a cinco anos de prisão por ajudar estrangeiros. Herrou, habitante da pequena cidade de Saint-Dalmas-de-Tende, ficou conhecido por ter ajudado eritreus, etíopes e sudaneses vindos da Itália, os alojando em sua casa e os transportando “para onde queriam ir”.

Já Pierre também foi condenado pela mesma corte de Aix-en-Provence a dois meses de prisão, cabendo recursos, por ter acompanhado três eritreus dentro de uma estação de trem.

“Nós não podemos falar de penalidades quando simplesmente ajudam-se pessoas que estão na extrema dificuldade. Em primeiro lugar, tem-se o princípio de fraternidade ao qual nós chamamos atenção do Conselho Constitucional para que o reconheça”, afirmou o advogado em apelo à corte. “Este princípio faz parte da existência e da cartilha do Estado francês e que deve impedir a condenação dessas pessoas que não fizeram nada além de ajudar seres humanos, sem jamais tirar vantagem”, completou o defensor.

O advogado ainda afirmou que o governo francês deve, sim, prever punições severas para traficantes de pessoas ou qualquer outra pessoa que tire vantagem de estrangeiros em situações difíceis. “Mas, a partir do momento que essa ajuda é desinteressada e humanitária, essas pessoas não devem ser julgadas nem condenadas”, afirmou. “É bem essa diferenciação fundamental que deve ser contemplada pelo Conselho Constitucional”.

No último dia 6 de julho, o Conselho Constitucional da França (instância jurídica máxima do país, como o Supremo Tribunal Federal brasileiro) descriminalizou a ajuda ao estrangeiro em situação irregular no país, instaurando o chamado “princípio de fraternidade”.

Com isso, todas as ações de ajuda em alojar e à circulação do estrangeiro sem documentação com fins humanitários ficam isentadas de processo penal. No entanto, tal isenção não é dada à ajuda à entrada no território francês – nas palavras da Corte, “uma vez que tal ajuda se configura, por princípio, uma situação ilícita”.

Níger

Sob a falsa noção de que a maioria dos africanos que migram possuem a Europa como destino final, organizações europeias de controle de imigração têm injetado dinheiro e ajudado países como o Níger e a Líbia a controlarem suas fronteiras.

Segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM), 80% dos africanos que saem de seu país vão para nações vizinhas. E a maioria deles transita na região do deserto do Saara – o que, segundo a entidade, transformou o Níger em “um intenso reduto de fiscalização e prisões”.

Migrantes no norte do Níger, rota de passagem para outros países africanos da região do Saara.
Crédito: ACNUR

É o caso da cidade de Agadez, ao norte do país.  Por ser, segundo especialistas europeus, a região por onde passam a maioria dos migrantes africanos que cruzarão o Mar Mediterrâneo rumo à Europa, a Missão Europeia para a região do Sahel Niger (EUCAP) abriu um escritório na cidade em 2017. E por meio de colaborações como o programa New Migration Partnership Framework  (NMPF), incentiva o governo do Niger a combater o tráfico de pessoas e a controlar o fluxo migratório.

O problema é que com o endurecimento das normas, guias turísticos e qualquer pessoa que transporte mais de 30 pessoas em uma van podem, potencialmente, ser consideradas contrabandistas de pessoas – os chamados “coiotes”.

“Na região de Agadez (na fronteira com a Líbia e com a Argélia) qualquer um que organize viagem com mais de 30 pessoas, como guias turísticos, por exemplo – pode ser acusado, potencialmente, de participar do tráfico de migrantes ilegais, e pode ser preso e sentenciado”, denuncia o antropólogo da Universidade de Paris 1-Sorbonne Julien Brachet, no último dia 20, no portal theconversation.com, portal de estudos do centro de Pesquisas para o Desenvolvimento da Universidade de Sorbonne.

Pela lei do Níger, transportar ou simplesmente acolher em sua casa um estrangeiro – não importa se ele tenha documentos ou não – pode levar a pessoa à prisão por até 30 anos e ser sentenciada a pagar uma multa de até R$ 163.100.

“E você não precisa ser preso “em flagrante” para ser preso e sentenciado. Pessoas que dirigem vans ou caminhonetes podem ser automaticamente consideradas como coiotes.  Eles podem os prender a dezenas de quilômetros de qualquer fronteira, baseados simplesmente na presunção de culpa”, afirma Brachet.

Espanha

Na Espanha, quem ajudar com abrigo, comida e trabalho um imigrante sem documentos também pode pagar caro – as multas equivalem a valores entre R$ 130 mil e 230 mil.

Datada de 2011, a Lei Orgânica sobre Direitos e Liberdades de Estrangeiros prevê multas para o empregador que der trabalho a um estrangeiro sem permissão para trabalhar, além de deportação do trabalhador.

Já se um espanhol se comprometer a se ocupar de um visitante por meio da chamada “carta-convite” (documento que dá ao visitante o direito de permanecer por três meses em solo espanhol) e se tal visitante decidir estender a sua estadia sem visto, o cidadão espanhol será punido com uma multa equivalente a R$ 23 mil.

Na época da aprovação da lei, o diretor-geral da seção espanhola da Anistia Internacional, Esteban Beltrán, se pronunciou em entrevista à BBC Brasil dizendo que a norma “desrespeitava todos os direitos básicos”. “Está escrita de forma a mostrar os imigrantes como seres descartáveis em vez de tratá-los como pessoas que também têm direitos.”

A Comissão Espanhola de Ajuda ao Refugiado (CEAR) também se pronunciou na época, chamando a lei de “vergonhosa” pois estaria “distorcendo o papel da ajuda humanitária”. “Querem nos transformar de um povo solidário (com os imigrantes) em fiscais de imigração, e isso é inaceitável”, afirmou o então secretário-geral da CEAR, Alfredo Abad em comunicado à imprensa.

Estados Unidos

Datada do começo do governo de Donald Trump, a lei SB1070, do Estado do Arizona, criminaliza quem transportar, alojar ou empregar um estrangeiro que não tenha visto de permanência do país em ordem.  As penas podem ir até seis meses de prisão e uma multa equivalente a R$ 7 mil não só a ajuda, mas também o ato de um imigrante com a documentação em dia de ajudar qualquer familiar que esteja em uma situação irregular.  É chamada “Segurança Pública do Interior dos Estados Unidos”, determinada na seção 6.

Bandeira dos EUA em noite de neblina no Empire State Building, em Nova York.
Crédito: Rodrigo Borges Delfim/MigraMundo – mai.2013

“Tal lei dá um guia e promove regulamentações que irão assegurar o cumprimento de penas e o pagamento de multas para qualquer estrangeiro ilegal nos Estados Unidos e também para aqueles que facilitarem a sua presença nos Estados Unidos”, afirma a Secretaria dos Assuntos Internos, em comentário no texto da lei.

Entretanto, juristas norte-americanos afirmam que o termo “ajuda” não é claramente explicado na lei, dando margem para o que chamam de “política do medo”.

“O governo faz, com isso, um estoque deliberado do medo: como não se sabe direito o que é ajudar um imigrante, a população não o faz e exclui qualquer imigrante, tenha ele documentação ou não”, afirma Kristie de Peña, conselheira de política imigratórias do Niskanen Center, em artigo publicado no site The American Conservative.

“Usemos a palavra “transportar” como exemplo. Certamente se eu colocar um estrangeiro no meu carro e exigir dinheiro para cruzar a fronteira, uma acusação judicial me parece racional. Mas e se eu oferecer uma carona a imigrante até uma clínica médica do outro lado da fronteira?”, questiona Kristie. “Pela jurisprudência, isso seria visto como uma ajuda acidental, mas mudaria todo o cenário se fosse uma carona para o trabalho”.

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