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quinta-feira, dezembro 26, 2024

Uma série sobre grave e generalizada violação de direitos humanos e o reconhecimento de refugiados pelo Brasil – parte 5: Burkina Faso

Situado na volátil região do Sahel, Burkina Faso tem um histórico de instabilidades oriundas da herança colonial europeia e é um dos países com cidadãos refugiados no Brasil

Por Anna Paula Ramos
Do ProMigra

O ponto inicial para entender a conjuntura da Burkina Faso, que desencadeia o deslocamento forçado, é a sua localização geográfica na África. Esse país integra uma região denominada de “Sahel”, que contempla os seguintes territórios: Gâmbia, Senegal, a parte sul da Mauritânia, o centro do Mali, o norte do Burkina Faso, a parte sul da Argélia, Níger, a parte norte da Nigéria e dos Camarões, a parte central do Chade, o centro e o sul do Sudão, o norte do Sudão do Sul e a Eritreia.

Vista como um cinturão divisor do continente africano em duas partes, a África islâmica, ao norte, e, ao sul, a parte cristão, a região do Sahel é extremamente volátil. Isto se dá por um conjunto de adversidades – indo desde das consequências do aquecimento global, até a atuação dos grupos terroristas, como o Estado Islâmico e o Al-Qaeda -, que conectam esses países, fazendo com que haja o transbordamento dos acontecimentos de um para os seus vizinhos. Como a maioria dos governos estatais são fracos, a única solução, em busca de se ter uma condição digna de sobrevivência, é migrar

No que se refere à Burkina Faso, há uma soma de índices comprobatórios dessa situação. Dos estimados 22,1 milhões de cidadãos em 2021, 40,1% vivem abaixo da linha de pobreza, fazendo com o país ocupe a 144ª posição entre 157 países no índice de capital humano estabelecido pelo Banco Mundial e a 184ª posição entre 191 países no índice de desenvolvimento humano (IDH) divulgado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).

Dados de 2020 apontaram que 27,3% das crianças do país sofriam de desnutrição crônica e 3,3 milhões de pessoas foram afetadas pela insegurança alimentar. Outra questão preocupante, que assola diretamente as crianças burquinenses é a violência. Estima-se que metade delas são expostas à violência de gênero ou a maus-tratos. No caso das meninas, a estimativa é que 82% sofrem ou já sofreram abusos. Além disso, devido à instabilidade na região, o número de escolas fechadas aumentou de, aproximadamente, 3.000 em novembro de 2021 para 6.334 escolas em 31 de março de 2023.

Consequentemente, no primeiro semestre de 2023, cerca de 4,7 milhões de burquinenses necessitavam de assistência humanitária, o que corresponde a mais de 20% de sua população. Até junho deste ano, mais de 67.000 pessoas buscaram asilo em países vizinhos, como, Mali, Níger, Costa do Marfim, Togo, Benin e Gana, que também passam por emergências humanitárias. Ademais, 2 milhões de burquinenses estão deslocados internos, fazendo com que o país viva uma das piores crises desse gênero na África, o que se agravou com a piora na conjuntura política desde janeiro de 2022.

Contexto político

Burkina Faso é uma democracia relativamente nova, tendo conquistado a sua independência da França em 1960, e com uma história política sendo marcada por golpes de Estados recorrentes. Num recorte temporal recente, pode-se trazer quatro golpes, que foram “bem-sucedidos” e ajudam a entender como se consolidou o cenário atual. 

O primeiro ocorreu em 1987, momento em que o militar Blaise Compaoré depôs o presidente, Thomas Sankara, e governou Burkina por 27 anos. Nesse período, construiu-se, gradualmente, o regime democrático no país com a instauração de uma Constituição e de eleições gerais. Compaoré se reelegeu consecutivamente entre 1996 e 2010 e, nas vésperas das eleições de 2014, tentou mudar as normas constitucionais para permitir a sua concorrência novamente à presidência.

Isso provocou uma revolta generalizada na população e, em outubro de 2014, Compaoré retirou o pedido de revisão constitucional, suspendeu o governo e foi forçado pelos militares a renunciar ao mandato. O civil e ex-diplomata, Michel Kafando, assumiu o governo de transição e instaurou a regra de que os militares ativos não poderiam concorrer a cargos políticos. A não concordância do exército a essa diretriz motivou um segundo golpe militar em setembro de 2015.

Em novembro do mesmo ano, foram realizadas novas eleições presidenciais e legislativas, que resultaram na vitória de Roch Marc ChrisHan Kaboré. Essa mudança presidencial não se converteu em grandes modificações políticas, já que Kaboré ocupou cargos importantes na gestão de Compaoré. Com isso, o grau de descontentamento foi se agravando tanto da população quanto dos militares.

O principal motor dessa insatisfação foi o modo como o governo lidava com a insurgência de grupos terroristas alastrada no país desde 2015, que era consequência direta da situação vivida pelos demais países do Sahel, principalmente por Mali. A dinâmica da proliferação de terrorismo em Burkiana Faso se deu, sobretudo, com os grupos nacionais criminosos se vinculando com a Al-Qaeda e, em menor medida, com o grupo terrorista Daesh, que se autointitula Estado Islâmico, o que provocou uma elevada perda do domínio territorial do Estado. Segundo a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental,  40% do país é controlado pelos extremistas.

Uma das justificativas da atuação desses grupos em Burkina Faso é o fornecimento de agentes policiais do exército burquinense à MINUSMA (Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para Estabilização do Mali), que tem como propósito a promoção da estabilização da região, a proteção dos civis e o monitoramento dos direitos humanos. Por participar ativamente dessa missão, o país é considerado um inimigo legítimo da Al-Qaeda no Magrebe Islâmico (AQMI) e de seus grupos associados, já que esses veem essa ação como uma interferência ocidental direta na região do Sahel.

O ano de 2022 se iniciou com o terceiro golpe militar em 35 anos. Em janeiro, os oficiais do exército expulsaram o presidente Roch Marc Christian Kaboré, reeleito para um segundo mandato em 2020, e instituíram o líder militar Paul-Henri Damiba como autoridade interina. Porém, em setembro do mesmo ano, o capitão do exército, Ibrahim Traore, depôs Damiba, ao articular o quarto golpe militar e dissolver o governo provisório. Num comunicado na televisão nacional, os comandantes do exército alegaram que Traore não teve a capacidade de enfrentar os grupos radicais e, por esse motivo, assumiram o governo.

Burkina Faso continua sendo administrada por um governo militar de transição, formado em outubro de 2022, e, em abril de 2023, foi anunciada uma “mobilização geral” como uma ação do plano de recuperação do território do país perdido para os grupos terroristas, mas que ainda não obteve resultados efetivos.

Além disso, nos últimos meses, viu-se um aumento expressivo de um sentimento anti-ocidental no país advindo da população e que, em certa medida, alimenta o apoio aos governos militares, principalmente porque esses se empregam de um discurso “anti-França” como um das justificativas aos golpes de Estado. Um dos exemplos mais latentes dessa narrativa de oposição à influência ocidental, é a interação com a Rússia, como ocorrido na recente Cúpula Rússia-África 2023, realizada em São Petersburgo, Rússia. Nesse encontro, Traoré afirmou que a Rússia era uma “família” aos burquinenses, em razão de compartilharem a luta contra o nazismo e os resquícios do colonialismo, que ainda restam no continente.

Reconhecimento do Brasil

O primeiro movimento do governo brasileiro em vista de conceder refúgio aos cidadãos burquinenses foi a emissão da Nota Técnica nº 2/2021 pelo Comitê Nacional para os Refugiados (Conare). Para tal, este relatório foi dividido em cinco critérios de análise: 

(i) violência generalizada: a situação de insegurança é instaurada por dois grupos correlatos. O primeiro é formado pelos terroristas atuantes na região, principalmente na denominada “Tríplice Fronteira”, constituída pelas zonas fronteiriças com Mali e Níger, que, ao expandirem as suas ações nos últimos anos, adentram, cada vez mais, no cotidiano da sociedade burquinense como, por exemplo, com atentados aos templos religiosos. Já o segundo grupo se refere às forças estatais e paraestatais, que reagem a essas ações, em vista de frear o avanço do terrorismo no país. Todavia, devido ao grau de coerção empregado nessas respostas, há o aumento e a generalização dos níveis de violência e insegurança no país. 

(ii) agressão estrangeira: essa ocorre, principalmente, como consequência da disseminação dos grupos terroristas em Mali, que, ao disputam o domínio do governo e território, chocam-se com os grupos estrangeiros. Esses grupos são, na maioria dos casos, os agentes dos exércitos ocidentais como, por exemplo, da França, que interferem nesse país sob a justificativa de fomentar a estabilidade regional.  

(iii) conflitos internos: também são efeitos diretos do transbordamento das ações terroristas nos países vizinhos e cada parte do território burquinense possui a sua especificidade. Na região norte, atuam os grupos extremistas Ansarul Islam e JNIM, que, ao se articularem sob as tensões étnicas e o vácuo da atuação do Estado, catalisam a sua influência sobre a população local. Já no leste do país, observa-se a incidência fortificada do Estado Islâmico Grande Saara (IS-GS). Além disso, em diversas localidades há ataques contínuos ao exército por grupos terroristas vinculados à Al-Qaeda Maghreb/AQIM. 

(iv) violação maciça dos direitos humanos: com a atuação massiva dos grupos terroristas houve um acirramento das tensões entre as religiões, o que não era comum no país, já que o padrão era a tolerância pacífica. Além disso, há relatos de restrição à livre movimentação da população em certas localidades, tanto por agentes do governo quanto por extremistas armados. 

(v) circunstâncias que tenham perturbado gravemente a ordem pública: como o relatório foi emitido em 2021, não contemplou a conjuntura constituída após os dois golpes de Estado ocorridos no ano posterior. Por isso, pontuam duas circunstâncias, que abalam a ordem pública: os ataques de grupos extremistas às igrejas e aos templos e a crise sanitária da pandemia de covid-19.

O reconhecimento, por parte do Conare, de que a situação de Burkina Faso é de grave e generalizada violação de direitos humanos ocorreu em 24 de fevereiro de 2022, na 160ª reunião plenária do órgão, momento em que também foi reconhecido, sob o mesmo critério, a condição de Mali. O mecanismo adotado nesse processo foi equivalente ao aplicado aos cidadãos venezuelanos, afegãos e sírios.

Burquineses refugiados no Brasil

Em 2022, 120 pessoas advindas de Burkina Faso tiveram o refúgio reconhecido no Brasil, sendo que 110 eram homens e 10 eram mulheres. O elevado percentual de deferimento dos processos de solicitantes burquinenses (85,1%), fez com que o país fosse, ano passado, o terceiro a receber mais aprovação, ficando atrás da Venezuela e de Cuba. Além disso, o governo divulgou, em 10 de fevereiro de 2023, que zerou a fila de pedidos de refúgio de nacionais desse país.

A presidenta do Conare, Sheila de Carvalho, afirmou que, ao aceitar os solicitantes tanto de Burkina quanto de Mali, “Isso dá operacionalidade para o programa de atenção de políticas de refúgio para pessoas afrodescendentes. Também é uma iniciativa com objetivo de ter um olhar dedicado para aqueles que são mais impactados por crises humanitárias, como as pessoas negras.”. 

Todavia, com o agravamento na situação humanitária e política em Burkina Faso, bem como nos demais países do Sahel, devido, sobretudo, ao aumento dos golpes de Estados dos últimos anos, a tendência é que haja uma quantidade expressiva de solicitantes de refúgio no futuro, cabendo ao governo brasileiro manter o compromisso de acolhimento e inserção na sociedade a essas pessoas.

Sobre a autora

Anna Paula Ramos é mestranda no Programa de Pós- Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP, Unicamp, PUC-SP), bacharela em Relações Internacionais pelo Centro Universitário Álvares Penteado (FECAP) e membra do ProMigra – Projeto de Promoção dos Direitos de Migrantes da Faculdade de Direito da USP

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