Conheça a história e o trabalho da ONG África do Coração, organizadora da Copa dos Refugiados no Brasil. E seu trabalho vai além do futebol
Por Lya Amanda Rossa
Coluna Fronteira Aberta
Em São Paulo (SP)
Imagine um coração que vibra e é tão vasto quanto o segundo continente mais populoso do mundo, cabendo nele 54 nacionalidades e inúmeras culturas. Um coração assim é um coração africano, que pulsa em São Paulo em diferentes cores, idiomas e paixões pelo trabalho da ONG África do Coração, mais conhecida por ser a organizadora da Copa dos Refugiados. Mais do que dividir com os brasileiros o amor pelo futebol, a organização quer passar a sua mensagem e mostrar novas visões sobre a África.
“Algumas pessoas perguntam ‘lá na África tem avião?’ e eu respondo sim. ‘E tem aeroporto?’ Não, o avião joga uma corda e subimos (ironiza). Outro me perguntou se eu morava em uma árvore e eu disse sim, o embaixador do Brasil na África também mora em uma árvore”. Bom humor e tolerância, isso Jean Katumba tem de sobra. O congolês que está há 4 anos no Brasil e é coordenador e representante da organização tem também muitas mensagens para transmitir, pois intolerância se combate com informação. “Estou em situação de refúgio, não sou refugiado, porque tem a confusão dessa palavra refugiado que você é, mas você não pode sair.”
A África do Coração foi fundada em 2013 e sua gênese partiu da troca de idéias por três africanos que residiam em São Paulo e se surpreenderam ao se sentirem mais africanos aqui do que lá, chocados com as imagens distorcidas e o desconhecimento sobre o seu continente no Brasil. “Temos que visibilizar a África e mostrar mais sobre a nossa cultura, mostrar que a África é grande. Nossa visão é de trabalhar sobre a comunicação, a comunicação entre nós para conhecer nossos direitos, nosso papel. As pessoas pensam que os refugiados são pessoas que fugiram pela fome. É importante trazer essa informação para a sociedade brasileira saber e conhecer a cultura da África, saber que a África não tem uma cultura única, mas uma diversidade de culturas”, pondera Jean.
Hoje, a organização conta com uma diretoria de 20 nacionalidades e cada representante cuida de uma área diferente. Além dos preconceitos vivenciados por serem negros e africanos, muitos se deparam também com a xenofobia no Brasil, o preconceito contra pessoas de outras nacionalidades, e também quanto a serem refugiados. As informações disponíveis aos brasileiros sobre migrantes e refugiados, especialmente através da mídia, noticiam que os deslocamentos de sírios são provocados por guerras, mas é comum a associação de países africanos com os casos de migrantes que cruzam o mar mediterrâneo em embarcações perigosas e sobrecarregadas, sem conhecimento dos inúmeros conflitos e guerras presentes no continente.
“Algumas pessoas dizem ‘ele está fugindo de fome’, mas se eu fosse fugir de fome eu iria morrer! Porque ninguém foge de fome para outro país! No meu país, se eu estivesse com fome eu tinha meu cunhado, meu tio, minha família. Outros dizem que estão fugindo por dinheiro, mas para vir de lá para cá tem que pagar visto, passagem. As pessoas precisam entender que muitos refugiados tinham uma vida estabelecida em seus países, que nunca vão ter aqui, e não teriam trocado tudo para vir para cá se não fosse para salvar suas vidas. Quem conseguiu chegar até aqui para salvar sua vida é porque teve condições, e nós não somos vitimas. Um refugiado é uma pessoa que sai sem se preparar. Se você quer ir para França, você pega sua mala e se pergunta: eu vou comer o que, onde vou dormir? Você se planeja. Mas esse não é nosso caso, a gente vem para o Brasil para salvar a nossa vida. E para mostrar tudo isso a gente pensou no projeto da Copa dos Refugiados, pois os refugiados não são somente os sírios. O Brasil abriga refugiados de 87 nacionalidades”, comenta Jean.
Coordenadora de projetos da ONG, a moçambicana Lara Santos lamenta que tudo o que se divulgue sobre a África sejam informações sobre fome, doenças e ajuda humanitária, ainda que a maioria das pessoas ignorem o fato de que existem conflitos armados em diferentes partes do continente.
“Passam comerciais na televisão e mostram isso, mas quem falou que não existem países fora da África nessa situação? Queremos mostrar que a África tem um outro lado, tem muitas coisas bonitas. O fato de você sair de seu país para salvar a sua vida não significa que não tenha coisas boas, mas a televisão só vê o lado feio, para que as pessoas sintam pena. Saí de lá e deixei minha família, minha casa, minha vida boa. Não foi porque lá eu dormia na rua, senão eu nem estaria aqui. A África do Coração quer buscar mostrar para os brasileiros que somos um continente e não um país, somos 54 países e em cada um deles você encontra mais de 10 línguas, quanto mais culturas”.
Com o objetivo de difundir a cultura africana e informações sobre os diferentes países, além de auxiliar a adaptação de refugiados e migrantes no Brasil, a organização conta com diferentes projetos e uma agenda de eventos na cidade de São Paulo. Veja abaixo quais as próximas atividades da ONG:
Por uma visão diferente da África no Brasil
“A África do Coração está com muitos projetos de integração, principalmente para os recém-chegados, que tem dificuldades de comunicação, conseguir um emprego e se inserir na comunidade. Estamos com um projeto de tradutores para mandar para os hospitais e outros serviços. Temos essa demanda de pessoas que vão ao atendimento e os enfermeiros não falam inglês, ou não conseguem se comunicar e isso cria um choque”, comenta Lara.
A coordenadora da ONG diz ainda que parceiros são bem-vindos para ajudar na organização dos eventos, divulgação ou até mesmo lanches para as atividades das crianças. Se o provérbio brasileiro diz que gentileza gera gentileza, certamente para esse caso é verdade. A ONG tem um coração de mãe: atendem também pessoas da Síria, Afeganistão e Iraque. “Se eu tenho um irmão que precisa de ajuda, vamos buscar de todas as maneiras ajudar. Qualquer um de nós pode estar nessa situação.”
São também oferecidos cursos de idiomas para interessados em geral. Jean conta sobre os cursos de línguas, que atualmente tem duas turmas de inglês e francês apenas com alunos brasileiros. “Queremos ensinar nossas línguas também para os brasileiros, essa é a nossa cultura, a maioria dos africanos fala pelo menos quatro línguas. Vimos que os brasileiros tem essa busca por conhecimentos, e podemos contribuir com esse processo. Temos também cursos de português para os migrantes que acabaram de chegar”, afirma Lara. O curso de línguas é chamado Malaika, palavra em suaíli (idioma presente em vários países africanos) que significa ‘anjo’, nome escolhido pois os anjos falam todas as línguas do mundo.
A chegada de imigrantes e refugiados no Brasil também tem muito a contribuir para um resgate da identidade Brasileira: “Podemos ensinar os brasileiros a viver um pouco da cultura africana, porque afinal o povo brasileiro saiu da cultura africana”, propõe Lara, que recorda muitos dos pontos dessa cultura que foram se perdendo na tradição brasileira, como o respeito aos mais velhos e a importância da oralidade na transmissão de ensinamentos, sabedoria e estórias. “Quando a gente quer aprender sobre qualquer coisa, vamos falar com os mais velhos. Os anciãos são pessoas que carregam uma biblioteca e tem a sua história de vida. São muito respeitados lá, porque viveram a história deles e hoje vivem a nossa.”
A educação e informação tem um valor muito grande nas sociedades africanas, o que muitas vezes os motiva a virem estudar ou trabalhar no Brasil. Lara conta que muitos dos africanos no Brasil são formados, mas enfrentam grandes dificuldades para o reconhecimento de diplomas e títulos. “Aqui na ONG nós temos advogados, temos contadores, temos administradores, temos engenheiros. A gente cresce ouvindo uma única palavra: estudem. Isso é o que vai dar o seu futuro. Muitas famílias não tem condições para dar mais do que escola, então é difícil. Muita gente nos procura com essa demanda”, observa a coordenadora.
Bola no pé e cidadania na mente
Apesar das diferenças de nacionalidade, culturas e idiomas, a Copa dos Refugiados está em sua 4ª edição – e neste ano foram realizados jogos pela primeira vez em Porto Alegre, na Arena do Grêmio, tradicional time gaúcho. Além de reunir e propor uma confraternização entre migrantes e refugiados no Brasil – o evento é aberto a times de variadas nacionalidades de dentro e fora do continente africano – o maior objetivo é a visibilidade para a causa dos refugiados e migrantes, com uma temática diferente a cada ano.
O campeonato, que teve como tema principal de 2014 o lema “O valente não é violento”, retorna com a temática de gênero na edição de 2017 com o título “Os Desafios Sócio-econômicos da mãe refugiada para ser cidadã”.
“Falar de futebol é pensar em vários times masculinos, num esporte onde as mulheres tem pouco espaço. A cada ano, a edição tem um tema que acompanha, no ano passado foi ‘Refugiado: espaço e oportunidades‘. O refugiado não está aqui para pegar o trabalho, a casa, a mulher do brasileiro. Estamos aqui para somar. E se o Brasil cresce, cresce com mais um de nós”, comenta Jean.
A programação da ONG de 2017 já contou com um desfile de moda e atividades de lazer e esporte para mulheres e crianças e o tema deste ano será discutido em um debate na Câmara Municipal de São Paulo no dia 23 de junho, às 14h.
Jean conta que será promovido o debate para mapear os vários desafios de mulheres que chegam no Brasil com seus filhos, muitas vezes sem seus companheiros. “Como essa mãe vai lidar com uma vida com muita dificuldade, com uma cultura nova que não é fácil de se adaptar? Aqui a mulher precisa ir atrás de tudo, e lá ficava em casa com os filhos. Sabemos que o Brasil não é fácil para os brasileiros, mas quais são as ferramentas para auxiliar as mulheres terem mais cidadania no Brasil?”
A chamada da Copa no site da ONG convida para os jogos que ocorrerão em São Paulo em 2 e 3 de agosto, e irão reunir pessoas de pelo menos 16 países diferentes. O evento conta com o apoio da Cáritas Arquidiocesana São Paulo, do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), ONU Mulheres, UNAIDS e da ONG IKMR – Eu conheço meus direitos. Os jogos ocorrerão das 8h às 17h na Comunidade Novo Glicério – Rua Frederico Alvarenga, 391, Sé.
Para mais informações, acesse:
ONG Africa do Coração: http://africadocoracao.org/ e https://www.facebook.com/Africora/
Copa de Integração dos Refugiados: https://www.facebook.com/copadosrefugiados/
Cursos de Idiomas Malaika School: https://www.malaikaschool.com/about-us
[…] do Coração, fundada em 2013 em São Paulo e formada por imigrantes e refugiados. Ela atua na assistência social e na promoção da integração social dos refugiados e imigrantes entre si e também com a sociedade […]
[…] deixar de lado diferenças políticas, sociais, religiosas ou raciais. Inspirada nesse potencial, a ONG África do Coração promove pelo quinto ano consecutivo uma copa composta e organizada por […]