Para refugiados afegãos que chegam no Brasil por meio do Aeroporto Internacional de Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo, o terminal não tem sido apenas o local pelo qual adentram em solo brasileiro. Ele também se tornou um local de abrigamento improvisado, expondo uma série de contradições, lacunas e desafios tanto no acolhimento quanto nas políticas dedicadas à população migrante no cenário regional, nacional e internacional.
A cena tem se repetido há pelo menos um ano, alternando momentos de maior ou menor presença dos afegãos no aeroporto, mais exatamente em uma área do mezanino do Terminal 2. Cerca de 200 pessoas, entre homens, mulheres e crianças, já chegaram a ficar instaladas ao mesmo tempo em barracas improvisadas com mantas, cobertores, bancos e carrinhos para transporte de bagagens.
Nas estimativas mais recentes, fornecidas ao MigraMundo nesta segunda-feira (4), 125 afegãos estavam dormindo no aeroporto, de acordo com o Coletivo Frente Afegã. Já a Prefeitura de Guarulhos informou um total de 106 afegãos aguardando acolhimento.
Os afegãos chegam ao Brasil com vistos humanitários emitidos por determinadas embaixadas brasileiras no exterior. De acordo com dados do governo federal, até 14 de junho de 2023 foram autorizadas a concessão de 11.576 vistos de acolhida humanitária em favor de afegãos. Desse total, 9.003 vistos foram efetivamente entregues aos requerentes.
Entre os afegãos que chegam a Guarulhos, tem aqueles que veem o Brasil como uma etapa a mais de uma longa, cara e perigosa jornada, que tem os Estados Unidos como destino final. Mas também há quem expresse vontade de recomeçar a vida em solo brasileiro, ainda que sem saber ao certo como e onde.
“Tem uma grávida de nove meses aqui”, acrescentou Aline Sobral, voluntária integrante do Coletivo Frente Afegã, que tem atuado junto aos migrantes no aeroporto desde o começo da questão.
Abrigamento
Ao todo, existem 1.059 vagas destinadas a migrantes em centros de acolhida em São Paulo e em Guarulhos, incluindo equipamentos gerenciados pelas prefeituras e pelo governo paulista. Entretanto, no momento, 100% dessas vagas se encontram ocupadas, fazendo com que os afegãos que chegassem a Guarulhos não consigam abrigo fora do terminal.
Essa aglomeração improvisada, no final de junho, sofreu com um surto de sarna que afetou parte dos abrigados no terminal levou a uma espécie de força-tarefa entre o Ministério da Justiça e a Prefeitura de Guarulhos. A saída encontrada foi a condução dos afegãos para a Colônia de Férias do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Químicas e Farmacêuticas de São Paulo, localizada no município de Praia Grande, no litoral paulista.
Essa operação, embora bem sucedida, não aconteceu sem sustos. A Prefeitura de Praia Grande chegou a vetar o acolhimento dos afegãos, sob o argumento que o local não possuia auto de vistoria do Corpo de Bombeiros e que a saúde da população local poderia ser colocada em risco. O impasse acabou resolvido horas depois, após negociações da gestão municipal com o governo federal.
Tanto a acolhida em Guarulhos como a transferência dos afegãos para abrigos temporários contam com a participação de coletivos e entidades da sociedade civil e do poder público (federal, estadual e municipal), além da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) e Agência da ONU para as Migrações (OIM). Nestes espaços fora do terminal, outras entidades atuam em atividades diversas, como aulas de português, atendimento de saúde e no cadastro para acessar benefícios sociais.
O que dizem os governos
Segundo a Secretaria Nacional da Justiça, o governo federal está construindo um plano de ação para os refugiados e para evitar que a cena de pessoas em aeroportos se repita. No entanto, a situação vem persistindo, como os números mais recentes deixaram claro.
O governo federal informou, por meio de nota, que ao menos quatro ministérios (Justiça, Desenvolvimento Social, da Casa Civil e dos Direitos Humanos) estão trabalhando em torno do atendimento aos afegãos que estão em São Paulo. A pasta de Desenvolvimento Social disse ainda que os afegãos atendidos temporariamente em Praia Grande estão em processo de transferência para Guarulhos, município que está recebendo recursos para o acolhimento dos afegãos.
A Prefeitura de Guarulhos, no entanto, quer o município seja reconhecido pelo governo federal como Cidade Fronteira do Brasil. A solicitação busca facilitar o recebimento de recursos para o atendimento de migrantes e refugiados. Alem disso, a gestão local pede que a União assuma ações de interiorização dos afegãos pelo país, a exemplo do que vem ocorrendo com os venezuelanos.
Enquanto as diferentes esferas de governo no Brasil ainda buscam um entedimento claro sobre como gerir o fluxo afegão, entidades e coletivos da sociedade civil fazem o possível para garantir um apoio mínimo aos recém-chegados ao Aeroporto Internacional de Guarulhos.
“Estamos alertando as autoridades, as demais instituições, que essa situação ia acontecer. Alguns afegãos que chegaram em 2022 não conseguiram trazer seus familiares. Eles estavam vendendo os bens no Afeganistão para vir para cá. Sabíamos que essa situação iria ocorrer e vai continuar ocorrendo. Um acampamento que tenha uma melhor estrutura, como camas e banheiros químicos já seria muito mais humano do que o que temos aqui [no terminal]”, salientou Sobral.
Política Nacional Migratória
Apesar de reconhecer os esforços recentes para dar uma resposta rápida à questão dos afegãos que chegam ao Brasil, especialistas e entidades da sociedade civil ligadas à temática migratória destacam a necessidade de desenvolver medidas de caráter permanente capazes de lidar com esse fluxo já estabelecido.
Para Victor Del Vecchio, advogado e consultor em Direitos Humanos e Migrações, é possível notar uma evolução no tratamento da migração afegã para o Brasil, especialmente se comparada com o ano anterior, quando o país estava sob outra gestão. No entanto, ele ressaltou que a complexidade da questão demanda respostas ainda mais qualificadas.
“Acredito que a sociedade civil organizada, fundamental neste processo, cresceu e amadureceu muito. O governo do estado [de São Paulo] e os municípios também buscaram novas soluções, mas sabemos que sua atuação é limitada. E diante de um desafio de tamanha complexidade, é fundamental o engajamento da esfera federal nas soluções”.
Interlocutores dentro do governo federal que conversaram com o MigraMundo concordaram que a situação recente no aeroporto reforça a necessidade de avanços mais céleres na construção de uma Política Nacional Migratória, que defina as atribuições de cada ente federativo – União, Estados e municípios – na gestão das migrações no Brasil.
Embora o tema esteja presente na Lei de Migração brasileira, em vigor desde 2017, esse passo depende de uma regulamentação à parte, que permaneceu pendente até o começo deste ano.
Em fevereiro, o Ministério da Justiça iniciou um processo cujo objetivo é o estabelecimento de uma Política Nacional de Migrações, Refúgio e Apatridia, a partir da criação de grupos de trabalho para elaboração de propostas. Dessa etapa foram tiradas ao menos 1,7 mil contribuições, entre sugestões, comentários e propostas propriamente ditas, que estão sendo sistematizadas em um único documento. A ideia é que ele já seja a proposta em si de Política Nacional Migratória, que será levada para debate em audiências públicas ainda a serem definidas.
Em declaração recente dada à Comissão Mista de Migrações Internacionais e Refúgio (CMMIR) do Congresso Nacional, o secretário nacional de Justiça, Augusto Botelho, projetou que uma proposta de criação dessa Política Nacional Migratória deve ser anunciada até o final do ano.
“O texto da política nacional está em redação e espero que em breve nós possamos partir dessa minuta para uma segunda discussão, e até o final do ano ter uma política nacional aprovada e implementada”, afirmou ele, durante a audiência.
Vistos humanitários
Vale recordar, no entanto, que os desafios e contradições sobre os afegãos no Brasil começam antes mesmo dessas pessoas chegarem ao Terminal 2 do Aeroporto de Guarulhos, no processo de obtenção dos vistos humanitários. Eles foram anunciados pelo governo brasileiro em setembro de 2021, um mês após o grupo fundamentalista Talibã tomar o poder no Afeganistão.
No entanto, desde então são frequentes as queixas de solicitantes desse documento quanto à lentidão no processamento desses pedidos.
“A política foi concedida no papel, mas não foi acompanhada por mudança nas estruturas operacionais que tornem viável seu pleno funcionamento. Como resultado, temos hoje um processamento em torno de 10 a 20 vistos por semana em cada posto diplomático, muito aquém da demanda de um país onde, a cada dia, as perseguições às minorias se acirram e as condições econômicas continuam deterioradas”, ressaltou Del Vecchio.
Ainda de acordo com o advogado e consultor, uma Política Nacional de Migração, Refúgio e Apatridia bem desenhada teria grandes chances de contribuir para que as os problemas enfrentados por afegãos sejam solucionados de forma mais estruturada, tanto para os que já estão em solo brasileiro quanto os que ainda tentam chegar ao país.