Por Flávia Odenheimer, Jéssica Murakami, Julia Barreto, Maria Luísa Sader e Marina Queiroz
Do ProMigra
Um curso sobre migrações, refúgio, crianças e adolescentes, ensino e aprendizagem, políticas públicas e acolhimento. Esta foi a ideia base para o projeto idealizado por nós, integrantes do Grupo Acadêmico do Projeto de Promoção dos Direitos dos Migrantes (ProMigra), para compor a programação do 22º Encontro USP Escola, evento sediado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH).
O ProMigra, nascido em 2015, é um projeto de extensão da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo que atua na promoção, conscientização e efetivação dos direitos dos migrantes na cidade de São Paulo e na região metropolitana. Tornar o conhecimento acadêmico acessível para a sociedade é, portanto, um dos fundamentos do projeto. O curso “Construindo acolhimento e integração para crianças e adolescentes migrantes nas escolas de São Paulo”, que ocorreu entre 09 e 13 de janeiro de 2023, tentou concretizar este fundamento.
Assim como os demais cursos do Encontro USP-Escola, tínhamos como público majoritário professoras da rede pública municipal e estadual. O chão das salas de aula deu o tom para o início do período de cinco dias que seria muita informação, emoções e alguns debates acalorados. A começar pelo gênero: quem cuida das crianças e adolescentes deste Brasil são mulheres, mas você já deveria saber disso.
No Brasil, 81% dos docentes de escolas regulares, técnicas e EJA, de acordo com dados do Censo Escolar de 2020, são mulheres. Este número, que compõe a absoluta maioria em escala nacional, não as poupa da desigualdade de gênero na profissão, que é sofrida principalmente na forma de déficit salarial em comparação aos homens.
A rede estadual de ensino paulista é a maior do país, e conta com mais de 4 milhões de alunos matriculados no Ensino Fundamental ou Ensino Médio. Destes, aproximadamente 8 500 alunos são imigrantes. Apesar do número percentual pequeno, as dificuldades nas salas de aula não cessam em aparecer, segundo relatos das professoras presentes no Encontro USP-Escola.
Hábitos religiosos específicos e diferentes, obstáculos linguísticos, famílias vivendo em desamparo e desemprego, saudades dos familiares e do país natal e a xenofobia – clara ou nebulosa, praticada pelos brasileiros e brasileiras – compõem a realidade destes 8,5 mil alunos e impactam o aprendizado formal e convivência dentro da escola.
Em resposta às dificuldades, trabalhamos que o ponto de partida é o acolhimento, a ação pedagógica intencional. Vale lembrar que o direito ao acesso à educação é garantido aos migrantes pela Constituição Federal (artigos 5º e 6º), pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (artigos 53º ao 55º), pela Lei de Migração (artigo 3º, XI) e pela Lei 9.474/97 ao dispor que a ausência de documentos emitidos pelo país de origem não deve ser um óbice para o acesso à educação (artigos 43º e 44º).
Para que o acolhimento ocorra, pontuamos que é preciso ter um olhar para além da criança e do adolescente, que se estenda em relação aos seus cuidadores. Conversamos durante o curso sobre como os migrantes podem ter passado por situações de extrema vulnerabilidade em seus países de origem, durante o percurso e na chegada no Brasil. Trabalhamos também sobre estratégias de integração cultural considerando os povos africanos, com destaque para aqueles provenientes de Moçambique, os povos árabes e os povos latino-americanos, com recorte para os migrantes venezuelanos e os indígenas Warao.
Entendemos que existem especificidades e diferenças culturais entre os migrantes e os brasileiros que podem, a princípio, causar estranhamento e representar mais um desafio a ser superado pelas professoras em sala de aula. Discutimos como este cenário desperta curiosidade e representa uma enriquecedora oportunidade para os alunos brasileiros conhecerem e respeitarem uma outra cultura. A compreensão e o acolhimento da cultura do migrante tornam possível a integração.
O município de São Paulo é pioneiro em instituir uma política pública municipal para tratar da temática de migrações. A Política Municipal para a População Imigrante (PMPI), instituída pela Lei Municipal n. 16.478/2016 e regulamentada pelo Decreto Municipal nº. 57.533/2016, começou a ser consolidada desde o ano de 2013, com a criação da atual Coordenação de Políticas para Imigrantes e Promoção do Trabalho Decente, e visa o incentivo da participação social e o trabalho conjunto à sociedade civil para a garantia de direitos e acesso aos serviços públicos pelos imigrantes, refugiados e solicitantes na cidade. Com ela, busca-se o estabelecimento de debates entre os atores principais da temática, como associações, coletivos e instituições de imigrantes ou de apoio a imigrantes, lideranças das comunidades e agentes políticos municipais, para que estes possam discutir, propor e avaliar a aplicação das políticas voltadas para essa população.
Fruto dessa política pioneira e inovadora do município de São Paulo, e que pode ser considerada uma das possíveis soluções que foram debatidas durante o curso, é o projeto “Portas Abertas: Português para Imigrantes”, que é uma iniciativa conjunta entre a Secretaria Municipal de Educação (SME), a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC), com o objetivo de oferecer curso de português gratuito, regular, contínuo e permanente para imigrantes na Rede de Municipal de Ensino. A ideia é garantir e preservar direitos para a população imigrante da cidade de São Paulo.
Em razão dos diálogos e dos debates fomentados durante o curso, concluímos que algumas das possíveis soluções para que ocorra o acolhimento e integração dos migrantes e familiares seria, em primeiro lugar, o exercício de compreender a situação do país de origem do migrante. Em segundo lugar, quanto às barreiras linguísticas, apontada como o maior obstáculo a ser superado, entendemos que a utilização de placas de identificação nos ambientes escolares com diversos idiomas facilita a comunicação entre todos. Em terceiro lugar, a proposição de atividades externas que promovam a partilha da cultura do migrante, como meio de integração. Em quarto lugar, observar as políticas públicas e modelos já implementados em escolas municipais e estaduais. Por fim, a possibilidade de realizar parcerias com associações de migrantes para melhor discutir a pauta sobre acolhimento e integração. Pois este é um desafio a ser superado em rede.
Nesse sentido, observando as propostas discutidas para a construção de uma rede de acolhimento e integração entre alunos migrantes, ficou evidente durante a realização do 22º Encontro a importância de utilizarmos a escuta como instrumento base para qualquer ação. Em primeiro lugar, é necessário escutar, dar voz aos alunos migrantes e suas respectivas famílias.
Por meio das trocas realizadas durante o curso com as professoras, observou-se que, a partir do momento em que a escola se propõe a escutar seus alunos e suas famílias, para que estes possam contar suas histórias e compartilhar suas memórias, há uma mudança de postura na relação da tríade escola, aluno e família. Dessa forma, por meio dos exemplos trazidos pelas professoras, vividos em sala de aula com as crianças e adolescentes migrantes, foi possível verificar a importância do resgate da memória histórica, como processo de ressignificação da identidade dessa população, muitas vezes esquecida e/ou marginalizada.
Entendemos que a recuperação da memória é uma maneira de contribuir no resgate do processo histórico de desigualdades, a partir do ponto de vista dos invisibilizados, gerando assim, uma memória de resistência que possa apoiar projetos coletivos de futuro. Compreendemos que para a construção de pontes, é necessário o diálogo entre as partes. As discussões realizadas ao longo da semana do 22º Encontro USP-Escola resultaram no fortalecimento da rede, no desejo de fomentar mais diálogos e na formação de instrumentos concretos para contribuir no processo de acolhimento e integração das crianças e adolescentes migrantes em sala de aula.
Como resultado das trocas realizadas ao longo do curso estamos construindo o projeto “ProMigra na Escola”. A ideia é trazer as discussões que tivemos nessa breve experiência de forma mais aprofundada através de uma formação continuada para professores e professoras de escolas públicas da Grande São Paulo que recebem estudantes migrantes, envolvendo a gestão e a comunidade escolar. Enquanto grupo de extensão, acreditamos que o acesso ao conhecimento acadêmico só ganha sentido quando podemos usá-lo para impactar as nossas comunidades. E o USP-Escola foi um grande disparador para pensarmos, a longo prazo, como podemos construir juntos uma escola mais acolhedora para estudantes migrantes.
Sobre as autoras
Flávia Odenheimer é professora de matemática licenciada pela USP e membro-coordenador do GT Acadêmico do ProMigra; Jéssica Murakami é psicóloga, mestranda em psicologia social e do trabalho pela USP, membro do GT Acadêmico do ProMigra; Julia Barreto é mestre em Direito Político e Econômico, pesquisadora no IDP e membro do GT Acadêmico do ProMigra; Maria Luísa Sader é assistente social, mestranda em Relações Internacionais pela UFABC e membro do GT Acadêmico do ProMigra; Marina Queiroz é advogada, mestranda em Ciências Jurídico-Internacionais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e membro-coordenador do GT Acadêmico do ProMigra.
Parabéns ao grupo pela bela e humanitária iniciativa!!
De fato, o município de São Paulo já conta com uma legislação pertinente ao tema, mas o que o ProMigra faz é levar adiante essa proposta. É “deixar acontecer “, “por a mão na massa “ . Parabéns pelo compromisso assumido!