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sábado, abril 27, 2024

Fala de Kamala Harris é exemplo da distância entre expectativa e realidade na política migratória dos EUA

Declarações recentes da vice-presidente dos Estados Unidos mostram como a questão migratória é algo complexo no país

Por Luciano Caires Jr. e Rodrigo Veronezi

A eleição de Joe Biden como presidente dos Estados Unidos trouxe também uma mudança carregada de simbolismo. Os democratas escolheram para o cargo de vice a procuradora Kamala Harris – mulher, negra, filha de imigrantes – que teria como uma de suas principais funções responder por questões mais sociais, Entre elas está a política migratória, assunto que gera grande polarização no país. Mas eventos recentes sobre o tema no país vem mostrando que a expectativa não necessariamente vai corresponder à realidade.

Após o fim do governo Donald Trump, que tinha o rechaço à migração – inclusive a documentada – como uma de suas bandeiras, a eleição de Biden-Harris gerou a expectativa de que os quase 11 milhões de imigrantes indocumentados nos Estados Unidos voltassem a sonhar e a acreditar com a residência permanente e, até mesmo, com a cidadania americana.

Nesse contexto, uma fala recente de Kamala Harris veio como um choque de realidade. Durante viagem diplomática de três dias pela América Central – onde visitou os três países do chamado Triângulo Norte, Guatemala, El Salvador e Honduras -, falou ao lado do presidente guatemalteco Alejandro Giammatei.

“Quero esclarecer para as pessoas desta região que estão pensando em seguir pelo perigoso caminho para a fronteira dos EUA com o México: não venham. Os EUA continuarão a fazer cumprir nossas leis e a proteger nossa fronteira”, declarou a vice-presidente.

Ainda durante a entrevista, Kamala Harris completou que a intenção é desencorajar a “migração ilegal”, já que “existem métodos legais pela qual ela pode ocorrer”.

A fala de Kamala não foi bem aceita por algumas agências de direitos humanos e até mesmo dentro do Partido Democrata. “Primeiramente, buscar refúgio em qualquer fronteira dos EUA deve ser tratado como um método 100% legal de migração. Em segundo, os EUA passaram décadas contribuindo para mudanças de regime e a desestabilização nos países latino-americanos. Não podemos ajudar a colocar fogo na casa de alguém e depois culpá-los por fugir”, disse a deputada, ativista e organizadora comunitária Alexandria Ocasio-Cortez, por meio do Twitter.

Por outro lado, um parlamentar do Texas disse em entrevista ao jornal The Washington Post que “Biden está mandando uma mensagem terrível” ao espalhar um discurso pró-migração, mas sem fazer quaisquer mudanças na fronteira.

Enquanto isso, os republicanos aproveitam para usar a situação na fronteira com o México para atacar os democratas. E não se pode perder de vista que Kamala Harris é vista como uma possível presidenciável para o pleito de 2024 ou de 2028, a depender das condições de Joe Biden.

Contexto migratório

A visita de Kamala Harris à Guatemala, El Salvador e Honduras não foi por acaso. Os três países estão entre os maiores quando tratamos de migração aos Estados Unidos. Somente nos primeiros 15 dias de Joe Biden como presidente, por exemplo, quase 10 mil hondurenhos e guatemaltecos deixaram seus países rumo à fronteira norte-americana, segundo a BBC News. O ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados) também afirma que a região do Triângulo Norte da América Central é a mais violenta do mundo sem estar em zonas de conflito. As Nações Unidas apontam que ao menos 10 milhões de pessoas precisam de ajuda na região, onde os problemas giram em torno da violência urbana, crime organizado e a falta de direitos básicos à dignidade humana.

Jovens de Honduras, na América Central. Relatório da AI denuncia violência na América Central e os deslocamentos forçados que ela gera. Crédito: Anistia Internacional

O Triângulo Norte da América Central também é o local de origem das chamadas caravanas de imigrantes, um misto de protesto e forma de migração que visa sensibilizar a opinião pública – e especialmente a Casa Branca – sobre os problemas da região.

Atraídos pelas promessas de políticas migratórias mais flexíveis, somente neste ano já houve duas caravanas, com centenas de hondurenhos, seguindo em direção aos EUA.

Em janeiro, ainda sob o governo de Donald Trump, a primeira caravana foi interrompida e dissolvida pelas autoridades guatemaltecas em um ato no mínimo, se assim pode-se dizer, desastroso, quando o grupo de imigrantes tentou avançar para dentro do território da Guatemala.  Crianças, idosos, gestantes, todos que se aproximassem da linha de contenção formada pelas forças policiais na fronteira entre Honduras e Guatemala eram feridos.

O presidente guatemalteco Alejandro Giammatei foi enfático em seu encontro com Harris ao dizer que a reforma migratória, sugerida por ela e por Biden, é uma resolução que ‘levará tempo’, e que os migrantes necessitam de ajuda imediata.

“Nós estamos dizendo-lhe que acreditamos que a reforma migratória vai levar muito tempo e precisamos estabilizar as pessoas que estão lá e que isso nos ajude com o crescimento econômico do país e regularizar a maior quantidade de gente possível”, retratou Giammatei. O pedido é para que o maior número possível de migrantes tenha acesso ao Estatuto de Proteção Temporária (TPS, em inglês). O programa ampara migrantes deslocados por instabilidades políticas ou desastres naturais por até 18 meses, com possibilidade de ampliação.

Expectativa x realidade

Apesar das reações geradas pelo discurso de Kamala Harris e por ações recentes do governo Biden, é preciso reconhecer que já há avanços nítidos na política migratória se comparados com os atos do antecessor Donald Trump.

“Estou eliminando políticas ruins”, disse Biden quando, em 2 de fevereiro, assinou decretos que revogaram algumas medidas do republicano, como a criação de uma força-tarefa para promover a reunificação de familiares separados por políticas de imigração adotadas pela gestão anterior. Esse grupo irá reunir representantes dos imigrantes e do governo para buscar maneiras de reaproximar parentes e crianças que perderam contato, além de tomar medidas para garantir que essa prática não ocorra mais.

Logo ao tomar posse, em 20 de janeiro, o democrata assinou outras seis ordens referentes à imigração, incluindo a suspensão das obras de ampliação do muro na fronteira com o México — outra bandeira da gestão Trump.

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Barreira na fronteira entre México e EUA, entre Tijuana e San Diego. (Crédito: Anistia Internacional)

Outras medidas, mais profundas, como um plano para regularizar os cerca de 11 milhões de imigrantes sem documentos — algo semelhante à população da cidade de São Paulo —, são mais complexas e demandam colaboração do Congresso.

Também não é demais lembrar que Biden foi o vice durante os oito anos de governo de Barack Obama (2009-2017), que chegou a ser apelidado de “chefe das deportações”. Outro ex-presidente democrata, Bill Clinton adotou uma postura bastante conservadora em suas propostas migratórias. 

Segundo o Migration Policy Institute, mais de 12 milhões de pessoas foram deportadas durante a gestão de Bill Clinton; mais de 10 milhões de pessoas foram deportadas durante a administração do republicano George W. Bush; e mais de 5 milhões de pessoas foram deportadas durante o governo Obama.

Proporcionalmente, um número maior de migrantes foi mandado embora ou retornou ao seu país de origem nos primeiros anos em que Obama governou o país em comparação aos primeiros de Donald Trump: enquanto o democrata deportou 1,18 milhões de pessoas em seus primeiros três anos de gestão, o republicano deportou um pouco menos de 800 mil, segundo o The Washington Post. Este fato foi um dos argumentos de Trump contra Joe Biden, o qual deve carregar o legado de Barack Obama.

Independentemente de governos republicanos ou democratas, os Estados Unidos tendem a adotar uma posição mais conservadora no que diz respeito a imigração, inclusive ainda a criminalizando se realizada de forma irregular. Embora a campanha Biden-Harris tenha prometido durante a sua campanha e de fato venha realizando mudanças significativas na política migratória norte-americana, o choque de realidade expresso por falas como a da vice-presidente será uma constante.


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