Novo marco migratório brasileiro entra em vigor em novembro, após grande mobilização da sociedade civil. Mas a lei está longe de ser perfeita e ainda precisa de regulamentações complementares
Por Maria Villarreal
Coluna Fronteira Aberta
No Rio de Janeiro (RJ)
O Centro de Estudos em Direito e Política de Imigração e Refúgio (CEDPIR) da Fundação Casa de Rui Barbosa no Rio de Janeiro promoveu a mesa de debate “O impacto da nova Lei de Migração Brasileira sobre o refúgio no país”, para discutir sobre a legislação que entra em vigor no final de novembro e substitui o Estatuto do Estrangeiro.
O evento, que ocorreu no último dia 23 de junho, contou com a participação de destacados pesquisadores de diversos campos das Ciências Humanas, com uma trajetória de ativismo na defesa dos direitos das pessoas migrantes e refugiadas (Charles Gomes-CEDPIR e Carolina Moulin-IRI/PUC-RJ), assim como funcionários de entidades governamentais e organizações da sociedade civil, também comprometidos com uma abordagem de direitos humanos, que trabalharam ou trabalham diretamente no desenho de políticas e na atenção de pessoas em mobilidade humana (João Guilherme Granja-UnB e Fabrício Toledo de Souza-Cáritas Rio).
A mesa analisou os impactos da nova Lei de Migração (Lei 13.445/2017) sobre o refúgio, sublinhando que, embora a nova normativa não altere nem a Lei 9.474 (que regulamenta o refúgio no Brasil) nem o procedimento até agora vigente em relação ao instituto, existem alguns impactos indiretos e ainda pouco claros, pois de fato, a nova disposição regula a mobilidade humana como um todo.
Em comparação com o Estatuto do Estrangeiro, onde prevalecia o enfoque de segurança, a nova Lei constitui por si mesma um avanço, já que dá maior importância aos direitos das pessoas migrantes e reconhece as heterogêneas expressões da mobilidade humana. Neste sentido determina, por exemplo, a primazia do Estado de direito e oferece garantias de devido processo, elementos que diminuem a arbitrariedade das medidas e a discricionalidade dos agentes de segurança nacionais. Da mesma forma, são também relevantes os progressos em relação ao reconhecimento e revalidação de diplomas e à naturalização.
Contudo, de acordo com Charles Gomes (CEDPIR) e Carolina Moulin (IRI-PUC-Rio), além dos vetos, existem alguns pontos pouco inteligíveis e potencialmente problemáticos da Lei, como o estabelecimento de uma futura autoridade migratória não plenamente definida ou a criação de regulamentos que podem adotar uma interpretação restritiva. As restrições poderão também surgir como consequência de futuros Projetos Legislativos (PL) que procurem retomar uma visão da migração como problema e fenômeno vinculado à segurança nacional. Por outro lado, são também limites da Lei a não extensão de direitos e benefícios para turistas e a escassa previsão de mecanismos de transparência.
Por outro lado, de acordo com Fabrício Toledo de Souza (Cáritas-Rio), no intuito de prever os efeitos reais que terá a nova norma, é preciso considerar também o seu contexto de surgimento e aplicação. Em consequência, é necessário levar em conta que, apesar do discurso e dos princípios que a fundamentam, a nova Lei será interpretada em um contexto de maior restrição e regulamento dos fluxos migratórios -majoritariamente mistos-, caracterizado por uma forte retórica conservadora e um aumento da xenofobia, pelo menos em relação às suas formas de expressão.
No que diz respeito ao instituto de refúgio, declarações e práticas recentes como o estabelecimento de vistos humanitários apontam a uma restrição ao seu acesso e uma progressiva especialização e tecnificação do instituto e dos agentes que trabalham com ele, os quais atuam cada vez mais em concorrência e não em cooperação. Outras tendências relevantes são também a diminuição da burocracia encarregada de atender as solicitações; a permanente precarização, em termos de documentos, dos solicitantes de refúgio; e a difusão de discursos que alimentam a visão de solicitantes e refugiados como possíveis ameaças terroristas e sanitárias ou como pessoas utilitaristas que se “aproveitariam do Brasil e dos documentos emitidos no país” com a intenção de se dirigir a nações mais desenvolvidos. Estes e outros elementos atuam conjuntamente para reforçar a ideia de restringir ulteriormente o instituto, estabelecendo o juízo de admissibilidade, cujo objetivo é definir previamente e de maneira discricional quem pode ou não solicitar refúgio.
Um ponto especialmente discutido por todos os participantes da mesa foram as diferenças entre princípios e aplicação efetiva das normas, ou entre teoria e prática, para analisar o que efetivamente acontece no território e, a partir daí poder formular respostas e iniciativas específicas. Desta forma, se ressaltou, por exemplo, que no Brasil já existe uma pratica discricional do juízo de admissibilidade, como ficou demonstrado pela tentativa de deportação de cidadãos venezuelanos em dezembro de 2016. Por outro lado, de acordo com João Guilherme Granja, as oportunidades políticas e a efetiva organização de grupos conservadores demostraram durante a discussão e aprovação da Lei de Migração, tanto o poder de atuação destes grupos, ainda minoritários, quanto a capacidade de incidência que eles podem ter na agenda pública; o que sem uma participação efetiva de setores que possam contrarrestar estas ações, pode cobrar ainda mais força.
Como consequência destes fenômenos, todos os participantes da mesa enfatizaram que é preciso realizar uma autocrítica entre os grupos e agentes comprometidos com os direitos dos migrantes, reconhecendo, por um lado, a necessidade de aprimorar as suas formas de ação e, por outro, a urgência de adaptar as próprias narrativas e práticas a um contexto caracterizado por uma forte polarização social, em que a soberania nacional e a segurança voltam a ser invocadas para legitimar a restrição de direitos. O Estado de direito, com efeito, depende especialmente da sociedade civil e cabe a nós, mediante demandas e pressão, o efetivo cumprimento das normas.
Neste cenário, como ampliar direitos, democratizar as instâncias de decisão, aumentar a participação da sociedade civil e os mecanismos de proteção para os migrantes no Brasil? Se, por um lado, a Lei pode ser liberal e inspirada em bons princípios, é evidente que ela por si só não é suficiente. A mesma representa apenas um começo, mas daqui em diante cabe a todos nós lutar para que se cumpram os seus pressupostos e para que sejam criados mecanismos e políticas públicas efetivas para a efetivação dos direitos dos migrantes.
O evento foi transmitido ao vivo pelo canal da Fundação Casa de Rui Barbosa e pode ser assistido abaixo no YouTube, em duas partes:
https://www.youtube.com/watch?v=1l6uJIwF69s
https://www.youtube.com/watch?v=7G41Y-MrFhw&t=9s