Por Maristela Schmidt*
Em São Paulo (SP)
Ninel** entrou na sala acompanhada de sua mãe. Estava agarrada na camiseta com
olhar assustado. Percebi a desconfiança quando me olhou sentada atrás da mesa.
Perguntei seu nome. Ela continuou calada. Falava com o olhar. Era fixo em mim
com um ar profundo e triste.
Nas primeiras palavras da mãe, consegui entender o silêncio da pequena
boliviana. Não era a primeira vez que escutava esse absurdo. Aquela criança era
mais uma vítima de abuso sexual. Realidade que assombra milhares de crianças e
adolescentes, principalmente meninas.
O medo em seus olhos eram os danos causados pela perversidade de um homem
de mais de 50 anos, colega de sua mãe na oficina de costura. Brasileiro,
promíscuo e criminoso.
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Eram férias escolares. A senhora Alejandra** não tinha com quem deixar Ninel. Era
sozinha no Brasil. O marido a tinha deixado há alguns anos e voltado para seu
país de origem.
Para sustentar a casa, trabalhava em uma das inúmeras oficinas de costura na
cidade de São Paulo. Enquanto Alejandra passava horas nas máquinas, sua filha
estava sendo induzida em práticas sexuais com apenas 8 anos.
Sua mudez foi a maneira que encontrou para esconder a vergonha e o
constrangimento de ser abusada.
Não desisti. Tentei mais uma vez um contato com Ninel. Apenas mexia a cabeça
fixando seu olhar nos meus. Seu olhar ainda demonstrava receio. Peguei um
papel e canetas coloridas. Desenhei um coração e seu nome. Ela me olhou e abriu
um sorriso. Com as canetas em sua mão, fez um sol, uma nuvem, algumas
árvores, uma menina e um coração. Tirou os olhos do papel e com seu olhar
penetrante, ainda em silêncio, os fixou em mim novamente. Assenti com a cabeça
e retribui o sorriso.
O coração estava lá. Este não podia faltar. O amor não precisa de palavras.
*Maristela Telles Schmidt, advogada com especialização em andamento em Direito Internacional pela PUC/SP, atuou durante 2 anos no atendimento jurídico da Missão Paz, com foco em regularização migratória e assuntos gerais do direito. Atua como voluntária em projetos para solicitantes de refúgio e refugiados no Brasil e no exterior. Esteve na Palestina e no Líbano em 2015 e 2017, respectivamente, onde trabalhou em projetos educacionais com crianças e famílias refugiadas
**Nomes fictícios para preservar a identidade da filha e da mãe