Apesar dos apelos da ONU (Organização das Nações Unidas) e de caracterizar uma das maiores crises humanitárias da atualidade, a situação da Venezuela está longe de um consenso global quanto a refúgio. E esse limbo fica claro na edição mais recente do relatório Tendências Globais (acesse aqui, em inglês), publicado anualmente pelo ACNUR (Alto Comissariado da ONU para Refugiados) e divulgado nesta quinta-feira (18).
De acordo com o estudo, que traça um panorama dos deslocamentos forçados no mundo, 79,5 milhões de pessoas se encontravam em tal situação ao final de 2019. Dessas, 26 milhões são consideradas refugiadas de fato — porque se deslocaram para outro país em busca de proteção.
Esses 26 milhões, no entanto, não incluem cerca de 3,6 milhões de venezuelanos que o ACNUR contabiliza no seu total global de deslocados forçados. Eles aparecem em uma categoria à parte, chamada de “venezuelanos deslocados globalmente”. O relatório inclui ainda 93,3 mil venezuelanos como refugiados reconhecidos e 794,5 mil como solicitantes de refúgio.
“Há uma divergências entre os países que mais acolhem os venezuelanos pelo status do refugiado ou não. Por isso o ACNUR achou ser prudente criar uma categoria especifica”, explica Miguel Pachioni, porta-voz da agência da ONU em São Paulo, sobre a classificação do país sul-americano no relatório.
Mesmo em uma classificação à parte no relatório, os venezuelanos representam a segunda maior população em deslocamento forçado no mundo (3,7 milhões), atrás somente da Síria (6,6 milhões).
Cartagena ou Genebra?
Em maio de 2019, no entanto, a ONU divulgou comunicado no qual recomendou à comunidade internacional o reconhecimento dos venezuelanos como refugiados. Um apelo que ainda encontra fortes resistências, como mostra o atual relatório do ACNUR.
A agência apontou à época que, para certos perfis de venezuelanos em risco, a Convenção de 1951 sobre os Refugiados é aplicável. No entanto, salientou que a maioria dessa população deslocada necessitaria de proteção internacional com base em critérios mais amplos, como os estabelecidos pela Declaração de Cartagena (1984).
A legislação brasileira de refúgio – Lei 9.474/97 – segue o entendimento da Declaração de Cartagena e prevê atribuição do status de refugiado a toda pessoa que foge de um país em situação de grave e generalizada violação de direitos humanos. No entanto, boa parte da comunidade internacional ainda não acolheu essa definição mais ampla de refúgio.
“Os venezuelanos são um caso claro de como essa divisão entre refúgio e migração é extremamente tênue. No Brasil está muito claro que os venezuelanos devem ser considerados refugiados, mas no mundo não há um consenso sobre essa situação”, ressalta a pesquisadora Patrícia Nabuco Martuscelli, doutora em Ciência Política pela USP e especialista em questões de migração e refúgio.
A pesquisadora pondera ainda que essa falta de consenso não ocorre apenas com os venezuelanos. “Na Suíça, por exemplo, os sírios não são reconhecidos como refugiados prima face”.
No relatório do ACNUR são citadas ainda formas complementares de proteção aos venezuelanos que vêm sendo adotada por diferentes países — incluindo o Brasil —, como residência temporária e outras formas de regularização migratória.
O Brasil no mapa global do refúgio
Entre outros destaques, o Tendências Globais coloca o Brasil como um dos países protagonistas na questão do refúgio e cita o reconhecimento em bloco de venezuelanos como uma boa prática.
Os venezuelanos representam 88% dos 43 mil refugiados reconhecidos pelo pelo governo brasileiro, de acordo com dados divulgados no último dia 8 de junho pelo Conare (Comitê Nacional para Refugiados). Esse dado foi alavancado por pareceres do colegiado que reconheceram, de uma só vez, as solicitações de cerca de 38 mil venezuelanos entre o final de 2019 e o começo de 2020.
Esses dados fizeram do Brasil, pelo segundo ano seguido, o sexto país que mais recebeu solicitações de refúgio no mundo (82,5 mil) e o terceiro nas Américas — atrás somente de Estados Unidos e Peru.
Solicitações de refúgio pendentes
O relatório cita ainda que há pelo menos 363,6 mil pessoas no país “no campo de interesse” do ACNUR. Esse número contempla ao menos 207 mil solicitações de refúgio ainda pendentes junto ao governo ao final de 2019.
“O Brasil é um dos países de destaque em relação a essa população e se mantém como um importante player, um marco para a região e para o mundo. Mas não basta o reconhecimento apenas de um determinado país, não se pode esquecer das demais nacionalidades”, pondera Pachioni. Estima-se que pessoas de pelo menos 80 países estejam representadas nas solicitações de refúgio ainda pendentes no Brasil.
“Obviamente, há um reconhecimento da boa prática de garantir refúgio para os venezuelanos. Pelo menos nesse ponto [o Brasil] está fazendo o mínimo. Mas temos esse gap no nosso processo de refúgio”, completa Martuscelli.
Além dos reconhecimentos em bloco, o Conare também decidiu em fevereiro passado pelo cancelamento dos pedidos de refúgio daqueles que já obtiveram autorização de residência no país com base na Lei de Migração.
A medida foi vista por alguns pesquisadores como uma forma de agilizar o trâmite de solicitações. Mas também é alvo de fortes críticas por outros especialistas por representar um enfraquecimento do refúgio como elemento de proteção internacional.
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