Testemunhos de migrantes dão uma outra ideia da devastação, das incertezas e das falhas do poder público que ganharam destaque após a queda do chamado “prédio de vidro” em São Paulo
Por Alex André Vargem
Em São Paulo (SP)
A tragédia do incêndio e desabamento do edifício Wilson Paes de Almeida (ou prédio de vidro, para alguns), no dia 1º de maio, evidenciou as fragilidades da política habitacional na maior cidade do Brasil. Mais do que isso, expôs também as fragilidades de uma política migratória que ainda não logrou êxito referente ao acolhimento, considerando que aproximadamente 30% dos moradores, segundo o poder público, eram de outras nacionalidades, além dos demais imigrantes que moram em diversas habitações precárias na cidade de São Paulo.
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Durante as primeiras horas do dia 1º de maio, imigrantes e refugiados que habitam no centro de São Paulo já alertavam do acontecimento com transmissões online em redes sociais. Me dirigi para o local bem cedo imaginando o que encontraria. Durante as primeiras horas, transeuntes e curiosos que estavam na avenida São João junto da grade de proteção que foi instalada, realizavam selfies do ocorrido. Do lado oposto, na avenida Rio Branco, estavam os escombros daquilo que até poucas horas atrás era um edifício de 26 andares, com pequenos focos de incêndio e uma forte fumaça e cheiro que impregnavam o ambiente. Iniciavam-se as chamas nos últimos andares no prédio do lado dos escombros.
Tudo isto dava a dimensão da tragédia, em meio aquele cenário: bombeiros, médicos, policiais, enfermeiros, membros da Defesa Civil, alguns órgãos de assistência social e recém-desabrigados do edifício, compostos por brasileiros e imigrantes, que buscavam entender o que se passava.
Ações de solidariedade
Personagem central, Mama África, como é conhecida pela sua comunidade, uma senegalesa de 60 anos de idade, há 10 anos residente no Brasil, representava o espírito maternal e a força da mulher africana. Foi ela que nas primeiras horas, ainda de madrugada, organizou as redes paralelas de cooperação e solidariedade junto ao seu grupo de africanos, alguns dos quais muçulmanos. Eles organizaram um café da manhã para os sobreviventes brasileiros e imigrantes que se aglutinavam no Largo do Paissandu. Eles levaram iogurtes, água e pães com margarina. Falavam que tinham que retribuir a hospitalidade que receberam dos brasileiros.
Como habita há poucas quadras do local, foi ela mesma que levou seu colchão e cedeu para crianças desabrigadas na praça que não tinham onde dormir. Além disso, levou duas malas de roupas no fim daquele dia para distribuir para todos e ofereceu a sua moradia para que alguns pudessem tomar banho.
Com o passar das horas estávamos na área delimitada em constante diálogo com poder público pensando, sobretudo, nos imigrantes sobreviventes e desaparecidos. Junto de nós, Pierre, liderança haitiana se fez presente e atuávamos na mediação e tradução daqueles que não falavam português e consequentemente não entendiam as orientações dadas pelas assistentes sociais e outros agentes públicos. Uma senhora haitiana residente do prédio desabado foi acompanhada pelo haitiano até a ambulância para os atendimentos primários de saúde. Foi alertada que a pressão estava bem alta. Ela só falava o creole haitiano e um pouco de espanhol por ter residido algum tempo na República Dominicana. Era a segunda vez que tinha sua habitação destruída, pois veio para o Brasil logo após perder sua casa por conta do terremoto de janeiro de 2010 no Haiti. Recordava o drama de ficar novamente sem lar.
Um senhor congolês, sobrevivente de um conflito no interior do seu país, estava transtornado com o ocorrido. Com olhar entristecido, olhava para o horizonte. Não queria comer, fumava apenas um cigarro. Comunicava-se em Lingala (língua falada em algumas regiões do continente africano, incluindo parte da República Democrática do Congo) com outro conterrâneo que ficou feliz de saber que estava vivo. Na parte posterior da sua camiseta os dizeres: “Glória à Deus”, se destacavam. Ele relutou, mas foi convencido pelos africanos presentes a ir para a perua que o transportou até o abrigo provisório da Prefeitura.
Enquanto chegavam brasileiros com mais donativos, representantes da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e da Defesa Civil consultavam a Mama África sobre como acolher os donativos e a melhor forma de distribuí-los para os desabrigados. Foi acordado de ficar na Igreja Católica. No interior do espaço, um numeroso grupo de evangélicos traziam os donativos, no caso, alimentos não perecíveis. Africanos muçulmanos também ajudaram a organizá-los.
Na parte de fora, jornalistas eram criticados por alguns militantes que estavam nas comemorações do dia do trabalho na Praça da República. Africanos e haitianos dialogavam com alguns jornalistas em alguns momentos, queriam conceder entrevistas e dar o ponto de vista deles, mas não obtiveram êxito, não tiveram voz.
Tensões e incertezas
Da mesma forma que houve solidariedade, houve também hostilidade. Quando a senhora senegalesa e a liderança haitiana pegavam donativos para distribuir para os desabrigados, uma senhora brasileira do edifício desabado expressava o seu ódio: “Polícia, polícia, tira eles daqui….eles saem da África para virem perturbar a gente aqui!”. Ambos não aceitaram as ofensas e se defenderam contra argumentando que, mesmo naquela difícil situação, a brasileira que os agredia verbalmente estava consciente dos seus dizeres. Imediatamente, a Guarda Civil Metropolitana interviu e mediou a situação. Eles foram orientados a ficar do outro lado do Largo do Paissandu.
O tempo passava, e era nítido o olhar de desespero. Uma mulher peruana remanescente da antiga ocupação do Cine Marrocos (prédio próximo ao local do desabamento e que foi reintegrado pela Prefeitura no ano de 2016) estava nas escadas da igreja, desolada, sem saber para onde ir novamente. Manifestava sua indignação perante a ausência do poder público, sobretudo, órgãos públicos relacionados à migração. Um nigeriano buscava notícias do seu irmão que estava na ocupação, ele só falava inglês. Num primeiro momento estava feliz de saber que o software de mensagem do celular do irmão estava online, mas não havia respostas. Com o passar das horas, o desespero tomou conta, pois havia a possibilidade de que seu irmão estivesse desaparecido. Um ônibus vermelho de dois andares que realiza o city tour por alguns pontos da cidade passava pelo local, na avenida São João. Alguns turistas no 2° andar realizavam registros fotográficos do episódio.
Nos dias seguintes, as redes de cooperação continuaram. Camaroneses organizaram um panelão de arroz com frango para distribuir para os desabrigados no Largo do Paissandu. Um outro camaronês, vendo as pessoas dormindo na praça, majoritariamente brasileiros, comentava de se criar uma associação para ajudá-los. Novos transeuntes e trabalhadores da região faziam selfies. Um jovem brasileiro residente do edifício desabado conversava comigo:
“Eu vi você estes dias aqui, fique tranquilo, você vai achar o seu parente, ele está vivo! Ele é de que país?”, perguntava. Em seguida, ele me deu um abraço. Sem saber o que responder ao certo, retribui o abraço e respondi com um simples, “obrigado!”.
Em um grau inferior
Na escala da tragédia, ainda imigrantes e refugiados ficam num grau inferior, seja por conta da língua, seja pelos serviços diferentes em relação aos brasileiros como obtenção de documentos em órgãos específicos. O drama da busca de sobreviventes era latente. Não havia muitas informações precisas do poder público. O repertório de ideias entre imigrantes é importante, considerando que muitos não têm famílias no Brasil, como fazer o reconhecimento de futuros corpos? Pior ainda se tiver que ser feita comparação genética sem saber a nacionalidade de possíveis restos mortais. Quem vai reivindicar o corpo? Considerando também que para além dos familiares, apenas aqueles com vínculos afetivos mais próximos podem fazê-lo, eram algumas das questões dialogadas nos primeiros dias entre as comunidades migrantes.
Os testemunhos eram vários, de sobreviventes ou dos que conheciam pessoas que moraram no edifício. Um haitiano morador do centro falava que pessoas acenavam com a luz do celular no momento do incêndio, outros falavam que latinos, africanos e haitianos ficavam nos últimos andares. Ativistas imigrantes de diversas nacionalidades se organizavam para tentar encontrar os sobreviventes e desaparecidos, e cobraram uma atitude plausível das autoridades.
Um jovem nigeriano sobrevivente comentava da sua produção cultural: “Eu sou um artista, você tem que ver minhas músicas na internet. Eu vou fazer uma música sobre tudo isso que aconteceu!”, declarava. Num restaurante há algumas quadras dos escombros, alguns imigrantes souberam do fato apenas pelos familiares que estão no país de origem, “Minha família viu na CNN, perguntaram se estou bem”, declarava um imigrante. Outros sequer sabiam do ocorrido pela rotina difícil de trabalho diário e pouca integração no país, um deles dizia: “O prédio pegou fogo? Caiu mesmo? Tinha pessoas lá dentro?”
O que estava em jogo também é o repertório de crenças, valores e cosmovisões, como muitos imigrantes lidam com tragédias e mortes. Isso me lembrou o caso que acompanhei diretamente do amigo, pastor José Bolayengue, congolês de 51 anos que faleceu em janeiro de 2018 por conta de um câncer nos rins, morador de uma ocupação no centro da cidade de São Paulo. Houve a negociação do luto na diáspora, com a comunidade congolesa na cidade e no país de origem. Mas como vivenciar um luto sem saber que os desaparecidos morreram ou estão em outros espaços? Mais do que isso, se as famílias sabem do fato, considerando que há aqueles que sequer relatam para parentes no país de origem que moram em ocupações no Brasil.
Um imigrante relatava: “Não vão encontrar corpos, Deus quis assim para minimizar o sofrimento das famílias”. Já um angolano residente há muitos anos no Brasil, inclusive, foi um dos primeiros a chegar no local do ocorrido, falava da água que levou e cobertores de madrugada para os sobreviventes. Relatava o acidente: “Você viu? 800 graus! Derreteu tudo, até vidro. Dificilmente vão encontrar alguém vivo. O prédio caiu muito rápido. Sentiu o cheiro horrível de cadáveres? É o cheiro da morte aqui! Vocês brasileiros não sabem o que é uma guerra, por mais que milhares morrem todos os anos no país, isso que aconteceu aqui para alguns de nós africanos nos faz lembrar das guerras, lembra as mortes”, e frisou: “Mortos são mortos, por mais que não haja corpos, estão mortos!”.
*Alex André Vargem é sociólogo, pesquisador sobre migrações e refúgio. Possui diversos artigos publicados. Atua na área há 15 anos.