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domingo, dezembro 22, 2024

Uma série sobre grave e generalizada violação de direitos humanos e o reconhecimento de refugiados pelo Brasil – parte 1: Venezuela

Decisão histórica do Conare sobre a Venezuela, em 2019, contrastou com ações posteriores do então governo vigente no Brasil, como as portarias que violaram direitos de migrantes no Brasil em meio à pandemia de Covid-19, especialmente de venezuelanos

Por Cíntia Barbosa Barros
Do ProMigra

Prosseguindo com a série de textos que abordam a temática sobre como o Brasil tem utilizado o conceito de grave e generalizada violação de direitos humanos no contexto do reconhecimento de refugiados, iniciaremos um debate sobre a República Bolivariana da Venezuela. A razão é a influência do contingente de migrantes venezuelanos para as mudanças significativas no âmbito da política migratória brasileira, representando atualmente o maior fluxo recebido no país.

A crise política, econômica e social enfrentada pelo país vizinho nos últimos anos tem resultado na contínua chegada de migrantes em busca de condições dignas de vida.

Em março de 2018, foi criada a Operação Acolhida como uma resposta conjunta do governo brasileiro, organizações internacionais e sociedade civil para lidar com o crescente fluxo migratório de venezuelanos. Essa operação tem como fundamento três eixos principais: “ordenamento da fronteira”, “abrigamento” e “interiorização”. A operação ganhou destaque internacional no ano de 2022 ao ser reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) como um trabalho pioneiro e efetivo na prestação de assistência e integração das pessoas venezuelanas, além de garantir e preservar a dignidade dos refugiados.

Dados atualizados da Plataforma RV4 confirmam que o Brasil já reconheceu 53.307 venezuelanos na condição de refugiados.  Este número pode ser explicado por motivos diversos: a continuidade do intenso fluxo migratório,  a fronteira terrestre entre os dois países e o reconhecimento da grave e generalizada violação de direitos humanos pelo Estado brasileiro.

Breve noção sobre o conceito de  “Grave e Generalizada violação de Direitos Humanos”

Nas décadas de 1970 e 1980, diversos países da América Latina foram palco de graves conflitos armados decorrentes de governos ditatoriais, acarretando um grande fluxo de pessoas para os países vizinhos. Nesse contexto, surgiu mais um marco na esfera da política migratória: a Declaração de Cartagena de 1984, que ampliou uma nova categoria para a concessão de refúgio, no caso de grave e generalizada violação de direitos humanos nos países de origem dos migrantes que estavam sendo vítimas dos regimes ditatoriais. Tal critério foi adotado pelo Brasil por meio da Lei nº 9.474/97, conhecida popularmente como Estatuto do Refugiado.

Essas violações podem ser praticadas por governos, grupos armados, forças de segurança, instituições estatais, organizações criminosas ou quaisquer outros atores que tenham o poder de exercer controle e autoridade sobre uma determinada população. Podem abranger violência física, tortura, execuções sumárias, desaparecimentos forçados, detenções arbitrárias, exceções, restrições à liberdade de expressão, ocultação política e outras formas de opressão.

A decisão do Conare e o marco para a política migratória brasileira

No dia 14 de junho de 2019, durante a quadragésima reunião do CONARE (Comitê Nacional para os Refugiados), houve o reconhecimento formal da situação dos venezuelanos na condição de refugiados baseado no critério da grave e generalizada violação de direitos humanos. Essa decisão é considerada um marco para a política migratória brasileira e facilitou a regularização de milhares de venezuelanos que aguardavam o processo burocrático de reconhecimento desta condição, possibilitando a adoção de percurso mais célere. Posteriormente, ensejou na aplicação do procedimento “prima facie”, assim como a possibilidade do reconhecimento da condição de refugiado por meio de decisão em bloco.

A medida foi tomada dentro do contexto do governo de extrema-direita de Jair Bolsonaro, que logo no início da sua gestão decidiu revogar a adesão do Brasil ao Pacto Global para a migração segura, ordenada e regular, com o objetivo de preservar os valores nacionais. Diante desse cenário, surge o questionamento sobre qual seria o interesse intrínseco do governo em regularizar a situação dos venezuelanos.

Nesse sentido, ao reconhecer a condição de refugiado dos venezuelanos com base na definição da Declaração de Cartagena, o governo brasileiro estaria denunciando as dificuldades enfrentadas pelo governo venezuelano. Argumenta-se que o país de origem não garante os direitos básicos de seu povo, que foram obrigados a fugir da “miséria”. Essa narrativa busca associar o regime de viés socialista ao governo liderado pelo Partido dos Trabalhadores no Brasil. Assim, o governo Bolsonaro aproveitou a questão para impulsionar uma batalha ideológica entre “direita” e “esquerda”, sem prevalecer de fato um compromisso com a causa humanitária.

Seguindo essa linha de raciocínio, no ano seguinte, durante a pandemia de COVID-19, foram publicadas uma série de portarias que restringiram o acesso dos venezuelanos ao território nacional, justificadas como medidas sanitárias.

Dessa forma, percebe-se o posicionamento oportuno do governo diante do fluxo migratório de migrantes, aproveitando a repercussão histórica da decisão do CONARE para propagar batalhas ideológicas entre governos e, posteriormente, restringir o acesso destes ao território brasileiro sob a alegação de propagação do vírus SARS-CoV, impossibilitando à solicitação de refúgio.

Essas ações sugerem que houve uma motivação política e ideológica por trás das decisões relacionadas à migração venezuelana, em vez de um compromisso genuíno com a causa humanitária.

Sobre a autora

Cíntia Barbosa Barros é mestranda do Programa e Pós-Graduação em Relações Internacionais  (PPGRI-PRI), na Universidade Federal do ABC, onde atualmente pesquisa sobre a prática de Direitos Humanos nos Abrigamentos de Venezuelanos localizados na cidade de Boa Vista. É integrante do ProMigra e graduada em Direito pela Universidade de Fortaleza.

Referências

JUBILUT, Liliana Lyra; PEREIRA, Giovana Agútoli. Mudanças no procedimento de reconhecimento do status de refugiado no Brasil ao  longo dos 25 anos da Lei nº 9.474/97 e seus impactos na proteção das pessoas refugiadas. REMHU, Rev. Interdiscip. Mobil. Hum., Brasília, v. 30, n. 66, dez. 2022, p. 165-190

MOREIRA, Julia Bertino; MARTINO, Andressa Alves. A política migratória brasileira para venezuelanos: do “rótulo” da autorização de residência temporária ao do refúgio (2017-2019). REMHU, Rev. Interdisciplinar. Mobilidade Humana.  Volume: 28, Número: 60, Publicado: 2020.

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