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terça-feira, outubro 15, 2024

Uma série sobre grave e generalizada violação de direitos humanos e o reconhecimento de refugiados pelo Brasil – Somália

ProMigra amplia série no MigraMundo sobre grave e generalizada violação de direitos humanos com países que reúnem condições para reconhecimento semelhante pelo governo brasileiro

Por Isabela Capato
Do ProMigra

Conforme já discutido em outras matérias desta série, o Brasil é reconhecido internacionalmente pelo desenvolvimento da sua concepção de refúgio, aclamada pela sua amplitude e abrangência. O país se baseia na concepção clássica de refugiado, ditada pelo Estatuto de Refugiados da Organização das Nações Unidas (ONU), de 1951, que descreve estes como pessoas que se encontram fora do país de sua nacionalidade e não podem ou não desejam voltar a ele por temor de serem perseguidas por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo
social ou opiniões políticas. Os incisos I e II, do artigo 1ᵒ, da Lei de Refúgio brasileira (Lei Nᵒ 9.474/97) praticamente repetem tais motivos. Ao mesmo tempo, o inciso III desse mesmo artigo reflete uma concepção mais ampla de refugiado, disposta pela Convenção de Cartagena de 1984, reconhecendo como refugiado aqueles que, devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, são obrigados a deixar seu país.

A ideia de grave e generalizada violação de direitos humanos como motivo de refúgio ganhou contornos mais nítidos e foi conceito chave na decisão tomada pelo CONARE (Comitê Nacional para os Refugiados) em 2019, quando o órgão reconheceu a existência de tal situação na Venezuela. Tal decisão teve um impacto enorme, à medida que permitiu a simplificação do processo de reconhecimento e acolhida de milhares de refugiados venezuelanos no Brasil.

Ampliação da série

Nos últimos anos, o CONARE também reconheceu a situação de grave e generalizada violação de direitos humanos (GGVDH) em outros cinco países, além da Venezuela: a Síria, o Iraque, o Afeganistão, e, mais recentemente, a República do Mali e a República de Burkina Faso. Tal reconhecimento e a facilitação do processo de refúgio das pessoas que fogem para o Brasil vindas de tais países se mostraram um forte passo na defesa dos direitos dos imigrantes e da promoção internacional e nacional dos direitos humanos. Nesse sentido, é impossível não contemplar tais decisões, ler a respeito delas, e concluir que, pelos critérios estabelecidos pelo
CONARE para a classificação de uma condição de grave e generalizada violação de direitos humanos, outros países, além dos já reconhecidos, se enquadrariam na classificação, e seus refugiados poderiam também adquirir o direito a um processo de acolhida no Brasil mais simples e rápido.

Considerando este cenário, os integrantes do Grupo de Trabalho Acadêmico do ProMigra elaboraram uma série de textos, com o objetivo de explorar como o Brasil tem utilizado o conceito de grave e generalizada violação de direitos humanos (GGVDH). Os seis textos até então divulgados na plataforma MigraMundo, abordaram os países que já obtiveram o reconhecimento dessa condição pelo CONARE. A presente matéria inaugura uma nova fase
deste projeto, que tem como intenção apresentar países cujas realidades políticas e socioeconômicas se adequam aos critérios de classificação do CONARE e podem, eventualmente, vir a ser reconhecidas pelo Comitê como situações de grave e genralizada violação de direitos humanos.

O país a ser abordado nesta matéria é a Somália, que enfrenta, atualmente, uma grave crise humanitária. Com uma independência recente, sucedida de guerras civis e ataques extremistas, e vítima de graves secas, o Estado africano é responsável por um dos maiores fluxos de refugiados do continente, que se destinam para diversos países do mundo, incluindo o Brasil.

Somália: contexto político e histórico

A República Somali é um país localizado na África Oriental, na região popularmente conhecida como “Chifre da África”, com origens que remontam a um sultanato árabe fundado no século VII d.C. Nos séculos seguintes, a região foi colonizada pelo Reino Unido e pela Itália, só alcançando a sua independência em 1960. Após a independência, foi instalado no país um governo parlamentar, baseado no modelo europeu. Contudo, as intenções democráticas foram rapidamente frustradas de maneira trágica, com o assassinato do presidente eleito Abdirashid Ali Shermarke, em 1969. O episódio culminou na instalação de uma ditadura militar, sob o
comando do Major-General Mohamed Siad Barre, que liderou o país por mais de duas décadas.

Mapa da Somália e sua localização na África. Crédito: Wikipedia

Ao final da década de 1980, grupos armados de oposição, formados por diferentes clãs, se espalharam pelas regiões central e sul do país. O exército somali se desintegrou, e o Estado entrou em colapso total, ocasionando uma série de mortes e deslocamentos devido aos conflitos internos que eram travados entre as milícias que lutavam pelo poder. Em 1991, o regime ditatorial de Barre foi oficialmente finalizado, porém, as consequências de sua política baseada no tribalismo ecoaram pelos anos que seguiram, marcados pelas guerras entre os diversos clãs existentes no país. Uma série de governos civis interinos foi instalada de 1991 a 2000, na
tentativa de pacificar a nação. Cerca de 14 conferências de reconciliação foram convocadas ao longo dessa década. Em 2004, durante uma dessas conferências (Conferência de Reconciliação Nacional da Somália, organizada pelo Quênia), foi estabelecido o Governo Federal de Transição (TFG), que conseguiu controlar a maioria das zonas de conflito no sul.

Quase que na mesma época, foi constituída a União dos Tribunais Islâmicos (UTI), uma união de 11 tribunais islâmicos financiados por comerciantes e empresários da capital somali, Mogadíscio. A UTI surgiu com a intenção de expulsar as milícias que disputavam o controle da cidade e impor a Sharia (lei islâmica) na região. A UTI tornou-se poderosa em 2006, quando conseguiu derrotar a Aliança para a Restauração da Paz e do Contra-terrorismo, uma associação de comandantes de milícias que teria sido apoiada pelos Estados Unidos. O braço armado da UTI, chamado Al-Shabab, que significa “A Juventude” em árabe, possuía ligações com o grupo
terrorista Al-Quaeda e rebelou-se contra o Governo Federal de Transição e seus aliados da União Africana. O ataque mais brutal do grupo armado ocorreu em 14 de outubro de 2017 quando dois caminhões carregados de explosivos explodiram no centro de Mogadíscio, matando 512 pessoas e ferindo mais de 300.

No início de 2023, o governo do presidente Hassan Sheikh Mohamud, eleito em maio do ano passado, investiu, com o auxílio de outros países do Chifre da África, da União Africana e dos Estados Unidos, em uma ofensiva nacional contra os extremistas do Al-Shabab, buscando atacá-los de todos os ângulos, inclusive os financeiros, no que o próprio líder descreveu como uma “revolta do povo”.

Escritório do ACNUR na Somália envia ajuda humanitária às vítimas dos ataques em Mogadíscio. (Foto: ACNUR – out.2017)

Os anos de conflitos armados e instabilidade política causaram um impacto enorme ao desenvolvimento social da Somália, cuja metade da população atualmente vive abaixo da linha da pobreza (com menos de 1,25 dólares por dia), de acordo com dados do Banco Mundial. O país também sofreu fortemente com as crises climáticas. Entre 2019 e 2020, a Somália foi acometida por inundações, que dizimaram a maioria das plantações e pastagens, e pelo ciclone Gati. A crise foi acrescida de quatro temporadas consecutivas de chuvas fracassadas, com uma
quinta já projetada, e por uma infestação de gafanhotos do deserto, que destruiu as poucas culturas e pastagens que sobreviveram às inundações.

Mais recentemente, a Somália também sofreu os choques da pandemia de Covid-19 e as consequências severas do conflito militar entre Rússia e Ucrânia, já que mais de 90% do fornecimento de trigo da Somália vem desses dois países. Atualmente, 90% do país está enfrentando escassez de água. Cerca de 7,8 milhões de somalis lutam contra a escassez de alimentos. Estima-se que o número de deslocados nos últimos anos ultrapasse a casa de um milhão. Os mais afetados pela fome, de acordo com dados do instituto CARE, são as crianças
com menos de 5 anos e as mulheres grávidas gravemente desnutridas. O mesmo instituto também apontou o impacto de gênero nas crises desencadeadas pela seca e pela pandemia de Covid-19, indicado pelo aumento da violência sexual e gênero durante o período pandêmico e o majoritário deslocamento de mulheres e meninas na Somália.

A grave e generalizada violação de direitos humanos na Somália

Conforme já mencionado, após a elaboração de Estudos sobre o País de Origem (EPOs), o CONARE reconheceu a situação de grave e generalizada violação de direitos humanos (GGVDH) em seis países, até o presente momento: Venezuela, Síria, Iraque, Afeganistão, República do Mali e República de Burkina Faso. A análise empreendida pelo órgão a fim de chegar a sua decisão levou em consideração a presença dos seguintes requisitos nos determinados países, todos dispostos na definição de refugiado da Declaração de Cartagena de
1984:

  • Violência generalizada;
  • Agressão estrangeira;
  • Conflitos internos;
  • Violação maciça de direitos humanos;
  • Outras circunstâncias que tenham perturbado gravemente a ordem pública.

A crise humanitária enfrentada pela Somália, caracterizada pelas graves consequências de conflitos políticos prolongados, ataques de grupos extremistas e choques ambientais severos, responsável pelo deslocamento anual de milhares de pessoas, se encontra descrita pelos exatos requisitos levados em conta pelo CONARE no momento de reconhecer a situação de grave e generalizada violação de direitos humanos em um país. Importante ressaltar que o órgão também leva em consideração a orientação do ACNUR a respeito da situação do país analisado. No caso da Somália, o ACNUR já declarou a condição de refugiados daqueles que evadem do
país, também tendo realizado diversos pedidos globais de ajuda humanitária a fim de amparar a população somali.

Uma outra constatação importante é o fato de que, segundo dados apresentados pelo próprio CONARE, o órgão já se utilizou da disposição do inciso III, do artigo 1ᵒ, da Lei Nᵒ 9.474/97 para conceder refúgio a somalis em território brasileiro em anos passados. De acordo com o relatório intitulado “Reconhecimento de Status de Refugiado pelo Brasil: dados dos primeiros 20 anos da Lei 9.474/97”, publicado em 2021, promovido pela ACNUR, 1,20% de pedidos de refúgio de somalis ao Brasil foram concedidos com base em condição de grave e generalizada violação de direitos humanos (GGVDH) entre os anos de 1998 e 2007. Isso aponta uma
constatação inicial da parte do CONARE da situação devastadora que leva à evasão dos refugiados somalis que buscam auxílio no Brasil. Atualmente, segundo dados dispostos pelo CONARE, em seu painel interativo, 328 refugiados provenientes da Somália aguardam a decisão de mérito acerca de seus processos.

O reconhecimento oficial do CONARE da existência da grave e generalizada violação de direitos humanos (GGVDH) na Somália, feito por meio de uma nota técnica, assim como ocorreu com os outros seis países já citados, apenas contribuiria para expandir a prestação de auxílio a estes refugiados, pois permitiria a facilitação e aceleração de seus processos de refúgio, à medida que os processos passariam a ser julgados de maneira prima facie ou em grupos. Tal reconhecimento, que talvez não esteja tão distante de acontecer, também representaria mais um grande passo em direção à proteção dos direitos dos migrantes e concretização dos direitos humanos e da solidariedade da parte do Estado brasileiro.

Sobre a autora

Isabela Maria Valente Capato é aluna de Direito da UNESP e membro do ProMigra

Referências

BRASIL. Lei Nᵒ 9.474, de 22 de julho de 1997. Define mecanismos para a implementação do
Estatuto dos Refugiados de 1951, e determina outras providências. 1997. Brasília: Diário
Oficial da União, 1997. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9474.htm.
Acesso em: 18 abr. 2024.

JALLOH, Abu-Bakarr. Após 60 anos de independência, Somália vive em caos político. Jornal
DW, 01 de janeiro de 2020. Seção Política. Disponivel em: https://www.dw.com/pt002/ap%C3%B3s-60-anos-de-independ%C3%AAncia-som%C3%A1lia-tornou-se-umestado-falhado/a54007270#:~:text=A%20Som%C3%A1lia%20foi%20colonizada%20por,Abdirashid%20Ali
%20Shermarke%20em%201969. Acesso em: 18 abr. 2024.

BBC Brasil. Entenda o conflito na Somália. Brasília, 29 de dezembro de 2006. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/reporterbbc/story/2006/12/061229_somalia_qa_pu#:~:te
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error. Acesso em: 18 abr. 2024.

FARUK, Omar. Somália retoma controle e lidera luta contra Al-Shabab. Jornal G1, 22 de janeiro de 2023. Seção Mundo. Disponível em:
https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/01/22/somalia-retoma-controle-e-lidera-luta-contraal-shabab.ghtml. Acesso em: 18 abr. 2024.

GOODWIN, Georgina. Crise de insegurança alimentar na Somália. Instituro CARE, setembro de 2022. Disponível em: https://www.care.org/pt/our-work/disasterresponse/emergencies/somalia-food-insecurity-crisis/. Acesso em: 18 abr. 2024.

JUBILUT, Liliana Lyra; GODOY, Gabriel Gualano (Orgs.). Refúgio no Brasil: Comentários à Lei 9.474/97. São Paulo: Quartier Latin/ACNUR, 2017.

JUBILUT, Liliana Lyra et al. Reconhecimento de Status de Refugiado pelo Brasil: Dados dos primeiros 20 anos da Lei 9.474/97. Brasília: ACNUR, 2021.


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