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terça-feira, outubro 8, 2024

Veja como é um dos abrigos criados para migrantes venezuelanos em Roraima

Locais são administrados em conjunto pelo ACNUR e pela Força Tarefa Humanitária, do Exército; parte 2 da interiorização tem voos previstos para início de maio

Por Nayra Wladimila
Em Boa Vista (RR)

Murado, com cerca elétrica e guarita. De fora, lembra uma prisão. Mas por dentro, crianças correm brincando, mulheres estendem roupas em varais, adolescentes se reúnem para conversar e uma pessoa faz um cochilo em um colchão do lado de fora de sua barraca. No primeiro abrigo montado em Roraima após a chegada da Operação Acolhida da Força Tarefa Humanitária, os venezuelanos que antes ficavam ao relento nas praças de Boa Vista aos poucos vão se acomodando no novo endereço – mas que esperam ser pelo menor tempo possível.

Batizado com o nome do bairro onde está localizado, o Jardim Floresta, o local tem a sua infraestrutura administrada pela Operação, e a sua gestão de pessoas feita pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). Ambos possuem salas com seus voluntários e militares, alguns deles dormindo no próprio abrigo.

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Até o fechamento desta reportagem, 2.693 pessoas viviam nesses espaços (cinco em Boa Vista e um em Pacaraima), de acordo com a Força Tarefa Humanitária. Todos os abrigos operam acima da capacidade para o qual foram planejados – a situação é mais grave no Pintolândia, o primeiro a ser criado, ainda no final de 2016 e onde estão concentrados os indígenas da etnia Warao.

Pintolândia: 635 abrigados (capacidade para para 380)
Jardim Floresta: 651 abrigados (capacidade para 600)
Hélio Campos: 278 abrigados (capacidade para 250)
Tancredo Neves: 307 abrigados (capacidade para 300)
São Vicente: 304 abrigados (capacidade para 300)
Janokoida (Pacaraima): 503 abrigados (capacidade para 500)

Barracas no abrigo Jardim Floresta, em Boa Vista, um dos locais criados para alojar os venezuelanos na cidade.
Crédito: Nayra Wladimila/Migramundo

Organização

A ONU definiu os critérios para a implementação do espaço: pó de brita no chão, para não sujar as barracas quando chover, tanques para lavagem de roupa, banheiros em contêineres (atualmente são dez, sendo que metade é usado por mulheres e a outra metade por homens, ficando em lados opostos do terreno), barracas com uma divisória ainda na entrada, garantindo a privacidade das famílias. Essas normas são padrões da Organização para qualquer abrigo para refugiados.

O capitão João Luiz Madeira, coordenador do abrigo Jardim Floresta, mostrou que lá também já tinha um banheiro masculino e um feminino de alvenaria. Há um pequeno prédio de dois andares para a administração militar e os atendimentos médicos diários, feitos por clínicos-gerais que compõem ou o Exército, ou a Marinha ou a Aeronáutica. “Garantimos que haja pelo menos um clínico-geral aqui todos os dias. Ele faz os atendimentos iniciais e encaminha o paciente para hospitais, em situações mais graves. Aqui também fazemos a vacinação dos imigrantes”, explicou.

É no muro deste prédio, que fica à direita da entrada do abrigo, que estão afixadas várias informações em folhas A4, escritas totalmente em espanhol pelo ACNUR. Em um deles consta a relação do kit individual que o imigrante que chega pela primeira vez recebe. Para os maiores de 12 anos, ele contém três sabonetes, dois cremes dentais, três escovas de dente, quatro shampoos, cinco toalhas, seis lençóis, sete conjuntos de louças (prato, copo e colher), oito garrafas de água, nove desodorantes, dez barbeadores, e as mulheres levam dois pacotes de absorventes.

Os menores de 12 anos recebem os mesmos itens, mas em quantidades reduzidas; as crianças com menos de dois anos ganham dois pacotes de fraldas. Há ainda o kit familiar: para até cinco pessoas, são um pacote de papel higiênico, dois sabões em pó, três escovas, quatro lãs de aço, cinco detergentes, seis esponjas, sete desinfetantes, oito cloros e nove sacos para lixo. As quantidades aumentam se a família for maior.

Também constam um mapa da cidade com as indicações dos serviços públicos essenciais; outro sobre como se matricular na rede pública de ensino; e até mesmo sobre os procedimentos para denunciar a violência contra a mulher e a se prevenir de doenças como a AIDS.

São três refeições distribuídas no abrigo: das 8h às 9h sai o café da manhã, das 12h às 13h o almoço e das 18h às 19h o jantar. Não é permitido busca-las fora desses horários, e é preciso avisar quando alguém não aparecerá para comer. O ACNUR ainda recomenda que a comida seja entregue somente nas mãos dos adultos, para evitar algazarras. A entidade produz carteirinhas com a foto, o nome e um código de barras que identificam os imigrantes e acusam se alguém tentar comer mais de uma vez. Cada família precisa levar pelo menos uma destas carteirinhas para receber sua refeição.

Roupas estendidas pelos venezuelanos que vivem no abrigo Jardim Floresta, em Boa Vista.
Crédito: Nayra Wladimila/MigraMundo

Madeira explica que uma parte dos alimentos foi comprada pelo Exército, e o restante está sendo pago pela Força Aérea Brasileira (FAB), sendo que o ACNUR tem o cuidado de distribuir o mesmo prato para todos. “Eles estão acostumados com comidas semelhantes às nossas. Mas não gostam quando servimos farinha, se sentem até constrangidos”. Por quê? “Na Venezuela, ela é usada como ração para galinhas”, ensinou.

Na guarita, um sargento, um cabo e dois soldados conferem a carteirinha de cada pessoa que tenta entrar no abrigo. Quem perder a sua ou for roubado, precisa esperar pelo menos trinta minutos do lado de fora enquanto seu nome é procurado em uma lista confidencial com os nomes de todos os moradores. “Essa demora é em parte para que eles sejam estimulados a terem mais disciplina com este documento, pois algumas pessoas já o perderam três vezes, e há um custo para produzi-lo e plastifica-lo”, detalhou o capitão Madeira.

Várias pessoas estavam do lado de fora do terreno no momento da reportagem. Algumas delas, além da pista de asfalto. “Muitas ficam com placas pedindo emprego ou vendendo alimentos, outras estão recebendo visitas. É que não permitimos pessoas estranhas aqui dentro, por motivo de segurança”, disse o coordenador do abrigo.
“Não temos toque de recolher, mas convém que todos retornem até às 22h”, acrescentou.

O capitão João Luiz Madeira, coordenador do abrigo Jardim Floresta.
Crédito: Nayra Wladimila/MigraMundo

As restrições na segurança são para evitar que o novo abrigo fique semelhante ao primeiro inaugurado pelo Governo do Estado em Boa Vista, no bairro Tancredo Neves, que já havia se tornado ponto de tráfico de drogas. Por isso, o Comandante da 1ª Brigada de Infantaria da Selva, general Gustavo Henrique Dutra, visita o Jardim Floresta com frequência, para que as barracas continuem em ordem.

Moradores

João Luiz Madeira disse que todos que moram ali estão com suas famílias, tendo sido removidos principalmente das praças Simón Bolívar e Capitão Clóvis, onde os venezuelanos estavam acampados em grande quantidade e sofrendo com o descaso. As pessoas solteiras foram encaminhadas para outros abrigos.

O casal Mercedes Acuña, 50 anos, e Carmelo Navarro, 46, foi um dos que conseguiram uma barraca no Jardim Floresta. Eles já estavam vivendo com dificuldades, juntamente com o filho de cinco anos, na cidade de Cumaná, no Estado de Sucre. Mas foi a notícia de que crianças e idosos já tinham morrido de fome no lugar que os fizeram tomar a decisão de partir para o Brasil. Há dois meses chegaram em Boa Vista, a pé, se instalando na praça Simon Bolívar. Lá, todos os dias sentiram medo de serem atacados, devido à visão negativa que os brasileiros têm dos seus conterrâneos. Mas quando grupos xenofóbicos se concentraram na praça para pedir pela saída deles, a família já havia se mudado.

No Jardim Floresta, eles têm barraca própria. Nela, há espaço, ainda que reduzido, para acomodar as cadeiras nas quais sentamos durante a entrevista, e para guardar os brinquedos do filho. O menino, sorridente, brincava com um carrinho durante a reportagem. Apesar de mais seguros, os rostos cansados e os cabelos despenteados de seus pais demonstram que eles ainda estão longe de se sentirem tranquilos: sonham com um teto próprio a curto prazo, e com empregos que lhe permitam comprar um imóvel na Venezuela para deixarem de herança para o único filho. “Nos preocupamos em acontecer algo de ruim conosco e ele ficar desamparado”, suspirou Carmelo Navarro. “Há venezuelanos cometendo delitos aqui, e por eles, pagamos todos”, lamentou sua mulher.

Mercedes Acuña tem uma sobrinha trabalhando em Boa Vista, mas perdeu o contato com ela. No seu país trabalhou em uma doceria, em uma casa de família e foi vendedora autônoma. Seu marido fez de tudo um pouco: eletricista, pedreiro, tapeceiro, hamburgueiro, carpinteiro. Diariamente, pelo menos um deles percorre Boa Vista a pé à procura de uma vaga.

“Nos disseram que em Manaus há mais condições, mas não nos importamos em ir para outro lugar. Somos vacinados e temos o protocolo de solicitação da Carteira de Trabalho”, relatou Acuña.

Mercedes e Carmelo, com os filhos. eles estão alojados provisoriamente no abrigo do Jardim Floresta.
Crédito: Nayra Wladimila/MigraMundo

Reforço

Foi do Jardim Floresta que saiu a maior parte dos 116 imigrantes que partiram para centros de acolhimento em São Paulo e Cuiabá, no processo de interiorização que começou no dia 5 deste mês. A representante do ACNUR no Brasil, Isabel Marquez, disse em coletiva realizada no dia 3 de abril que a Organização Internacional para as Migrações (OIM) apoia no levantamento de pessoas que desejam se mudar e na verificação de suas documentações e vacinas. Uma das ações é o cadastro biométrico dos imigrantes, para acompanhá-los mesmo depois de interiorizados.

Além disso, as ONGs também registram os venezuelanos que estão em abrigos superlotados, como o Tancredo Neves, que desejam se mudar para os novos em Boa Vista. No momento da entrevista, 340 famílias tinham este interesse. “Depois dos primeiros voos de interiorização, quando as tendas que eram ocupadas por estas pessoas se esvaziarem, vamos fazer uma nova triagem para retirar pessoas vulneráveis (grávidas, idosos, deficientes, etc) do abrigo Tancredo Neves, e depois das praças”, comentou.

A previsão dos militares é a de que no início de maio viaje mais uma leva de venezuelanos, cujas quantidade e destino ainda estão sendo decididas pela Casa Civil da Presidência da República. “A percepção nos abrigos é a de que a interiorização será benéfica para os voluntários nesse processo”, disse o tenente-coronel Lima Gonçalves, assessor da Força Tarefa Humanitária.

Tanto a chegada da Operação em Roraima quanto o processo de interiorização foram aguardados com ansiedade pelo poder público e pelas entidades presentes no Estado. No final de março, a praça Simon Bolívar foi subitamente cercada por tapumes pela Prefeitura de Boa Vista, impedindo a entrada de novos imigrantes enquanto os que lá já moravam foram remanejados para o recém-inaugurado abrigo São Vicente, no bairro homônimo, que foi equipado pelo ACNUR e pela Força Tarefa.

Em apenas dois dias, o problemático abrigo do Tancredo Neves foi repaginado recebendo desde desratização até circuito interno de TV. Segundo o tenente-coronel Lima Gonçalves, até o fim de abril será inaugurado mais um local, no bairro Nova Canaã, uma vez que a época de chuvas está chegando aos poucos e causando muitos aperreios às pessoas que ainda estão nas praças.

Os militares pretendem ficar no Estado por no mínimo um ano, adaptando e inaugurando abrigos em Boa Vista e então em Pacaraima, as cidades que mais recebem venezuelanos. Na cidade fronteiriça, a previsão é de pelo menos mais um espaço para acomodar os imigrantes, separando os índios da etnia Warao do restante dos estrangeiros.

Vista da área externa do abrigo Jardim Floresta, um dos locais criados para comportar os migrantes venezuelanos em Boa Vista.
Crédito: Nayra Wladimila/MigraMundo

Na coletiva de imprensa realizada no dia 3 de abril, o coordenador da Força Tarefa Humanitária, general Eduardo Pazuello, anunciou que o planejamento do Exército era se concentrar primeiro em Pacaraima, mas que ao chegarem em Roraima, perceberam que a capital precisava de mais urgência.

Isso porque a média de venezuelanos que atravessa a fronteira todos os dias é de 455,6 pessoas. 352 delas vão para Boa Vista, 49,5 pretendem ir para outras cidades brasileiras e 54,1 querem ir para outros países. Os dados são da Polícia Militar de Roraima e foram divulgados na coletiva. Segundo a ONU, a média é de 400 pessoas atravessando os dois países diariamente.

Desta forma, além dos locais de acolhimento, começou a ser estruturado um posto de triagem no antigo prédio Latife Salomão, no bairro Mecejana. Lá os imigrantes poderão ser vacinados, terem visitas médicas, orientações sobre documentação e poderão registrar seu interesse em se mudar para outras cidades brasileiras. A Polícia Federal ficará na última ponta, traçando para qual abrigo e posteriormente cidade aquele estrangeiro poderá ser enviado. O Tribunal de Justiça de Roraima também dará suporte.

Tudo isto está sendo custeado com os R$190 milhões que o Ministério da Defesa destinou para a Força Tarefa Humanitária, seguindo a Medida Provisória 823/2018.

“Está havendo sinergia de todos os atores em prol da solução do problema do nosso Estado, que passa pelo abrigamento, pelo respeito, pela organização e pela humanização”, falou o general Pazuello. “Todos os nossos recursos estão sendo utilizados com processos licitatórios completos e com planejamento. Desta forma, estaremos devolvendo a Roraima o status quo de um local agradável, limpo e seguro”, declarou.

 

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