publicidade
quinta-feira, julho 4, 2024

Uma série sobre grave e generalizada violação de direitos humanos e o reconhecimento de refugiados pelo Brasil – parte 6: Mali

O governo brasileiro demonstrou avanços ao reconhecer a situação da Grave e Generalizada Violação dos Direitos Humanos (GGVDH) no Mali. Contudo, a situação dos grupos vitimizados pela degradação das condições humanitárias no país Oeste africano exige resposta mais ampla e concertada dos atores locais e parceiros internacionais

Por Mamadú Cisse
Do ProMigra

Este texto é a sexta e última parte de uma série de publicações e análises do ProMigra sobre países cujos refugiados são hoje vistos nas análises de elegibilidade do Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) como pessoas que vivem sob condições da Grave e Generalizada Violação dos Direitos Humanos (doravante GGVDH).

Eis os países que se enquadram nessa figura jurídica: Venezuela, Síria, Iraque, Afeganistão, Mali e Burkina Faso. Essa série de artigos do ProMigra, portanto, tem como objetivo trazer para o debate público a forma que o Estado brasileiro vem utilizando o conceito de GGVDH para reconhecer refugiados.

Neste artigo, a análise expõe o caso do Mali, discutindo o contexto socioeconômico, geopolítico, temporal e geográfico dessa decisão; além de buscar entender o impacto dessa decisão na burocracia das agências que lidam com a temática do refúgio no Brasil e no alívio da emergência humanitária desses refugiados. Para tal, o texto começa fazendo referência à situação no Mali, estabelece os nexos entre aquela conjuntura e o reconhecimento da GGVDH pelo Brasil, explica os trâmites seguidos pelo CONARE e finaliza debruçando acerca da situação dos malianos no Brasil. Todos os dados macroeconômicos e estatísticas sociais citados ao longo do texto foram extraídos da nota técnica 1/2021 do CONARE, ObMigra (2020-2024), PNUD/ONU e Banco Mundial.

Histórico sociopolítico: como o Mali chegou a esse ponto

O Mali é um país situado na costa Oeste africana e herda o nome de um dos impérios mais celebrados na história das civilizações africanas – Império Mali.  Posteriormente, o território foi ocupado pela colonização francesa entre 1890 até conquistar sua independência em 1960. Hoje, o país apresenta uma economia de baixa renda, pouco diversificada e vulnerável às flutuações dos preços das commodities. Cerca de 10% da população é nômade e cerca de 80% da força de trabalho dedica-se à agricultura e pesca. há uma grande diversidade dos grupos étnicos que habitam o país, entre eles: os bambara são 46.3%, os Peuhl/Foulbe 9.4%, os Dogon 7.2%, os Soninke 6.4%, os Malinke 5.6%, os Songhai 5.6%, e demais etnias. As dificuldades na formação de uma identidade nacional unívoca entre os povos dos reinos históricos Mandé e Fulani e o império Songhai têm resultado em falhas persistentes para integrar algumas das populações remotas, em especial as comunidades Tuareg que habitam o nordeste do país, fato que ameaça a construção da nação maliana.

O crescimento populacional com a alta taxa de fecundidade de 6 filhos/mulher e as mudanças climáticas representam oportunidades pelo rejuvenescimento de sua população e força de trabalho; ao mesmo tempo, são grandes desafios às políticas públicas, à autossuficiência na agricultura e segurança alimentar. A taxa de pobreza extrema tem flutuado e se situa em torno dos 47%, concentrada nas áreas rurais densamente povoadas do sul do país.

A pandemia do novo coronavírus e a crise sociopolítica resultante do golpe de Estado de 2020 levaram o Mali a recessão econômica com queda do PIB em torno dos 2%, como efeito do declínio da demanda global por commodities. O Índice de Desenvolvimento Humano de Mali no ano de 2020 foi de 0,434 – 184ª posição entre os 187 Estados membros das Nações Unidas com os valores de IDH disponíveis. A população do Mali é de 22,5 milhões de habitantes, sendo 44,7% da população total do país urbana. A projeção é que a população total do país dobre até 2035 e sua capital, Bamako, é uma das cidades de crescimento mais rápido da África. A expectativa de vida está em torno de 59 anos para homens e 64 anos para mulheres.

De acordo com a constituição do Mali, o regime político é o de república presidencialista, com legislativo unicameral. O presidente é eleito diretamente pelo voto popular da maioria absoluta em duas rodadas, se necessário, para um mandato renovável de cinco anos; ele nomeia o primeiro-ministro. Os membros da Assembleia Nacional de 147 assentos também cumprem mandatos de cinco anos. Mali é um estado laico majoritariamente muçulmano (93,9% da população), sendo o restante dos malianos cristãos (2,8%) e animistas (0,7%). O islamismo no Mali é historicamente moderado, pluralista e sempre coexistiu com outras crenças. Entretanto, a partir das instabilidades políticas ocorridas em 2012, grupos fundamentalistas e radicais têm perturbado esse equilíbrio.

O mês de janeiro de 2012 marca o começo da rebelião dos tuaregues, liderada pelo MNLA. No mesmo ano, militares descontentes com a gestão do governo em relação à rebelião executam golpe de Estado. Em dezembro, a ONU autoriza a Missão Internacional Africana de Apoio ao Mali (AFISMA). Em 2013 houve um avanço ainda maior dos rebeldes e também foi o ano que marcou o começo da operação francesa SERVAL no país. A implementação da AFISMA que visava apoiar o exército do Mali para conter os grupos extremistas (AQMI, MUJAO, Ansar Dine etc.), que assumiram o controle do Norte do Mali, não obteve grandes sucessos e foi substituída por um novo mandato comandado pelas forças da ONU, a Missão Multidimensional Integrada das Nações Unidas para a Estabilização do Mali (MINUSMA). Em agosto de 2013, Ibrahim Boubacar Keita vence a eleição presidencial e em 2015 o governo do país assina acordos visando a pacificação do país e finalização das contendas com alguns grupos rebeldes, o mais importante deles foi o acordo de Argel.

Soldados de paz servindo na Missão da ONU no Mali numa patrulha de longa distância entre Gao e Ansongo. Foto: Fred Fath/Minusma

Daquela data até hoje, o desenvolvimento do cenário socioeconômico e geopolítico tem passado por muitas turbulências; dentre as quais, em 2017, o Conselho de Paz e Segurança da União Africana autorizou a intervenção das Forças Conjuntas G5 Sahel (FC, G5S); em 2018 o Ibrahim Boubacar Keita foi reeleito para presidência, agora com menos avanço no combate à instabilidade causada no Norte pelos grupos rebeldes. Em março de 2020 o partido do presidente Keita ganhou maioria nas eleições parlamentares de forma controversa, gerando protestos e formação de novas alianças oposicionistas. No mês de agosto do mesmo ano, os militares lavaram a cabo outro golpe de Estado em contestação à débil capacidade do poder político gerenciar as crises socioeconômicas, de segurança e da garantia da integridade do território nacional.

Com efeito, em 2021, o coronel Assimi Goita liderou outro golpe de estado, o último registrado no país até a presente data, se tornando no presidente interino até ao momento, sendo que o retorno do poder aos civis por meio de eleições já foi adiado em duas ocasiões: 2022 e agora em 2024. A Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) e outras entidades internacionais têm pressionado pela transição pacífica e retorno do poder aos partidos políticos por via das eleições, mas com poucos resultados em termos de efetividade até ao momento.

Um relatório sobre índice de terrorismo global em 2023, publicado pelo Instituto Global de Economia e Paz, mostrou que a região do Sahel, na África subsaariana e onde o Mali está localizado, é agora o epicentro do terrorismo global, respondendo por mais mortes por terrorismo em 2022 do que o sul da Ásia, o Oriente Médio e o norte da África juntos. Resta acompanhar os próximos desenvolvimentos dessa questão enquanto o governo liderado pela junta militar tenta – com várias deficiências – amenizar as debilidades socioeconômicas e de insegurança mediante o combate aos movimentos armados.

O reconhecimento do Mali como país de GGVDH pelo Brasil

A partir do complexo quadro de vulnerabilidade socioeconômica apresentado acima, vários grupos de insurgente e rebeldes têm aproveitado da fragilidade e lacuna da presença estatal para alargar suas influências por meio de atos de violência e subversão da ordem pública a favor de uma grande variedade de pautas como separatismo, fundamentalismo religioso, disputa por recursos e – importante ressaltar – alguns deles são junções de milícias locais com objetivo de defenderem suas terras, colheitas, gados e comunidades de agressões de outros grupos mediante a ausência ou ineficiência da segurança pública que deveria ser garantida pelo estado maliano. Dentre esses grupos constam o Movimento Nacional pela Libertação de Azawad (MNLA), Estado Islâmico no Grande Saara (ISGS), Al-Qaeda no Magrebe Islâmico (AQMI), Ansar Dine, entre outros.

Por consequência, em abril de 2016, na 113ª reunião ordinária do CONARE a pauta sobre a uma possível situação de GGVDH no Mali foi debatida pela primeira vez, onde representantes dos Ministérios das Relações Exteriores, da Justiça e da Educação, junto a demais participantes das entidades da sociedade civil e ACNUR debateram pontos como diferenciais regionais entre sul brando e norte mais preocupante no tocante à gravidade e urgência da situação no país, tendências dos fluxos da mobilidade humana, elegibilidade para categorização do país como listado em ocorrência da GGVDH e posterior análise aos contextos particulares de cada caso, uma vez que a conclusão foi de não avançar para reconhecimento do GGVDH naquele momento.

Já em 2022, na 160ª reunião plenária realizada em 24 de fevereiro, o CONARE reconheceu a situação da GGVDH na República do Mali e na República do Burkina Faso, ambos localizados no Oeste da África. Esta deliberação acaba facilitando a decisão nos processos de solicitação de reconhecimento da condição de refugiado de nacionais malianos e burquinenses, uma vez que se utiliza um critério objetivo, não sendo mais preciso analisar o fundado temor de perseguição individual de cada solicitante por motivos de religião, raça, nacionalidade, grupo social ou opinião política.

A medida simplifica e agiliza procedimentos, possibilitando uma entrevista de elegibilidade mais simples ou até sua dispensa, se comprovada a nacionalidade e se cumpridos os requisitos aprovados pelo CONARE. Dessa forma, essa decisão gera um alívio na burocracia das agências que lidam com a temática do refúgio no Brasil e na amenização da emergência humanitária desses refugiados.

Na mesma nota técnica 1/2021, o CONARE argumenta no sentido de que há satisfação das cinco dimensões necessárias para declaração da condição de GGVDH no Mali por conta da observação de atos da: 1) violência generalizada; 2) agressão estrangeira; 3) conflitos internos; 4) violação maciça de direitos humanos; 5) outras circunstâncias que tenham perturbado gravemente a ordem pública.

Para tanto, a recomendação final do estudo técnico feita ao CONARE pontua o seguinte:

  1. Adotar procedimentos simplificados para a tramitação dos processos de reconhecimento da condição de refugiado de nacionais malianos;
  2. Que seja dispensada a entrevista de elegibilidade, desde que o requerente: seja portador de documento de identidade maliano; tenha como registro de última movimentação migratória a entrada no Brasil; não tenham nenhuma restrição que indique reprovação contra si; tenha no mínimo 18 anos; não tenha autorização de residência em território nacional;
  3. Que seja mantida a indispensabilidade de verificação de excludentes, com base no art. 3º da Lei nº 9.474, de 1997;
  4. Que seja mantida a indispensabilidade de verificação de óbices, por parte de qualquer instituição ou de indivíduo;
  5. Que seja mantida a indispensabilidade de verificação de permanência em território nacional, inclusive podendo ser provada por meio de entrevista complementar;
  6. Por fim, este reconhecimento do GGVDH é passível de mudança considerando a evolução no contexto interno do Mali.

O processo para o reconhecimento do Conare – Brasil

Historicamente, o marco normativo seminal acerca dos refugiados no sistema internacional é a Convenção das Nações Unidas Relativa ao Estatuto dos Refugiados, de julho de 1951, posteriormente ampliada no que tange à sua limitação temporal e geográfico, pelo Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados de janeiro de 1967.

Em adição, destacam-se ainda a Convenção de 1969 da Organização da Unidade Africana (OUA, atual União Africana) e a Declaração de Cartagena de 1984 como marcos regionais relevantes para a temática do refúgio. A da OUA abordou desafios específicos relacionados ao refúgio no continente africano na altura impactado pelos movimentos de independência e as posteriores disputas políticas internas. Por sua vez, a Declaração de Cartagena se insere no contexto dos conflitos armados vivenciados na América Latina nos anos 1970 e 1980, reconhecendo a hipótese de refúgio por critérios específicos e contextuais.

Foi com essa base que o Brasil contextualizou os critérios de Cartagena em dispositivo legal próprio por meio da Lei n° 9.474, de 22 de julho de 1997, resumindo-o para situação fática de “grave e generalizada violação de direitos humanos”. Sendo este o marco legal que define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951.

O país avançou na definição de refugiado ao contemplar as motivações clássicas de refúgio (oriundas da Convenção de Genebra de 1951) quanto as ampliadas, segundo o marco regional estabelecido em Cartagena que na legislação brasileira foi conceitualizada como toda pessoa que “devido à grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país” (BRASIL, 1997), instituindo também um Órgão colegiado para analisar e julgar os pedidos de refúgio: o Conare, órgão de deliberação coletiva, no âmbito do Ministério da Justiça e Segurança Pública.

De acordo com a Lei nº 9.474, de 1997, uma vez em território nacional, podem ser reconhecidas como refugiadas no Brasil as pessoas que se encontram fora de seu país de origem devido a fundados temores de perseguição relacionados a questões de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a um grupo social específico ou opinião política e não podem ou não querem valer-se da proteção de seu país (inciso I do art. 1°). Segundo este marco legal, são também refugiadas as pessoas obrigadas a deixar seu país de nacionalidade devido à grave e generalizada violação de direitos humanos (inciso III do art. 1°).

Os nacionais do Mali teriam então atendido a esses requisitos e estão cobertos por essa jurisprudência baseada no histórico das legislações citadas acima, com direito a regularização provisória enquanto não haver decisão do processo deliberativo do Conare, reunião familiar e o reconhecimento da condição de apatridia e a possibilidade de aquisição da nacionalidade brasileira para casos elegíveis.

Um olhar aos refugiados malianos no Brasil

É relevante citar que quando fazemos referência a origem das pessoas refugiadas e das pessoas solicitantes de reconhecimento da condição de refugiado, os dados ora analisados tratam de informações, por vezes combinadas, sobre país de nascimento, nacionalidade, ou país de residência habitual, podendo ocorrer alguma imprecisão dentre das variações mencionadas.

De acordo com dados de Tendências Globais da ACNUR e da European Civil Protection and Humanitarian Aid Operations levantados até o primeiro semestre deste ano, existe hoje no mundo um stock de 120 milhões de pessoas em condição de deslocamento forçado. A nível do brasil, no ano de 2023, verificou-se um acréscimo de 8.273 solicitações se comparado a 2022, quando o País recebeu 50.355 solicitações de reconhecimento da condição de refugiado, somando um total de 58.600 solicitações de refúgio ao longo do ano passado.

De forma específica, o cenário global de solicitantes de pedidos de asilo e refugiados no Mali apresenta os seguintes dados: 11.227 pessoas de Mali fugiram e/ou solicitaram asilo em outros países em 2023, de acordo com o ACNUR. Isto corresponde a aproximadamente 0,050% de todos os habitantes. Os países receptores mais frequentes foram a Itália, Mauritânia e a França. Os pedidos mais bem-sucedidos foram os de requerentes de asilo no Togo (país vizinho do Mali) e no Brasil, onde um total de 58 pessoas fugiram de Mali com destino ao país.

Retomando os dados do relatório Refúgio em Números (OBMigra), observamos a seguinte tendência dos solicitantes de refúgio do Mali nos últimos anos: o país tinha um stock de 147 refugiados reconhecidos no Brasil até 2020. Apenas em 2022 foram 96 reconhecimentos, sendo o país que teve maior número de solicitantes da condição de refúgio reconhecidos em 2022, 86% a mais com relação a 2021. Por sua vez, foram 68 solicitações em 2023, tendo registrado todas as 68 decisões como positivas junto ao Conare; ou seja, 100% de todas as novas solicitações foram aceitas. A ver os dados desse ano que serão divulgados em 2025 para seguir acompanhando essa tendência.

Ainda que seja válido notar que, atualmente, o CONARE reconhece que o Mali está em situação de GGVDH e isso possa – por um lado – explicar essa subida considerável nos números de solicitantes de refúgio malianos no Brasil; por outro lado, essas estatísticas também evidenciam a escalada da situação no país e o agravamento das condições desse público.

Por ora, cumpre alertar as agências governamentais do brasil no sentido de acompanharem esses padrões com políticas públicas efetivas e mobilização de atores sociais que atuam no sentido de um acolhimento mais bem-sucedido possível dessas pessoas.

Sobre o autor

Mamadú Cissé é integrante do GT Acadêmico no ProMigra e se interessa pela mobilidade humana, políticas públicas, desenvolvimento e integração regional na África. Atualmente está cursando mestrado em Demografia no CEDEPLAR – UFMG.

DEIXE UMA RESPOSTA

Insira seu comentário
Informe seu nome aqui

Publicidade

Últimas Noticías