O fio da confiança, por mais tênue que seja, constitui o elo invisível das relações humanas e interpessoais em geral. Até mesmo nos pactos do chamado “contrato social” e nos acordos de ordem econômica, política ou cultural – é o “fio de ouro” da confiança que ajuda e tecer os laços, as ligações e os compromissos. Toda ação conjunta comporta alguma dose de confiança. Impossível pensar uma organização entre seres humanos, seja ela de que tipo for, sem o cuidado com esse tecido social. Disso decorrem os múltiplos esforços para recriar, manter, cultivar e preservar o desenho sempre mutável desse tecido.
Por essa razão, entre outras, é que o tema da Campanha da Fraternidade de 2024 (CF/24) – Fraternidade e amizade social – pressupõe o fortalecimento daquele fio de ouro da confiança. Mas também está consciente do fato que essa relação humana invisível, mas de importância fundamental, sofreu anos de dura e inédita tempestade. Um verdadeiro tornado, furioso e turbulento, varreu pela raiz muitas ligações elementares. Laços estreitos, de natureza pessoal, familiar ou social, viram-se violentamente rompidos de uma hora para outra. Perdeu-se a confiança inclusive em relações tão íntimas quanto as que envolvem o namoro, o matrimônio, a família, a escola, a religião, a amizade, a prática política, e assim por diante.
No caso do Brasil, no período do governo Bolsonaro, o ódio, a mentira e a violência instalaram-se por toda parte. Uma linguagem permissiva, grassa e grosseira, funesta e bizarra, própria das redes virtuais, desceu à realidade, contaminando ruas, praças, campos, famílias, instituições e instâncias da sociedade como um todo. Nesse caminho, boas práticas, boas tradições e boas referências se derreteram. Neutralizaram-se inúmeros valores religiosos e culturais. Ameaças constantes, por vezes diárias, rondaram nossas casas, perseguiram nossos calcanhares e irromperam contra a prática democrática em todos seus níveis, mas de modo particular numa vã tentativa de quebrar a espinha dorsal dos poderes Judiciário e Legislativo.
Não poucos pontos sólidos da vida pessoal, familiar, social ou política sofreram abalos sísmicos continuados e significativos. Na linha do estudioso Zygmunt Bauman, o mundo contemporâneo, em seu modus vivendi, tornou-se uma “sociedade líquida”. O relativismo converteu-se numa realidade cada vez mais naturalizada. Quando coisas, pessoas e eventos viram relativos, o umbigo de cada um passa a ser o centro do universo. O “eu” instala-se como senhor absoluto. Daí ao risco do egoísmo e ao individualismo exacerbado, o passo é bem pequeno. A CF/2024 alerta justamente para esse perigo. Como reverter, por exemplo, o autoritarismo, o negacionismo e o nazifascismo – entre outros ismos – que dominaram os últimos anos? São vírus, vícios e vermes que corroeram (e seguem corroendo) relações humanas de toda ordem e que podem levar à negação da própria razão de ser da humanidade.
No enfoque das migrações, e da mobilidade humana em termos mais amplos, a temática da amizade social supõe o rompimento com a discriminação, o preconceito, a xenofobia e outros obstáculos de que são vítimas os migrantes e refugiados em geral. O esquema dos quatro verbos do Papa Francisco – acolher, proteger, promover e integrar – requer uma nova atitude diante do outro, do estranho do diferente. Aqui trata-se de superar a mera multiculturalidade pela interculturalidade. No primeiro caso, pessoas, grupos e culturas distintas se justapõem, numa coexistência mais ou menos pacífica. Não basta, entretanto, a tolerância frente à presença de quem chega. É necessário “avançar para águas mais profundas”. O desafio consiste em superar, num salto qualitativo, “a globalização da indiferença” para dar lugar à “cultura da acolhida, do encontro, do diálogo e da solidariedade, nas palavras do Papa Francisco.
Isso nos leva ao segundo caso, o da interculturalidade. O confronto dos valores e contravalores de cada visão cultural, com seus anjos e demônios, seus lados social e selvagem, com o veneno tóxico ou a simpatia que podem destilar – somente através dessa fusão dinâmica é que as pessoas e culturas poderão encontrar terreno fértil para uma verdadeira depuração e purificação. Nesse confronto marcado pela abertura ao diálogo, entre duas ou mais formas de saber, poderá surgir uma outra esfera de relacionamento possível. Então, e só então, a amizade social será capaz de superar a intransigência, avançando não sem novas dificuldades, para uma espécie de convivialidade e comensalidade onde todos e todas podem sentar à mesa e desfrutar do banquete da vida, numa pátria universal e sem fronteiras. Fratelli Tutti (todos irmãos) que, de uma maneira equânime, distribuem com responsabilidade os frutos de “nossa casa comum”.
Sobre o autor
Pe. Alfredo J Gonçalves, cs, é assessor do SPM (Serviço Pastoral dos Migrantes)