Em tempos em que a intolerância ao migrante se naturaliza, quando pessoas em situação de refúgio são impedidas de ir e vir por muros, ou até mesmo veem seus direitos básicos ceifados, um bom texto pode ser um afago, um carinho na alma.
No último dia 5 de abril, o Sesc Pinheiros, em São Paulo recebeu, no workshop “Escrita Viva”, o diretor venezuelano de telenovelas Raúl Siccalona, que contou sua trajetória para cerca de 15 pessoas. O autor já publicou no MigraMundo anterirmente – leia aqui a crônica “Os velhos também se despedem”.
Antes de encerrar a “charla”, Raúl leu o texto abaixo, de sua autoria, que exprime a situação de quem deixa seu lar em busca de condições mais dignas de vida.
A culpa é dos migrantes
Por Raúl Siccalona
A culpa é dos migrantes, não importa se somos bons ou maus.
Adultos ou crianças ou se já aprendemos a falar português e pagamos impostos, a única coisa que importa é que não somos daqui.
A culpa é dos migrantes, porque não sabemos cumprir a promessa de que no ano que vem estaremos de volta em casa para comemorar com a família.
A culpa é dos migrantes porque somos muito bons em mentir. Mentimos quando nos perguntam como estamos e escondemos nossas horas de trabalho e o pouco tempo em que nos sentimos confortáveis atrás de um “está tudo bem”.
A culpa é dos migrantes por quererem decorar um lugar que não nos pertence, por compartilhar nossa música, nossa alegria, nossa dança, nossa fé com um sorriso que incomoda porque aqui ninguém tem o direito de ser feliz, aqui só viemos para trabalhar, porque não sabemos esquecer o bairro, a rua, o clima, as praias, porque nossas raízes ficaram onde foram arrancadas, porque temos força para tudo, para atravessar selvas, escalar muros, atravessar rios, para trabalhar mesmo dormindo, para suportar o frio da cidade e de sua gente, porque sabemos suportar a dor sem quebrar, não há costas de migrante que não doam, não há calcanhares descansados nem horas completas de sono.
A culpa é dos migrantes porque conosco tudo tem o mesmo sabor, arepas, tamales, ceviches, mate, hallacas, tudo tem sabor de distância, de dor, de suor, de solidão, de saudade porque conosco tudo soa igual, salsa, merengue, cumbia, boleros, rumba. reggaeton, tudo soa como paixão, luta, liberdade, rebelião.
A culpa é nossa porque acreditamos em Deus em todas as suas formas e cores e o usamos pendurado no pescoço, tatuado nos braços, pendurado na parede da casa ou o visitamos aos domingos, no que costumam chamar de dia de descanso, embora todos saibamos que nesta terra ninguém mais encontra descanso.
Os filhos dos migrantes também são culpados, não conseguem ver nos pais um cidadão daqui, nem veem no espelho um cidadão de lá, só reconhecem a mistura cultural e essa mistura continua sendo incômoda para alguns, não importa o nome que tenha: democracia, ditadura, conservadores, há leis novas a cada dia, os de direita, os ultras, os que se dizem de centro, os diplomatas, os armados, os que inventam vistos, os que dão vistos e os que os revogam, todos zelando pelo seu lugar na fábrica das distâncias e no centro um continente inteiro que deve se olhar como irmãos e não estou tentando defender aqueles que roubam e destroem o que funciona, mas que se julgue o crime e não o passaporte, que se condene o mal e não o sotaque, que não se incendeie os campos tentando queimar a peste e acabem levando consigo também a boa semente.
Sonho americano?
Não… Sonho latino, sonho africano, sonho árabe que podemos trabalhar menos e viver mais, que não precisamos esconder o que somos, que podemos processar menos e viver em paz.
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