Por Arnaldo Cardoso*
Os dramáticos naufrágios de barcos de migrantes no canal da Sicília, predominantemente provenientes de países do norte da África como Líbia (ex-colônia italiana) e Tunísia (ex-protetorado francês), registrando muitas vezes centenas de mortes, cristalizaram na percepção de boa parte dos cidadãos italianos e da opinião pública internacional um retrato distorcido da imigração no país, muito em função de uma cobertura midiática inadequada e de uma oportunística exploração do tema por certas lideranças políticas italianas.
A ilha de Lampedusa, pertencente à região da Sicília, está a apenas 200 quilômetros da costa tunisiana e por isso se constitui em destino de imigração. Lampedusa tem uma população de cerca de 5 mil habitantes e vive predominantemente da receita do turismo, além da pesca e da agricultura.
Em 2016 o documentário Fogo no mar (Fuocoammare) do diretor italiano Gianfranco Rosi ganhou o Urso de Ouro do Festival Internacional de Cinema de Berlim retratando o drama dos imigrantes e refugiados que arriscam suas vidas na perigosa travessia do Mediterrâneo rumo a “ilha da esperança”. O documentário reuniu também uma série de depoimentos de moradores locais que vivenciam o drama dos imigrantes. O diretor de Fogo no mar ao receber o prêmio dedicou-o a “todos aqueles que não conseguiram chegar” e aos habitantes da ilha que “mostraram grande humanidade em face ao número de refugiados que chegavam”.
Embora o referido documentário tenha mostrado a solidariedade de italianos locais, isso não é a regra. Na penúltima semana de agosto o governador da Sicília Nello Musumeci, político da direita italiana, assinou uma ordem determinando que em 48 horas todos os centros de acolhimento para refugiados e migrantes fossem esvaziados – hoje há cerca de 2 mil migrantes e refugiados nesses centros – e levados de navio ou avião para outras regiões e que fosse proibida a atracação de novas embarcações com migrantes em toda a região. A justificativa para essa medida seria a proteção da saúde dos cidadãos locais diante da ameaça de contágios por coronavírus representada pelos migrantes. Entretanto, as estatísticas locais produzidas pelas autoridades de saúde mostram que os novos contágios na região têm ocorrido em função do fluxo de turistas no verão europeu e que, os migrantes e refugiados abrigados em condições precárias nos “hot spots” estão sendo contaminados pelo vírus.
O governo central em Roma recebeu a notícia com surpresa e manifestou-se lembrando que esse tipo de ordem não é da competência regional, mas sim nacional, a cargo do Ministério do Interior, o que abriu uma crise com o governo da Sicília.
Não tardou para Matteo Salvini – do partido de extrema direita Liga – aproveitar da controvérsia e declarar “máxima solidariedade com Musumeci”, posição seguida também por Giorgia Meloni do FdI – partido neofascista Irmãos da Itália. Diversos analistas italianos sugeriram que a verdadeira motivação para essa sequência de atos são as eleições municipais marcadas para outubro próximo.
Mais uma vez os migrantes são usados no jogo político sem que ações efetivas, de autoridades italianas e europeias se voltem às causas dos deslocamentos forçados.
Os números e as origens dos imigrantes na Itália
Em 2019 havia 5,2 milhões de imigrantes residentes na Itália, o que representa 8,9% da população total do país. A título de comparação, esse percentual na Alemanha é de 13,1%, e na Espanha, 12,2%.
Os dados mais recentes do Istat (Instituto Nacional de Estatística) sobre países de origem dos imigrantes residentes na Itália mostram que a Romênia é a principal procedência representando 23% do total, seguida por Albânia (9,3%), Marrocos (8,7%), China (5,4%) e Ucrânia (4,5%).
Por regiões pode-se constatar que 50% dos imigrantes residentes na Itália são provenientes de países europeus, 20% de asiáticos, 20% de africanos e 10% de outras origens.
A ISMU (Fondazione Iniziative e Studi sulla Multietnicità) de Milão estimou em 2019 que os irregulares no país eram cerca de 500 mil. Em 2018 as novas chegadas pelo mar foram de 22,5 mil e em 2019 10 mil, portanto com peso bastante reduzido no dinâmico quadro das migrações no país.
Em 2018 foram 112.523 os estrangeiros, com diferentes contextos, que adquiriram cidadania italiana.
Outro dado importante são os vistos de trabalho para estrangeiros que em 2019 foram de 45 mil, incluindo trabalhadores sazonais e uma variedade de casos, entre eles alguns milhares de militares dos EUA das bases da OTAN.
É importante aqui também lembrar que o mercado de trabalho italiano não é muito atrativo, haja visto os números da emigração de jovens italianos em busca de trabalho fora do país.
Os números mostram que é o trabalho não qualificado na Itália que é ocupado por imigrantes, com destaque para o trabalho doméstico e os mais rudimentares na agricultura. Não é muito difícil constatar que é justamente nesses dois setores que a maior parte dos cidadãos irregulares estão desempenhando atividades laborativas.
(A título de observação, imigrantes do Brasil residentes na Itália são cerca de 50 mil e de italianos residentes no Brasil são 280 mil inscritos no Aire (Anagrafe degli Italiani Residenti all’Estero). O Brasil que recebeu no início do século XIX e primeiras décadas do século XX fluxos migratórios de massa provenientes da Itália tem hoje uma comunidade de ascendência italiana estimada em 22 milhões de pessoas.)
A exploração de mão-de-obra de imigrantes na Itália
Búlgaros em Mondragone
Em meio a pandemia as ambíguas relações entre italianos e imigrantes só se agravaram, sendo um exemplo disto a tensão observada na comuna de Mondragone, província de Caserta, na região da Campania que, com 24 mil habitantes, tem na agricultura e turismo suas principais atividades econômicas.
O estopim para uma onda de protestos e ameaças promovida por cidadãos italianos da comuna foi a identificação de um foco de contágio da covid-19 entre imigrantes búlgaros que vivem em Mondragone e trabalham, em sua maioria, no campo.
Em junho passado, um foco de 43 pessoas que testaram positivo foi identificado num conjunto habitacional no centro da cidade composto de cinco prédios dos anos 70, de dez andares, conhecido como Cirio, onde vive uma comunidade de búlgaros estimada em mais de 2 mil pessoas. Nesse lugar pode-se encontrar vagas em apartamentos que custam 100 euros por mês para ter direito a uma cama.
O local foi isolado pela polícia local e os moradores impedidos de sair. Com a notícia de que alguns moradores conseguiram escapar do isolamento e ir ao trabalho no campo, o local foi alvo de protestos de italianos, inclusive com algumas depredações, em repúdio aos imigrantes búlgaros. A imprensa local registrou também relatos de inquilinos búlgaros despejados por proprietários de imóveis.
A precária situação dos búlgaros que trabalham nas plantações de Mondragone não é recente. Em 2018, uma equipe de jornalistas do site italiano Avvenire fez uma reportagem sobre a exploração do trabalho desses imigrantes na comuna de Mondragone.
Na mesma via Razzino em que ficam os prédios do complexo Cirio, antes da emergência sanitária da Covid-19 diariamente se formava uma movimentação antes das cinco horas da manhã com dezenas de pessoas, homens, mulheres, jovens e até crianças aguardando para embarcar em vans rumo a plantações de beringelas, abobrinhas, e outros hortifrutis cultivados nos arredores de Mondragone, em comunas da região do Alto Casertano.
A referida reportagem apurou que os homens ganhavam entre 2 e 4 euros por hora, mulheres entre 1 e 1,5 e menores 1 euro, trabalhando sob sol a pino, sem acesso a banheiros ou alimentação, com jornadas que podem chegar a 12 horas.
É comum que a negociação/contratação ocorra entre um “gerente” búlgaro responsável pelo agenciamento da força-de-trabalho e um “gerente” italiano que representa os proprietários das terras cultivadas. Ambos ficam com parte dos rendimentos da empreitada, cerca de 5 euros por cabeça. E há também os ganhos com a cobrança do transporte pelas vans.
À noite, parte das mulheres são aliciadas em redes de prostituição. Tudo isso é conhecido na cidade, inclusive por sindicatos e a igreja local.
Indianos e africanos em Terracina
E em Terracina, a 75 quilômetros de Mondragone, comuna dedicada a pesca, turismo e agricultura, são os indianos, líbios, nigerianos e bengalis que são explorados no mercado de braços, como mostrou uma reportagem de Antonio Maria Mira, de julho de 2018, com apoio do sociólogo Marco Omizzolo, para o site italiano Avvenire. A reportagem investigativa acompanhou a rotina que se repete todos os dias no centro da cidade, com o embarque de imigrantes em 15 microônibus, às 4 horas da manhã com destino a plantações em Borgo Hermada, Sabaudia e Borgo Sabotino.
A situação desses indianos e jovens provenientes de países da África subsaariana é variada, mas são predominantemente irregulares e requerentes de asilo. Entre eles há uma disputa por trabalho que termina por favorecer os contratantes que aproveitam disto para reduzir o valor da hora de trabalho (em torno de 3 euros) e as condições do trabalho.
O acompanhamento da rotina desses trabalhadores (só nesse circuito são mais de 500) deixou entrever uma rede intricada de interações que envolvem inclusive tráfico de pessoas, subornos e aproveitamento de brechas de leis e portarias que regulam a imigração e que, por fim, asseguram a continuidade e lucratividade dos negócios. A reportagem citada encontrou indícios inclusive de envolvimento da Camorra, máfia que é proprietária de terras na região.
(No próximo artigo serão abordadas a situação de imigrantes explorados em redes de prostituição na Itália, a violência sexual nas rotas da migração, a “economia não observada” na Itália, as implicações de algumas disposições legais sobre migração na Itália, os efeitos danosos da criminalização da imigração e do imigrante e a atual disputa política de narrativas e de valores constitutivos do povo italiano.)
*Arnaldo Cardoso é cientista político, pesquisador e professor universitário.
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