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sexta-feira, junho 13, 2025

A violência letal de Estado que atinge imigrantes africanos no Brasil

Não podemos ignorar a realidade de que o racismo institucionalizado esteja enraizado nas práticas de segurança pública no país

Por Rosiane Trabuco, Marluce Santana e Vitória Ignácio Guilherme
Do ProMigra

“A imigração africana não é bem recebida” – essa foi uma das declarações feita por Prudence Kalambay (atriz e ativista congolesa) durante uma manifestação por justiça, realizada após o assassinato do imigrante senegalês Ngange Mbaye pela Polícia Militar do Estado de São Paulo, em 11 de abril de 2025. O episódio se insere em um preocupante padrão de violência policial direcionada a imigrantes africanos, evidenciando que tais casos não são isolados. Em abril de 2024, o também senegalês Talla Mbaye, vendedor ambulante, morreu durante uma ação policial, ao cair do sexto andar do prédio em que residia. Pouco tempo depois, em maio do mesmo ano, o gambiano Bubbacarr Dukureh tornou-se mais uma vítima de ações policiais letais. Esses episódios sucessivos revelam uma prática sistemática de criminalização e violência institucional contra imigrantes africanos no Brasil.

A recorrência de casos de violência policial envolvendo imigrantes africanos revela a presença do racismo estrutural que atravessa as instituições públicas. A atuação da Polícia Militar de São Paulo é marcada por abordagens violentas, uso excessivo da força e posterior deslegitimação das vítimas, baseados em estereótipos racistas que associam negros e migrantes à criminalidade. Esse cenário foi sintetizado pela atriz, empreendedora e ativista Mariama Bah, durante a Audiência Pública: Segurança Pública e Trabalhadores Ambulantes, realizada em 8 de maio de 2025. Ao perguntar: “Qual a diferença da era colonial e hoje?”, ela convoca uma reflexão sobre a continuidade histórica das formas de dominação racial. E sua afirmação seguinte “É só disfarce que a escravidão acabou para nós”, escancara a permanência de mecanismos de opressão que, embora tenham mudado de forma, seguem produzindo os mesmo efeitos: exclusão, controle e eliminação de populações negras.

Tal contexto evidencia as formas pelas quais o poder público decide quem pode viver e quem deve morrer, é a necropolítica, conceito formulado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe.  A necropolítica explicita a gestão da morte como uma estratégia de dominação. No Brasil ela pode ser expressa nas práticas policiais contra populações negras, periféricas e migrantes, especialmente africanas, haja vista as abordagens da Polícia Militar do Estado de São Paulo, que atua não apenas para negligenciar essa população, mas para eliminá-la por sua cor dentro da estrutura racista da sociedade brasileira. Desse modo, pensar a necropolítica no contexto das migrações africanas para o Brasil, especificamente São Paulo, é reconhecer como o racismo, o colonialismo e a xenofobia se entrelaçam para produzir uma política de morte que atinge seletivamente certos corpos.

A violência letal de Estado contra a população negra no Brasil vem sendo historicamente denunciada pelo movimento negro, diversos coletivos e movimentos de mães e familiares vítimas dessa violência. Essa violência alcança a população negra em todo território nacional, independente do local de origem, os migrantes negros vivenciam no Brasil as mesmas opressões que perpassam o cotidiano de corpos negros nesse país.

É  importante não perdermos de vista que a ação policial que resultou na morte do senegalês Ngange Mbaye está diretamente relacionada a seu trabalho no comércio de rua como ambulante, atividade que também é realizada por diversos outros  imigrantes em São Paulo e outros estados do país. Ações de fiscalização e apreensão de mercadorias são denunciadas e frequentemente relatadas como truculentas para com imigrantes oriundos de países africanos. Em uma rápida pesquisa encontramos diversas notícias e manchetes que retratam esse cotidiano de violência “Policiais atingem imigrantes com arma de choque durante apreensão em SP” (2025); “Ambulante senegalês é agredido por agentes da Operação Delegada no Brás” (2024).

A comunidade senegalesa no Brasil, chegou a ser uma das principais nacionalidades recebidas no país segundo dados do OBMIGRA (2023), é majoritariamente muçulmana, seguidora de confrarias, e geralmente se organizam em associações civis e também em torno de associações religiosas. A comunidade residente em São Paulo realizou manifestações pacíficas contra a violência policial que culminou na morte recente de dois senegaleses, reivindicando Justiça para Ngange Mbaye, palavra de ordem registrada em grande parte dos cartazes durante o protesto.

Dados sobre violência policial contra a população negra – e como essa violência afeta migrantes negros

O Relatório “Pele Alvo” publicado no ano de 2024 pelo Observatório de Segurança, registrou que 62,94% das vítimas de violência policial do estado de São Paulo são pessoas negras. Além disso, 62,9% das vítimas possuem entre 18 a 39 anos, e 98,24% das vítimas são homens.Esses dados demonstram que temos uma política de segurança pública letal para um determinado grupo, cujas características se enquadram quando a vítima é negra, jovem e homem.  O mesmo relatório enfatiza a porcentagem de vítimas de violência policial sob a perspectiva municipal, conforme demonstra o gráfico a seguir, o que chama a atenção é a proporção de vítimas da grande São Paulo que se aproxima da categoria “demais municípios”, correspondente a porcentagem agrupada de exatos 98 municípios do Estado de São Paulo, ou seja, a violência da grande metrópole sozinha equivale a violência de 98 cidades juntas.

Porcentagem de vítimas de violência policial por municípios no estado de São Paulo. Fonte: Elaboração própria com base nas informações coletadas na base de dados do Observatório da Segurança

Em 2022, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, registrou que a cada 100 mil habitantes, 15 foram vítimas de homicídios no município de São Paulo (Atlas da violência, 2024), um dos estados que mais recebe migrantes no país. O Boletim da Migração, divulgado pela Secretaria Nacional de Justiça (Senajus), revela um dado significativo sobre os fluxos de refugiados no Brasil. No período compreendido entre janeiro e novembro de 2024, o continente africano se destacou como a terceira principal origem de solicitações de refúgio em território nacional (Senajus, 2024). Esse dado sublinha a crescente busca por proteção internacional por parte de cidadãos africanos no contexto brasileiro. Adicionalmente, o Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra) registrou que, ao longo dos anos de 2022 e 2023, a cidade de São Paulo consolidou sua posição como o segundo principal polo de fixação de imigrantes no Brasil em termos de registros de residência (OBMigra, 2024). Essa concentração de novos migrantes na capital paulista reflete a sua importância como centro econômico e de oportunidades no cenário migratório nacional.

Ainda nesse contexto, o Infográfico do Relatório Anual de 2024 sobre as Dinâmicas Migratórias nas macrorregiões do Brasil revelou que 61,8% dos migrantes com idade entre 15 e 39 anos permaneceram no país. Por um lado, esse dado sugere a permanência dessa parcela jovem da população, possivelmente em busca de oportunidades, contribuindo significativamente para o desenvolvimento nacional. Por outro lado, ao confrontarmos essa informação com o fato de que 62,9% das vítimas de violência letal no Brasil também se encontram na faixa etária de 18 a 39 anos, uma situação preocupante se torna evidente. Essa interseção de dados aponta para a extrema vulnerabilidade dessa faixa etária, especialmente no contexto dos jovens migrantes, que, apesar de sua significativa permanência, enfrentam riscos elevados de violência. Essa realidade expõe não apenas os desafios relacionados à integração social e econômica, mas também a urgente necessidade de políticas públicas eficazes para a proteção desses grupos (OBMigra, 2024).

Todos esses dados expõem a letalidade da abordagem policial no estado e levantam questionamentos inadiáveis. Portanto, ponderando o número desproporcional de jovens negros mortos em confrontos policiais no estado de São Paulo, não podemos ignorar a realidade de que o racismo institucionalizado esteja enraizado nas práticas de segurança pública. Além disso, as frequentes abordagens policiais desproporcionalmente violentas contra migrantes negros em São Paulo é um retrato inegável do racismo institucional, que elege corpos e identidades negras, como alvos preferenciais da criminalização urbana.

Sobre as autoras

Rosiane Trabuco é Doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia Social e bolsista FAPESP; Marluce Santana é Doutoranda em Ciências Sociais na UFBA e bolsista CAPES; Vitória Ignácio Guilherme é Graduanda de Relações Internacionais pelo ProUni/Bolsista de Iniciação Científica FAPESP. Todas fazem parte do ProMigra

Referências

BRASIL DE FATO. Não foi uma fatalidade. [reel]. Instagram, 15 abril 2025. Disponível em: <https://www.instagram.com/reel/DIehd_EhQJ9/?igsh=Y2dpbGZ5bzJ2OG40>. Acesso em: 15 maio 2025.

CAVALCANTI, L; OLIVEIRA, T.; SILVA, S. L. Relatório Anual OBMigra 2023 – OBMigra 10 anos: Pesquisa, Dados e Contribuições para Políticas.Série Migrações. Observatório das Migrações Internacionais; Ministério da Justiça e Segurança Pública/ Conselho Nacional deImigração e Coordenação Geral de Imigração Laboral. Brasília, DF: OBMigra, 2023

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA – IPEA.Atlas da Violência 2024: Retrato dos Municípios Brasileiros. Brasília: IPEA, 2024. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/artigos/9277-atlasviolencia2024retratodosmunicipiosbrasileros.pdf. Acesso em: 10 maio 2025.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. Artes e ensaios. Revista do PPGAV/UFRJ, n. 32, 2016.

OBSERVATÓRIO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Pele Alvo: Dados preliminares. [Arquivo eletrônico]. Disponível em: https://observatorioseguranca.com.br/wordpress/wp-content/uploads/2024/11/Copia-de-Copia-de-previas-pele-alvo.xlsx. Acesso em: 07 maio 2025.

OBSERVATÓRIO DAS MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS – OBMIGRA. Relatório Anual das Dinâmicas Migratórias nas Macrorregiões do Brasil – 2024. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2024. Disponível em: https://portaldeimigracao.mj.gov.br/images/Obmigra_2020/OBMIGRA_2024/Relat%C3%B3rio_Anual/RELATORIO_ANUAL_24.pdf. Acesso em: 15 maio 2025.

___________.Dados Consolidados e Infográfico 2024. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2024. Disponível em: https://portaldeimigracao.mj.gov.br/images/Obmigra_2020/OBMIGRA_2024/Dados_Consolidados/dados_e_infografico_2024_v4.pdf. Acesso em: 18 maio 2025.

SENAJUS – Secretaria Nacional de Justiça. Boletim Migração – V0.0.7. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2025. Disponível em: https://www.gov.br/mj/pt-br/assuntos/secretaria-nacional-de-justica-senajus/boletim-migracao-v0-0-7-3.pdf. Acesso em: 13 maio 2025.

TRABALHADORES SEM DIREITOS. Audiência Pública: Segurança Pública e Trabalhadores ambulantes. [reel]. Instagram, 8 maio 2025. Disponível em: <https://www.instagram.com/reel/DJZRhoCOl14/>. Acesso em: 19 maio 2025.


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