Além das necessidades especiais da menina, preconceito contra muçulmanos foi um dos obstáculos vencidos pela família, que busca recomeçar a vida no Brasil
Por Alethea Rodrigues
Em São Paulo (SP)
A família de Neshren* é só mais uma que encontrou dificuldades na hora de conseguir colocas as crianças na escola no Brasil. Ela, o marido e dois filhos fugiram da guerra da Síria e vieram morar em São Paulo há um ano e quatro meses, em busca de paz. Mohamad é o filho mais velho e tem 13 anos. A caçulinha é a Haya, que nasceu sem a habilidade de enxergar. Ela completou dez anos de idade exatamente no dia da entrevista, e foi durante a pequena festinha, feita no apartamento da família, que conhecemos a história da voluntária Neusa Toledo, que lutou por três meses para conseguir matricular a pequena na escola.
Haya vive com a família no Cambuci, centro de São Paulo. A Mesquita Brasil cedeu um apartamento até que eles conseguissem se estabilizar no país. A renda da família é R$ 1.300, salário que o pai consegue trabalhando em um restaurante. Já Neshren não trabalha porque precisar dedicar seu tempo integralmente à filha deficiente. Além de não enxergar, Haya tem problemas motores devido ao tempo que ficou longe da fisioterapia e sentada em uma cadeira de rodas praticamente 24 horas por dia. A pequena adquiriu a chamada atrofia por desuso, que ocorre por falta de atividade física.
“Saímos da Síria desesperados e moramos no Líbano durante três anos, mas naquele país não conseguimos tratamento para ela, por isso a saúde dela piorou. Além disso, os dois ficaram sem ir pra escola e isso também prejudicou muito. Quando cheguei no Brasil fui atrás disso para que eles pudessem estudar, mas não falo quase nada de português e com uma filha deficiente parece que ficou mais impossível ainda”, contou a mãe.
A família de Neshren recebeu apoio de ONGs que trabalham com a causa do refúgio. Foi em uma delas, durante a entrega semanal de cestas básicas, que a voluntária Neusa conheceu a pequena Haya. Neusa tem 60 anos de idade, é pedagoga e enfermeira, e nas horas vagas trabalha como voluntária em instituições que assistem imigrantes. Em uma breve conversa com Neshren, se sensibilizou e prometeu tentar conseguir escola para os dois filhos dela. “Escola é um direito básico da criança e não importa se ela é deficiente. Depois que me inteirei do caso, comecei a correr atrás. O idioma ainda é uma grande barreira para a família e eles também sofreram bastante preconceito no tempo em que procuraram sem o meu auxílio”, contou a voluntária.
Foram três meses contatando semanalmente a Secretaria de Educação. Neusa, Neshren e as crianças visitaram quatro escolas. A intenção era conseguir colocar os dois para estudar no mesmo local, para facilitar a vida da mãe e poupar os gastos da família. “Foi difícil porque não encontrava uma escola que tivesse acessibilidade para deficiente. Consegui matricular o Mohamad pertinho da casa deles e já foi uma grande vitória. Ele já está se comunicando muito bem o português e adorando conviver com os novos amiguinhos. A batalha para conseguir algo para a Haya foi mais difícil”, confessou, um pouco decepcionada.
O preconceito com a família muçulmana foi algo que a voluntária destacou durante as visitas e contou um dos episódios em que sentiu na pele essa discriminação. “A inclusão está escrita na lei, mas não é praticada. Uma das escolas que eu fui, a diretora questionou o porquê essa família não voltava para a Síria já que estava tão difícil conseguir que a Haya estudasse no Brasil. Tive que me conter para não falar alguma besteira e respondi apenas para ela não questionar e cumprir a lei”.
Depois de muito trabalho, Neusa conseguiu um local que acolhesse a garotinha, a Escola Estadual Gomes Cardim, no bairro da Aclimação, também no centro de São Paulo, como a de Mohamad. Haya finalmente começou a estudar em novembro do ano passado. A pequena está começando a entender português, tem acompanhamento de um professor especial e alguns dias da semana aprende a ler e escrever em braille. “Minha filha nunca estudou. Quando estávamos na Síria matriculei a Haya na escola e poucos meses depois a guerra começou. Tivemos que fugir e no Líbano foram mais três anos perdidos até conseguirmos nos mudar para o Brasil”, confessou Neshren um pouco mais aliviada.
Com mais uma batalha vencida, Neusa pretende continuar auxiliando a família síria e ajudar outros refugiados que também necessitam. “Qualquer tipo de trabalho voluntário é muito importante, mas quando se trata da causa do refúgio toca ainda mais meu coração. Eles precisam de tudo, até de ajuda para se comunicarem. Eles não precisam só de comida, precisam de um empurrãozinho para recomeçarem suas vidas e foi isso que eu tentei fazer quando consegui matricular as crianças na escola”. Sobre o futuro de Haya ela concluiu: “Quero vê-la caminhando por aí, independente e feliz”.
Além da vida de estudante, Haya começou a fazer fisioterapia gratuitamente no Hospital Santa Cecília e já dá os primeiros passos sozinha. A entrevista feita com dificuldade através de mímica, poucas palavras em português e o uso de um tradutor não impediu que Neshren deixasse claro a sua felicidade de ver seus filhos estudando e a pequena Haya vivendo como uma criança normal.
“A ajuda da Neusa foi muito importante, se não fosse ela nada disso teria acontecido. Não sabíamos o caminho e ela nos mostrou, sou muito grata por tudo que fez por nós. Em um futuro próximo quero ver minha filha trabalhando e realizando todos os sonhos dela. Vamos continuar batalhando para isso”, finalizou agradecida.
*O sobrenome da família síria foi omitido para preservar a identidade, assim como fotos que mostrassem a menina de frente