Por Mustafa Goktepe
Há um ano, Fethullah Gülen nos deixou. Desde então, tenho refletido sobre o quanto sua visão e seus ensinamentos transformaram não apenas a minha vida, mas também a de milhares de pessoas que, como eu, encontraram na educação e no diálogo um caminho para servir, crescer e contribuir com o mundo. Contar esta história, no primeiro aniversário de sua partida, é também uma forma de expressar minha gratidão.
Nasci em uma pequena aldeia em Konya, no interior da Turquia. Havia apenas uma escola, uma cafeteria, um barbeiro, uma mercearia e duas mesquitas. Passei a infância ajudando minha família no campo — plantando e colhendo trigo, cevada e grão-de-bico. Meu pai trabalhava como caminhoneiro fora da época da colheita; às vezes passava semanas longe de casa. A vida era muito simples, marcada por muito esforço e poucas oportunidades.
Em 1988, mudamos para Esmirna (Izmir). A cidade era grande demais para quem vinha do campo, e ainda para quem chega sem recursos. Trabalhei com meu pai vendendo produtos nas ruas, empurrando um carrinho de mão por bairros e feiras. Quando o aluguel ficou impossível, construímos com as próprias mãos uma casa de tijolo cru e barro, sem água encanada nem eletricidade. Usávamos água da chuva e recebíamos um caminhão-pipa da prefeitura uma vez por semana. Apesar de tudo, meu pai sempre dizia: “Estude, meu filho, para não sofrer como nós.” Essa frase guiou minha vida.
Fiz o ensino médio em um colégio técnico de Karşıyaka. Caminhava quase uma hora por dia para ir e outra para voltar. Entrar na universidade parecia um sonho distante. Estudando em uma escola técnica, eu teria ao menos uma profissão para seguir. Trabalhava com meu pai vendendo batatas e cebolas nas feiras de rua e guardava cada moeda. Foi então que ouvi falar de um curso preparatório que oferecia bolsas de estudo a jovens dedicados de famílias humildes. Aquele cursinho fazia parte do movimento Hizmet, inspirado por Fethullah Gülen. Naquele momento, percebi que, sem o apoio do Hizmet, eu jamais teria conseguido sair de um ambiente sem perspectiva e alcançar o sonho de estudar em uma universidade.
Ganhei uma bolsa — e aquilo mudou tudo. Estudei com afinco e, em 1995, fui aprovado na Licenciatura em Computação da Universidade de Kocaeli, um curso bilíngue (turco e inglês). Durante os cinco anos de graduação, pude viver em alojamentos e residências estudantis mantidos pelo Hizmet, ter acesso a livros e refeições e, mais importante, conhecer pessoas inspiradas por Fethullah Gülen que viviam segundo ideais de altruísmo, diálogo, respeito e valores universais — acreditando que o conhecimento deve ser compartilhado e que ensinar é uma forma de servir.
Ao longo desse período, vivi uma transformação pessoal profunda. Aprendi o valor da solidariedade, da cooperação e da empatia. Ao me formar, em 2000, tornei-me professor de informática e diretor de internato no Colégio Nilüfer, em Bursa. Fui o primeiro da minha aldeia a chegar à universidade — e ver o orgulho dos meus pais foi uma das maiores recompensas da vida.
Em 2004, vim ao Brasil com alguns amigos que compartilhavam dos mesmos ideais e do mesmo propósito de vida inspirados pelo Hizmet. Cheguei sem falar português, em uma época sem dicionários turco-português, sem Google Translate, GPS ou smartphones — mas com o mesmo espírito de quem já havia aprendido a recomeçar do zero. Estudei o idioma intensamente, sete ou oito horas por dia. Os brasileiros nos receberam com uma generosidade e um carinho que me marcaram profundamente. Nunca senti o peso de ser estrangeiro aqui — pelo contrário, encontrei pessoas que acolhem, ajudam e tratam os imigrantes com respeito e empatia, o que torna qualquer dificuldade mais leve.
Dois anos depois, casei-me com Alessandra, uma brasileira que se tornou minha companheira de vida e mãe de nossas duas filhas. Em 2007, junto a amigos, abrimos a primeira escola ligada ao Hizmet no Brasil e, mais tarde, fundei o Centro Cultural Brasil-Turquia (CCBT), que hoje se transformou no Instituto pelo Diálogo Intercultural, o qual continuo presidindo com orgulho. Em 2011, inauguramos o curso de Língua e Cultura Turca na Universidade de São Paulo (USP) — uma das melhores universidades do mundo — algo que, para aquele menino da aldeia, parecia inimaginável. O curso continua ativo, e tenho o privilégio de ser um dos professores desde a sua criação.
Desde então, organizei inúmeros projetos interculturais, conferências, seminários e festivais, convivendo com artistas, acadêmicos, jornalistas e esportistas brasileiros. Tive a oportunidade de conhecer pessoas que antes via apenas pela televisão e, mais importante, de compartilhar o que aprendi sobre convivência, empatia e educação como verdadeiras pontes entre culturas. De Konya a São Paulo, de uma infância humilde ao ensino universitário e ao mestrado, de vendedor de feira a professor, diretor e empresário — minha trajetória é, acima de tudo, uma história de superação e gratidão. Vim de um ambiente simples, de um gecekondu — como chamamos na Turquia as casas erguidas de forma improvisada, com poucos recursos e sem perspectivas —, um jovem desconhecido e pobre que sonhava apenas em mudar a própria vida.
Hoje, sou empresário no Brasil, empregando dezenas de pessoas — brasileiros e imigrantes — e sigo acreditando no poder da educação e do diálogo como instrumentos de transformação social. Tenho o privilégio de conhecer e ser conhecido por pessoas de diferentes origens e culturas, e aprendi que as fronteiras mais difíceis de atravessar não são as geográficas, mas aquelas que existem dentro de nós: o medo, a desconfiança, a falta de propósito e a ausência de uma mão amiga. O Hizmet me ensinou a superá-las por meio da união, do diálogo e de um círculo de amizade e ideais que dão sentido à vida. Cada aluno que aprende, cada projeto que aproxima culturas, é uma lembrança viva de que a distância entre uma aldeia no interior da Turquia e uma sala de aula na melhor universidade de São Paulo pode ser percorrida com coragem, esforço, propósito e solidariedade.
No primeiro aniversário de seu falecimento, lembro-me de Fethullah Gülen Hocaefendi (como chamamos ele com respeito) não apenas como um mestre — que moldou minha vida, minha mente e meu coração —, mas como alguém que acreditava, acima de tudo, no potencial humano. Seu legado segue vivo, em todos os cantos do mundo, nas salas de aula, nos centros culturais e nos corações daqueles que continuam acreditando que ensinar, dialogar e dar o exemplo do bem é a forma mais duradoura de servir.
Sobre o autor
Mustafa Goktepe é professor, tradutor, empresário e presidente do Instituto pelo Diálogo Intercultural.
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