Um estudo inédito elaborado pela ONG Repórter Brasil joga luz sobre as mulheres que já foram vítima de trabalho análogo à escravidão no país. E traz um dado que, embora já esperado pela instituição, surpreende pelo tamanho.
Além da análise inédita da questão de gênero relacionada à exploração laboral no país, o estudo também expõe questões raciais, sociais e de origem. Na capital paulista, por exemplo, 93,1% das mulheres resgatadas entre 2003 e 2018 anos era de origem imigrante.
“A gente já esperava que essa porcentagem fosse alta em São Paulo. Mas antes de fazer de fato ainda não tínhamos a dimensão que seria essa totalidade”, aponta Natalia Suzuki, coordenadora do “Escravo, nem pensar!“, programa educativo da ONG.
O levantamento “Trabalho escravo e gênero: quem são as trabalhadoras escravizadas no Brasil?” é baseado em artigo científico de autoria da própria Natália e de Thiago Castelli, ambos da Repórter Brasil, e teve apoio da OIT (Organização Internacional para o Trabalho).
No Brasil, o “trabalho análogo ao de escravo” conforme o Artigo 149 do Código Penal é um crime contra a dignidade humana, podendo ser configurado por jornada exaustiva, trabalho forçado, servidão por dívida e condições degradantes.
Presença da mulher imigrante
Em uma contexto brasileiro em que do total dos 35.943 trabalhadores resgatados entre 2003 e 2018, 95% são homens, busca-se debater a invisibilidade e a realidade dessas mulheres por meio dos dados levantados através do perfil das 1.889 mulheres vítimas dessa prática criminosa nesse período.
A partir dos registros de fiscalizações do Ministério da Economia entre 2003 a 2018, a publicação analisa o perfil das 1.889 vítimas dessa prática, que representam 5% do total de resgatados no país nesse período. A própria Repórter Brasil pondera que tal número possivelmente está subnotificado, uma vez que que muitas não são consideradas trabalhadoras, como é o caso de domésticas, cuidadoras e profissionais do sexo.
A base de dados do Ministério da Economia não conta com a variável de nacionalidade, e o campo sobre origem corresponde o local de onde a vítima foi resgatada, não o de nascimento. Para identificar as mulheres imigrantes a equipe da Repórter Brasil teve de fazer um filtro manual, a partir do nome da pessoa resgatada.
Embora esse processo não permita identificar com precisão o país de origem da mulher imigrante resgatada, ele já é suficiente para constatar que são basicamente pessoas de outros países da América Latina.
“Quando entendemos a nacionalidade pode ter impactos muito profícuos para aperfeiçoamento das políticas públicas. Se a gente consegue provar que 93% [dessas mulheres] são imigrantes, podemos fazer um trabalho junto aos governos”, aponta Suzuki.
Os registros de mulheres escravizadas estão espalhados por todo o Brasil, mas a origem delas nem sempre corresponde a onde elas foram resgatadas. O estudo aponta que muitas dessas vítimas são migrantes internas e os principais estados de origem dessas trabalhadoras são Maranhão (16,4%), Pará (12,8%), Minas Gerais (10,6%), Bahia (10,4%) e São Paulo (10,2%). Além disso, as migrantes internacionais também aparecem entre as resgatadas.
O caso das oficinas têxteis paulistanas
Apesar da diferença no padrão nacional entre homens e mulheres resgatados seja discrepante, alguns estados como São Paulo apresentam proporções menos chocantes: 82% e 18% respectivamente.
Na capital paulista, que responde pelo maior número de casos de trabalho escravo do estado, a diferença na porcentagem entre homens e mulheres resgatados é ainda menor: dos 430 resgatados, 69,5% eram homens e 30,4% eram mulheres — com a presença quase total de imigrantes nesse caso.
“Esse perfil reflete a realidade mundial, cada vez mais as mulheres assumem como chefe de famílias, assim também buscam melhorar a estrutura da família através de seu trabalho. [Também] reflete a realidade do nosso trabalho onde, cada vez mais aumenta o número de mulheres imigrantes que chegam no Brasil, a diferença entre as mulheres e os homens é que a grande maioria das mulheres vem com seus filhos e os homens, em sua grande maioria, deixam a família para depois trazer” comentou Carla Aparecida Silva Aguilar, assistente social do Centro de Apoio e Pastoral do Migrante (CAMI).
Grande parte dos resgates no município ocorre em oficinas de costura clandestinas, onde estão empregadas muitas mulheres, em sua grande maioria migrantes, “as quais são registradas como oriundas do município onde foram resgatadas, ou seja, São Paulo. O registro é feito assim, também para homens imigrantes resgatados, porque no cadastro do Seguro-Desemprego não há um campo para especificar a nacionalidade da vítima”, explica o estudo.
“Eu não tenho dados exatos, mas do trabalho que conhecemos e fazemos próxima a essa realidade, acredito que dos migrantes que estão nessa situação [em oficinas de costura], 70% são mulheres. Porém, e aí vem a questão fundamental, a grande maioria delas não enxerga isso como um problema, muito menos como um crime. Existe toda uma lógica cultural, familiar, de medo e impunidade também”, expôs Requena.
Dentro do período analisado, 178 das mulheres resgatadas no país eram costureiras, o que representa 7,8% do total analisado pelo estudo. Este número faz com que a costura seja a terceira ocupação mais recorrente entre estas mulheres, ficando atrás apenas de trabalhadoras rurais e cozinheiras respectivamente.
“Aí você vê como se sustenta algumas questões de gênero. Porque justamente a maior parte das mulheres não denuncia esses tipos de caso. Se já para o homem já é difícil enxergar essa condição análoga à escravidão, imagina para a mulher em situação de vulnerabilidade. Ela não enxerga, ela tem medo, tem insegurança, ela não se sente protegida então não denuncia ou até mesmo não enxerga como um problema” apontou a peruana Soledad Requena, mestre em políticas públicas e gênero e assessora do Centro da Mulher Imigrante e Refugiada (CEMIR), sobre a grande diferença entre o percentual de homens e mulheres resgatadas.
Ainda segundo Requena, estamos falando de uma cadeia produtiva têxtil que tem uma base de costura majoritariamente feminina. São mulheres em situações de vulnerabilidade, baixa escolaridade e pouco acesso à informações sobre direitos, além de muitas não terem regularização migratória no caso das não brasileiras. “Então ela é tratada como um ser invisível e aí vem o abuso, a exploração dessa mão de obra que contribui para o país, mas é invisível, não é valorizada”.
A publicação da Repórter Brasil traz relato de um caso de 2013, em que uma jovem boliviana de 21 anos foi resgatada de uma oficina de costura na Zona Norte da cidade, onde violência física e psicológica do dono da oficina e de seu namorado. Ela estava grávida de 5 meses e costurava diariamente das 7h às 22h. Seu salário era retido pelo namorado, que também trabalhava e morava no mesmo local, de onde era proibida de sair, inclusive para realizar os exames pré-natais.
“É uma situação muito séria, pois essas mulheres sofrem assédio e até violência doméstica nesses locais de costura quando estão com seus companheiros”, observou Requena.
De acordo com o levantamento, esses não são casos isolados. Muitas grávida são impedidas de saírem para fazerem exames médicos e as que tem filhos não conseguem ter tempo com eles por conta da exaustiva jornada de trabalho.
“Nas confecções em São Paulo, a fiscalização já se deparou com mães que amamentavam bebês recém-nascidos enquanto costuravam e com crianças trancadas nos cômodos para não atrapalhar a produção ou para não sofrerem acidentes” descreve o estudo.
“Muitas dessas mulheres têm filhos, por isso elas acabam aguentando mais a exploração para defender seus próprios filhos, ou seja, mesmo elas sabendo que estão sendo exploradas” comentou Aguilar. “Em primeiro lugar vem o bem-estar dos seus filhos, porém quando elas conseguem sair geralmente também a motivação são os filhos e nem sempre é a exploração, pois elas denunciam, justamente porque os filhos passam a ser mal tratados, não deixam ir para a Escola, não deixam levar as crianças ao médicos e por último muitas vezes sem comida, aí elas criam coragem e denunciam, fogem e procuram seus direitos” concluiu.
Além disso, Requena aponta outras dificuldades culturais ao se debater os trabalho escravo dentro da comunidade imigrante: a ideia de que começar a trabalhar novo e várias horas por dia é algo digno; e o fato da palavra “escravo” ser muito associada ao período histórico de escravidão, o que atrapalharia essas pessoas tomarem consciência da situação em que estão vivendo.
“Nós [CEMIR] temos uma metodologia para não falar diretamente sobre ‘trabalho escravo’, a gente trabalha o direito ao trabalho digno. Então quando a gente leva essa reflexão com as mulheres, principalmente com as mulheres, o processo de aprendizagem, de empoderamento, de compreensão acontece mais facilmente” explicou Requena.
Webinários
Visando discutir dados estatísticos, políticas e ações referentes ao resgate e assistência dessas vítimas, a Repórter Brasil está organizando o webinário Trabalho escravo e gênero: quem são as mulheres escravizadas no Brasil?. nos dias 8, 15 e 22 de outubro. A cada semana às quintas-feiras, estarão presentes especialistas do poder público e da sociedade civil envolvidos nas fiscalizações de trabalho escravo e na assistência às vítimas. O evento será transmitido no YouTube e na página do Facebook da Repórter Brasil. Confira abaixo a programação completa:
Realização: Repórter Brasil – Programa “Escravo, nem pensar!”
Datas: 8/10, 15/10 e 22/10
Horário: 16h às 17h
Transmissão: Facebook e Youtube – @ReporterBrasil
1 | 8/10
Trabalho escravo e questão de gênero: perfil socioeconômico, estatísticas e invisibilidades sociais
2 | 15/10
Trabalho escravo e questão de gênero: reflexões a partir da fiscalização e resgate de mulheres
3 | 22/10
Trabalho escravo e questão de gênero: demandas de mulheres resgatadas e políticas de assistência
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