Por Bianca Medeiros
Do telégrafo ao Twitter, (atual X) nos bastidores da diplomacia internacional, os canais de comunicação sempre foram palco de disputas de poder. No entanto, raramente a política externa e os rastros coloniais se materializaram com tanta nitidez quanto com o uso dos memes. E, sinceramente, que guerra eles se tornaram!
Em 2024 e 2025, aconteceu um fenômeno peculiar entre Brasil e Portugal: os embates meméticos em torno da “Guiana Brasileira” e da “Groenlândia Portuguesa”. Se, à primeira vista parecem piadas bobas e provocações infantis, com uma análise mais profunda é possível encontrar camadas reais de colonialidade, competição simbólica, ressentimento diplomático e práticas discursivas de autoafirmação pós-imperial. A hipótese é simples: os memes tornaram-se instrumentos de poder, capazes de desestabilizar ou reconfigurar simbolicamente relações interestatais historicamente assimétricas. E quando o ator principal é o brasileiro, convenhamos, a história fica um pouco mais séria!
Embora os memes inicialmente tenham sido tratados como instrumentos de baixo impacto político, autores como Limor Shifman (2014) já alertavam para sua capacidade de “transmitir ideologias culturais de forma condensada e viral”. No contexto das relações internacionais, essa função mais complexa porque memes não são apenas expressões culturais, mas também ferramentas de construção de narrativas nacionalistas.
Sob a ótica do Direito Internacional, em particular da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas (1961), a prática diplomática é regulada por normas rígidas de cortesia, reciprocidade e respeito mútuo. E nós, como diriam os próprios portugueses, olhamos para as regras e “foda-se”!
Brincadeiras a parte, a ascensão das plataformas digitais nos últimos anos reconfigurou os canais de comunicação entre Estados, inserindo um novo “diplomata não oficial”: o cidadão conectado e engajado. Este ator se insere num espaço ainda pouco normatizado, onde as fronteiras entre liberdade de expressão, desinformação e ato político simbólico se embaralham e, criam narrativas muitas vezes extremas sem ter o filtro da legislação determinada (DENG, 2019). E quando o assunto é Brasil-Portugal, a discussão e diplomacia nunca foi simples.
Para José Pedro Paiva (2020), “o luso-tropicalismo foi uma construção ideológica criada para suavizar as marcas do colonialismo, mas nunca eliminou o ressentimento estrutural que sobrevive entre as ex-colônias e suas metrópoles.” Portugal projeta sobre o Brasil uma imagem simultânea de orgulho e paternalismo, enquanto o Brasil responde ora com afeto, ora com ironia e desafio.
Essa ambiguidade afetiva é sintetizada inclusive por Lélia Gonzalez, que denuncia a romantização das violências coloniais sob o mito da “democracia racial lusófona”. No plano diplomático, essa ambiguidade se mantém com uma Portugal frequentemente se posicionando como “ponte” entre Europa e América Latina, enquanto o Brasil tenta escapar de qualquer tutela que o reconduza ao papel de colônia simbólica.
Prova disso, é o território reivindicado pela Venezuela e administrado pela Guiana, tornou-se foco de tensões regionais intensas em 2023 e 2024. A adesão de Portugal ao posicionamento europeu em favor da integridade territorial da Guiana (e não da Venezuela) provocou, óbvio, reações no Brasil. Muitos brasileiros viram no gesto português um ato de intromissão num espaço geopolítico considerado “sul-americano demais” para interferência europeia.
A resposta nas redes sociais veio em forma de meme: “Guiana Brasileira”. A ironia carrega múltiplas camadas: uma sátira à política intervencionista europeia, uma lembrança da força regional brasileira e uma crítica velada à ausência de um posicionamento firme do Brasil.
Segundo Wendt (1992), a identidade internacional dos Estados é socialmente construída. O meme “Guiana Brasileira” tenta reconfigurar essa identidade, oferecendo uma narrativa onde o Brasil deixa de ser observado e passa a observar — e a dominar simbolicamente.
Em resposta à Guiana Brasileira, portugueses rapidamente criaram o meme da “Groenlândia Portuguesa” para se referir ao Rio Grande do Sul, em meio a uma forte onda de frio. A escolha é cínica: compara-se uma região sulista (majoritariamente branca, separatista e conservadora) a um território gelado e distante — ironicamente associado ao desejo de dissociação do restante do país.
Mas a entrelinha é ainda mais ácida: é o colonizador exercendo sua autoridade simbólica sobre a colônia rebelde, usando humor para deslegitimar qualquer tentativa de revanche. O meme lusitano busca reinscrever Portugal na posição de poder, zombando das pretensões brasileiras de hegemonia. Coitados!
Fato é, que aqui a colonialidade se manifesta nos modos de rir. Vocês acreditam?! O riso aqui não é libertador, mas marcador de poder. O Brasil ri para se afirmar, Portugal ri para rebaixar.
Para Foucalt a linguagem como poder permite compreender como o meme opera como discurso disciplinador. O que circula como piada é, na verdade, uma tentativa de normalização da posição relativa dos países na ordem internacional. E com as redes sociais o detentor da linguagem é o usuário cidadão e, muito sinceramente, as vezes isso é bom, mas nem tanto!
O conceito de “citizen diplomacy”, explorado por Sharp (2001), ganha novas dimensões na era digital: memes são pequenas intervenções diplomáticas. Mas, ao contrário das instituições estatais, as pessoas não respondem a protocolos, não há moderação e muitas vezes alimentam tensões ao invés de amenizá-las. É aqui que a ciência comportamental entra.
Segundo Kahneman (2011), a mente humana tende a reagir emocionalmente a estímulos rápidos e visuais, logo o sucesso dos memes. Essa forma de comunicação dribla os filtros críticos e, polariza e reforça viezes completamente diferentes daqueles determinados por lei nas relações estatais (Viva a globalização né?!) O resultado? Quase nada de racional na política externa. E o que acontece? For impacto nas relações diplomáticas. A responsabilidade internacional dos Estados está bem estabelecida (CDI, 2001), mas e a dos memes? A ofensa simbólica viralizada pode ser considerada uma afronta estatal? E quando figuras públicas embarcam na onda, reforçando o conteúdo?
A doutrina de responsabilidade internacional precisa enfrentar esse novo “direito informal das redes”, que pode gerar repercussões graves. Como lembra Koskenniemi (2002), o Direito Internacional opera muitas vezes como linguagem performativa e, os memes (Que horror!) pode se tornar um novo idioma da política global.
Mas sabe o que é mais preocupante? A reprodução de estereótipos opressores. E pensávamos que isso já tinha passado! Usar Groenlandia como metáfora do Rio Grande do Sul reproduz a caricatura de um Brasil “branco, europeu, frio e deslocado” para zombar de identidades brasileiras.
Do lado brasileiro, a “Guiana Brasileira” é frequentemente usada de maneira depreciativa em relação a um país de maioria negra e indígena, marcado por desigualdade e subdesenvolvimento. É uma reafirmação da hierarquia simbólica entre sul e norte globais, entre “civilizados” e “atrasados”.
Ou seja, muitos anos depois os territórios simbólicos estão em disputa tanto quanto os geográficos. Portugal e Brasil seguem brigando com ironias e hashtags. E se há algo que o Direito, a diplomacia e as ciências sociais devem reconhecer, é que os conflitos de narrativas também matam — matam projetos de integração, respeito mútuo e reparação histórica.
Neste cenário, rir é um ato político. E talvez seja hora de rir de direito, com consciência crítica, com afeto descolonizado e com coragem para reescrever essas piadas em forma de política pública justa, representativa e pós-imperial. Um beijo para a “Faixa de Gajos!” Brincadeira…
Sobre a autora
Bianca da Silva Medeiros é Doutoranda em Direito na Universidade Nova de Lisboa – UNL, mestre em Ciências da Sociedade com ênfase em direitos humanos, sociedade e cidadania ambiental pela Universidade Federal do Oeste do Pará – UFOPA. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Oeste do Pará – Ufopa. Especialista em Direito Constitucional Aplicado e Relações Internacionais com ênfase em Direito Internacional Público. Pesquisadora, Consultora Jurídica e Gestora de Projetos no Terceiro Setor. Amazônida, latina, filha da educação pública e defensora dos direitos humanos.
Referências
DENG, Francis M. “The Evolving Role of Diplomacy in the Age of Global Interdependence.” Global Governance, vol. 25, no. 3, 2019, pp. 391–403. https://doi.org/10.1163/19426720-02503005
GONZALEZ, Lélia. “Racismo e sexismo na cultura brasileira.” Revista Ciências Sociais Hoje, ANPOCS, 1984.
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
KOSKENNIEMI, Martti. The Gentle Civilizer of Nations: The Rise and Fall of International Law 1870–1960. Cambridge: Cambridge University Press, 2002.
PAIVA, José Pedro. “Portugal e o Pós-Colonialismo: As Heranças de um Império.” Revista Brasileira de História, vol. 40, no. 85, 2020, pp. 1–25. https://doi.org/10.1590/1806-93472020v40n85-05
SHARP, Paul. “For Diplomacy: Representation and the Study of International Relations.” International Studies Review, vol. 1, no. 1, 1999, pp. 33–57.
SHIFMAN, Limor. Memes in Digital Culture. Cambridge: MIT Press, 2014.
WENDT, Alexander. “Anarchy is what States make of it: The Social Construction of Power Politics.” International Organization, vol. 46, no. 2, 1992, pp. 391–425. Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas. Draft Articles on Responsibility of States for Internationally Wrongful Acts. A/56/10, 2001.