Por Pe. Alfredo J. Gonçalves
São múltiplas e muito variadas as análises sobre a situação atual do planeta na era da
ecomomia globalizada. Parte não desprezível desses estudos fazem das migrações uma
espécie de janela para olhar ao redor do mundo. De fato, os deslocamentos humanos de
massa representam ondas superficiais de correntes subterrâeas e ocultas. Em outras palavras,
a mobilidade humana pode ser considerada como a parte vísivel de transformações profundas e
ocultas. Antes, durante ou depois de mudanças radicais, como por exemplo a Revolução
Industrial, milhões de pessoas se vêm forçadas a deixar a terra natal, para se aventurar por
outros países, vizinhos ou distantes, tendo não raro de cruzar desertos e florestas, mares e
oceanos.
Nas últimas décadas do século XX e início do século XXI, assistimos novamente a numerosos
movimentos migratórios. Diferentemente do que costumamos chamar “migrações históricas”,
os deslocamentos atuais são mais intensos, mais variados e mais complexos. Em lugar de uma
origem e um destino mais ou menos pré-determinados, ou seja, um desenraizamento seguido
de uma novo enraizamento, hoje os migrantes sabem de onde partem, evidentemente, porém,
ignoram quase por completo onde vão se deter e fincar os pés. Os locais de destino e o próprio
futuro tornaram-se incertos. O itinerário dos migrantes tende a se converter num vaivém de
muitas idas e vindas, mas com horizontes nebulosos.
Esses milhões de “condenados da terra”, para usar a expressão de Frantz Fanonn, procuram
as oportunidades do capital, disputando silenciosamente as migalhas que caem da mesa dos
mais abastados. Na exata medida em que os investimentos de grosso calibre trocam de país,
região ou continente, deslocando-se de acordo com a abundância de matéria prima e/ou de
mão-de-obra barata, os trabalhadores seguem-lhe as pegadas. Uns poucos serão absorvidos
por alguns postos cada vez mais raros e exigente, outros terminarão por diluir-se nos porões
obscuros do mercado informal. Uma enrome multidão deles, entretanto, está definitivamente
condenada ao desemprego crônico, na condição de trabalhadores “descartáveis”, como vem
alertando o Papa Francisco desde o início de seu pontificado.
Jogados de um lado para outro, nas asas de ventos cada vez mais adversos e furiosos,
acabam caindo nas ruas das grandes cidades ou em suas mais longínquas periferias. Párias
“invisíveis” e, ao mesmo tempo, vítimas facilmente recrutáveis pelo submundo das drogas, da
prostituição precoce e do crime organizado. A cracolândia, no coração da metróle paulista,
representa bem o avesso da política de produção, crescimento, progresso e consumo da
sociedade capitalista. Por outro lado, a pandemia escancarou, fez emergir e agravou a situação
dessa “multião dos sem”: sem terra, sem trablho e sem teto, o que fecha uma série de outras
portas.
Além de vítimas, porém, os migrantes são sujeitos, profetas e protagonistas de um futuro mais
primaveril. De forma consciente ou inconsciente, o simples fato de migrar, de um lado denuncia
a pobreza, a miséria e a fome, bem como as graves injustiças, que segue expulsando tanta
gente dos países de origem; de outro lado anuncia a necessidade de mudanças radicais, seja
no que se refere à assimetria que divide nações ricas e pobres, seja nas relações do comércio
internacional. Quando se põe a caminho, o migrante faz mover a mola da própria história. Seus
pés e passos, aos milhões, causam tremores de terra, lançando no ar um grito tanto mais
eloquante quanto mais silenciado e silencioso.
Alguém ja comparou as migrações a uma gigantesca “lente de aumento”, através da qual ganham relevo não só os dramáticos problemas do mundo com sua desigualdade e contradições, mas igualmente “as possibilidades evangélicas, escondidas mas já presentes e operantes, nas realidades do mundo” (Paolo VI,
Evangelii Nuntiandi, 1975, 70).
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, é vice-presidente do SPM