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segunda-feira, dezembro 23, 2024

Não é discriminação, é o procedimento: enfrentando xenofobia estrutural como brasileira vivendo na Inglaterra

É necessário lutarmos diariamente para que racismo, xenofobia, preconceito e discriminação não sejam justificados como procedimentos

Por Patricia Nabuco Martuscelli

Viver com uma imigrante brasileira em três países diferentes (Estados Unidos, Suíça e atualmente Inglaterra) envolve momentos felizes e também experiências de discriminação e preconceito diretas e indiretas que devem ser analisadas de maneira crítica. Alguns anos atrás, refleti sobre a falácia do sonho americano aqui no MigraMundo. Desta vez, eu queria refletir sobre um episódio que aconteceu comigo aqui na Inglaterra há algumas semanas e que ilustra o que eu chamo de xenofobia estrutural.

Eu sou professora de Relaçōes Internacionais na Universidade de Sheffield, no norte da Inglaterra, mais precisamente na cidade de Sheffield, que fica a 2 horas de trem ao norte de Londres. Ela foi a primeira cidade-santuário (que oferece proteção a imigrantes e refugiados) do Reino Unido. Além disso, Sheffield, com cerca de cerca de 500 mil habitantes (quinta maior do país e considerada a cidade com maior número de árvores por habitante na Europa), é extremamente multicultural e diversa por causa de duas universidades e hospitais-escolas do sistema público de saúde (National Health System – NHS – que inspirou o nosso SUS) que recebem pessoas do mundo todo como estudantes e profissionais. Os próprios britânicos reconhecem que a cidade é extremamente acolhedora. De fato, eu nunca sofri nenhum tipo de preconceito direto na rua. Pelo contrário, as pessoas são simpáticas e interessadas em saber sobre você e seu país.

Obviamente minha experiência é altamente permeada pela condição privilegiada da minha imigração para dar aula em uma das melhores universidades do país. Ou seja, de acordo com a literatura especializada, eu sou o chamado “imigrante desejado” por ser altamente qualificada, fluente na língua do país, branca e ainda ter um passaporte europeu, o que me coloca em uma posição favorável por não ter que pagar as taxas exorbitantes dos vistos de trabalho e residência no país. Sobre esse último tema, a organização Migrant Voice publicou um relatório que mostra que o valor para obter a residência permanente no Reino Unido pode chegar a 11 mil libras esterlinas (cerca de 66 mil reais) por pessoa. Essa soma representa 8 vezes mais do que o custo efetivo para o processamento das residências e coloca famílias migrantes em situações de pobreza, precariedade e estresse.

Não é discriminação, é o procedimento – parte 1

Minha posição como imigrante privilegiada me protege desse e de outros tipos de discriminação direta, digamos. Acho que até por isso eu me surpreendo quando acabo sofrendo discriminação indireta como aconteceu comigo ao doar sangue há algumas semanas. Como outros imigrantes, eu acho importante contribuir com a sociedade que me recebeu. Nesse sentido, ao ver mensagens sobre como os bancos de sangue na Inglaterra estavam baixos e que eles precisavam de doações, resolvi me inscrever para doar sangue. Eu já tinha doado sangue no Brasil e nos EUA e nunca tive quaisquer problemas ou experiências de discriminação – até então.

No dia da doação, cheguei no horário (o sistema diz que o procedimento total dura cerca de uma hora) e preenchi um formulário padrão para doadores com perguntas sobre sua saúde e estilo de vida. Duas perguntas chamaram a minha atenção: “Você nasceu na América do Sul, América Central, Caribe ou México?” e “Sua mãe nasceu na América do Sul, América Central, Caribe ou México?”. Eu respondi que sim em ambas. Perceba que a pergunta não é você esteve na América Latina recentemente, mas se você e sua mãe são latino-americanos. Por causa disso, eu fui informada que eu deveria fazer uma avaliação extra com a enfermeira chefe para confirmar algumas coisas.

Depois de esperar uma vida, chega a enfermeira e me informa que teria que fazer um histórico de todas as minhas viagens internacionais para saber todos os países com potencial risco de malária em que eu já estive na minha vida. Detalhe, ela também me perguntou se o Brasil era parte dos EUA (porque aí a vida dela seria muito mais fácil). Depois de verificar que o Brasil não é um risco atualmente para malária, dado que eu tinha visitado minha família no Natal, a enfermeira me informou que teria que testar meu sangue para malária porque em 1992 (quando eu nasci) o Brasil estava na “lista de risco” para a doença.

Depois de vinte minutos – eu tentando lembrar todos os países que eu visitei ao longo de 30 anos (incluindo conferências internacionais, turismo e visitando amigos) e a enfermeira me pedindo para focar em países com potencial risco de malária (ou seja, países pobres – nenhum europeu estava na lista) – a enfermeira decidiu que simplesmente me testaria para tudo. Ou seja, ela poderia ter tomado essa decisão sem a humilhação e a perda do meu tempo. Depois de uma hora nesse procedimento vexatório, eu finalmente consegui doar sangue (o que demorou 10 minutos). Duas semanas depois disso, eu recebi uma mensagem da NHS me informando para qual hospital minha doação de sangue tinha sido enviada e como isso estava salvando vidas de pessoas. E eu de fato não tinha nenhuma das doenças que causaram todo esse transtorno.

Vamos lá para a análise… enquanto estava esperando a enfermeira, eu estava verdadeiramente incomodada e frustrada com toda a situação. Quando a enfermeira chegou, eu disse diretamente: “Esse tratamento diferenciado para latino-americanos é uma discriminação”. A enfermeira me respondeu: “Isso não é discriminação, é o procedimento”.

Ninguém está questionando a importância de testar o sangue de todo mundo para garantir que doenças não sejam passadas para aqueles que receberão a doação. O que eu estou questionando é: se a preocupação final é garantir que as doações de sangue sejam seguras, todos os doadores deveriam ser testados e não apenas aqueles que nasceram em determinados países. O procedimento é discriminatório ao tratar de forma diferenciada e adversa doadores de sangue de países classificados como de “risco”. Além disso, essa classificação perpetua uma discriminação de longo prazo. Ou seja, se você nasceu em um país classificado como de risco, você sempre será percebido como de risco para doar sangue, mesmo se você tiver vivido toda a sua vida no Reino Unido.

Na minha tentativa de defender que meu sangue latino-americano era seguro, eu mencionei diversas vezes que eu já tinha doado sangue nos EUA e que não tinha tido nenhum problema (nem humilhação). Indiretamente eu estava dizendo para a enfermeira e para aquele sistema discriminatório que ter doado sangue em uma país rico e desenvolvido garantia um tipo de “selo de qualidade” para o meu sangue. Pensa o absurdo…

Eu não estou dizendo que a enfermeira era xenofóbica nem nada disso, ela estava de fato seguindo um procedimento padrão. Pelo contrário, eu reconheço que as enfermeiras no Reino Unido trabalham em péssimas condições, criadas por políticas de austeridade do governo conservador, com uma carga de trabalho enorme e salários baixíssimos. Considere que tanto o capitalismo como os primeiros estudos sobre desigualdade econômica e social surgiram justamente na Inglaterra. Ou seja, isso nos diz algo sobre esse país.

Nosso atual ministro de direitos humanos. o professor Silvio Almeida, nos explica o conceito de racismo estrutural, que seria quando as estruturas e instituições perpetuam o racismo em seus procedimentos e rotinas diárias. Meu ponto é: existe também xenofobia estrutural contra imigrantes de origem latino americana nessa situação. Há diversos sistema aqui no Reino Unido que justificam essa xenofobia estrutural. O governo conservador criou a política de ambiente hostil (hostile environment) para imigrantes como uma forma de dificultar a vida de imigrantes no país e evitar que novos imigrantes venham. Essa política justificou procedimentos estruturais e institucionais xenofóbicos que se reproduzem em praticamente todas as esferas da vida no Reino Unido – incluindo para doação de sangue.

Não é discriminação, é o procedimento – parte 2

Um outro exemplo em que vivi essa xenofobia estrutural e essa desculpa “não é discriminação é o procedimento” foi usada, aconteceu no meu primeiro ano como professora na universidade. Eu tive que fazer um curso obrigatório de pedagogia no ensino superior da própria universidade para professores. Para me inscrever no curso, como meu doutorado e mestrado foram feitos no Brasil (um país que não fala inglês), eu teria que mostrar um exame de proficiência em língua inglesa (porque esse é o procedimento padrão que não nativos da língua inglesa que não estudaram em países anglófonos precisam passar para estudar na universidade). Eu obviamente reclamei que não fazia nenhum sentido a universidade ter me contratado, me pagar e reconhecer minha competência na língua para dar aula em inglês (se eu não pudesse falar inglês, meus alunos de graduação e mestrado já teriam reclamado com o meu departamento), mas criar essa barreira para que eu fizesse um curso obrigatório. Além disso, a última vez que eu tinha feito um exame de proficiência em inglês tinha sido em 2013. Depois de muitos e-mails, foi acordado que a chefe do meu departamento (minha chefe) enviaria um email atestando minha capacidade de falar inglês. Eu tive que passar pela humilhação de pedir para ela enviar esse email e ela perdeu o tempo dela enviando essa mensagem completamente desnecessária. Depois disso, o pessoal do sistema ainda pediu meu exame de proficiência de 10 anos atrás.

Nesse dia, minha chefe veio falar comigo e pedir desculpas dizendo que isso nunca tinha acontecido antes. De fato, todos os meus colegas de departamento (mesmo aqueles do Sul Global) possuem doutorados de países anglófonos (uma grande maioria inclusive do Reino Unido), ou seja, esse sistema discriminatório nunca foi um problema no meu departamento porque eles nunca tiveram um professor com um doutorado de um país do Sul Global que não fala inglês.

Ao falar com outras pessoas responsáveis pelo curso de pedagogia sobre minha maior experiência discriminatória na Universidade de Sheffield, a resposta que eu obtive foi a clássica: “Sinto muito, mas esse é o procedimento e não há nada que a gente possa fazer”. Nesse caso, o sistema desfavorece pessoas que não sejam nativas em inglês e tenham a sua formação em países não-anglófonos, ou seja, perpetua uma xenofobia institucional contra esses profissionais que possuem essa barreira extra para fazer um curso obrigatório.

Xenofobia estrutural

Minha reflexão sobre essas duas experiências no Reino Unido tem o intuito de chamar atenção para essa questão da xenofobia estrutural que seria quando um procedimento padrão desfavorece uma pessoa porque ela é um imigrante (ou seja, não nacional e não nativo da língua local). Ainda que esses casos tenham acontecido comigo na Inglaterra, o Brasil também possui instâncias em que há uma xenofobia estrutural. Por exemplo, durante a pandemia da COVID-19, o app para receber o benefício não aceitava o documento de identidade de imigrantes.

A discriminação existe mesmo quando ela acontece por causa de um procedimento discriminatório. É importante no nosso dia-a-dia refletir sobre se os procedimentos padrões que temos que implementar e que perpetuam uma xenofobia estrutural. Finalmente, é necessário lutarmos diariamente para que racismo, xenofobia, preconceito e discriminação não sejam justificados como procedimentos.

Sobre a autora

Patrícia Nabuco Martuscelli é Professora Assistente de Relaçōes Internacionais na Universidade de Sheffield, Reino Unido

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