Em meio a todas as dificuldades normalmente enfrentadas no dia a dia pela população da comunidade Vila Irmã Dulce, na zona sul de Teresina (capital do Piauí), e agravadas pela pandemia do novo coronavírus, o som dos instrumentos tocados por crianças ainda pode ser ouvido no local. É lá onde elas fazem aulas de música oferecidas pelo projeto Compasso Matuto; a maioria mora na Vila, enquanto outras vêm de outros estados nordestinos, como o Maranhão e o Ceará.
Tudo começou em 1966, quando o músico e professor de escola pública Jeová Matos Rodrigues, conhecido no Piauí como Vaqueiro Jeová, migrou com sua família para Fortaleza, capital do Ceará. Ali viveu boa parte da adolescência, na periferia, assistindo sua mãe vender comida pelas ruas para sustentar a família. Inspirado pelo pai que era músico e pela vontade de mudar de vida, começou a lutar pelo seu sonho de se tornar professor de música.
“Via amigos se entregarem para as drogas, morrerem, e eu queria algo diferente para mim. Conheci cedo o poder da música e sabia da transformação que ela poderia fazer na minha vida e na vida de outras pessoas”, relembrou Jeová.
O vaqueiro conseguiu idealizar seu projeto ainda no Ceará. Começou a dar aulas de música gratuitamente para crianças e adolescentes da região, até que em 1986 voltou para o Piauí e se estabeleceu na comunidade Vila Irmã Dulce, onde reside até hoje, construiu dentro da sua própria casa a sede do Compasso Matuto, e atualmente ministra aulas para mais de 40 crianças.
” É um forma de afastar essa garotada das drogas, álcool e de todo tipo de criminalidade, que estão bem presentes na nossa região.
Jeová, professor de música na Vila Irmã Dulce, comunidade no interior do Piauí.
“Aqui o acolhimento é completo. Como professor, me preocupo em dar uma boa aula de música, mas também prezo a disciplina, promovo a integração dos mesmos na comunidade e trabalho a questão da religiosidade (oramos antes e depois da aula como forma de agradecimento pela oportunidade de estarmos aqui). Além disso, é um forma de afastar essa garotada das drogas, álcool e todo tipo de criminalidade, que estão bem presentes na nossa região.
A comunidade fica cerca de 15 quilômetros do centro de Teresina, com cerca de 37 mil habitantes (cerca de 6500 famílias). A maioria das crianças que vive no local carece da presença paterna, materna, ou ambas. Por isso, segundo Jeová, inseri-las no mundo da música vai além de torná-las profissionais.
Todas as crianças podem participar das oficinas de percussão e teoria musical, mas passam previamente por uma seleção feita pelo próprio Jeová. Durante esse teste, é escolhido o instrumento mais adequado para cada uma delas. As aulas são semanais e também há turmas para adolescentes e idosos.
O ritmo ensinado por Jeová é o samba, mas os alunos também aprendem noções de forró, baião e outros estilos musicais. “Temos dos mais diversos perfis de alunos, inclusive muitos migrantes de outros estados, em especial do Maranhão, Pará e Ceará”, afirmou.
“Todos chegam aqui tímidos, a maioria com problemas em casa ou depressivos, mas quando começam o curso melhoram a auto estima, a confiança em si mesmos e muitas vezes se aproximam dos familiares, que passam a acompanhar as aulas e as apresentações que fazemos pela comunidade”, ressaltou o vaqueiro.
Jeová mantém o projeto através de doações de pessoas físicas e jurídicas e parcerias com pequenas empresas privadas. Com esse apoio, consegue pagar as despesas básicas, comprar lanches para as crianças e fazer a manutenção dos instrumentos.
Agora, aos 55 anos com a vida estabilizada ao lado da família, os sonhos para o futuro do vaqueiro são todos ligados ao crescimento do projeto.
“Quero muito conseguir apoio financeiro suficiente para comprar um meio de transporte. Uma van seria adequada para levar meus alunos nas apresentações fora da comunidade e até mesmo organizarmos atividades de lazer. Alguns deles nunca viram o mar. E não precisa nem ir tão longe, alguns deles nem conhecem o teatro que fica no centro de Teresina. Todos aqui tem muito talento e quero poder mostrar isso para o Brasil e quem sabe para o mundo todo”, concluiu Jeová.
*Ao contrário do que constava em versão anterior desta publicação, o nome de nascimento do Vaqueiro Jeová é Jeová Matos Rodrigues. O texto já foi corrigido