Um simples atendimento médico pode se tornar um grande desafio para um imigrante. E foi a partir de uma situação como essa que duas instituições uniram forças e criaram O projeto I Hear U (Eu Te Escuto, em português).
A história começou em outubro de 2021. Uma mãe síria em Curitiba (PR), atendida pela instituição Círculos de Hospitalidade — que fica em Florianópolis (SC) — estava com a filha apresentando infecção respiratória. A coordenadora Bruna Kadletz, que é dentista de formação, notou que o protocolo de tratamento prescrito pelo hospital por onde a mulher e a menina passaram não estava completo.
Foi então que Kadletz pediu ajuda para um médico otorrinolaringologista sírio residente na capital paranaense, o Mohamad Feras, da Clínica Síria. Ele atendeu novamente a criança e prescreveu um novo tratamento, mais adequado, gerando melhora quase que imediata.
“Após a consulta, a mãe relatou que era a primeira vez nos 4 anos que morava no Brasil que ela entendia o médico — que falava o árabe, sua língua materna. Foi nesse momento que me dei conta da importância em criar um projeto que oferecesse consulta médica presencial e online, para pessoas imigrantes e refugiadas que têm dificuldade para acessar o sistema de saúde e a atenção especializada”, contou Kadletz.
Desde então já foram atendidas 51 pessoas de nove nacionalidades diferentes, residentes em oito Estados brasileiros.
Como funciona
Para ter acesso ao serviço, o imigrante deve preencher um formulário, disponível neste link, informando sua queixa principal. Caso o paciente esteja em Curitiba ou em uma cidade próxima , o atendimento ocorre presencialmente na clínica do Dr. Feras. Caso a pessoa atendida esteja em um local mais distante, inclusive em outro Estado, uma plataforma online é mobilizada para permitir a consulta em formato remoto.
Após a consulta, a Círculos de Hospitalidade entra em contato novamente para fazer o acompanhamento, perguntando se a pessoa precisa de ajuda para comprar os medicamentos prescritos — caso não sejam entregues na farmácia do Posto de Saúde.
“Em alguns casos, a Círculos de Hospitalidade compra a medicação online e a entrega é feita na casa da pessoa”, explica Kadletz, sobre o passo seguinte no atendimento do projeto.
Antes da variante Ômicron da Covid-19, as principais demandas eram relacionadas à especialidade de otorrinolaringologia, como perda de audição, infecção no ouvido, rinite alérgica, zumbido, dores de cabeça e queixas relacionadas ao sono. Contudo, a partir do início de 2022, assim como no sistema de saúde como um todo, as queixas se concentraram nos sintomas relacionados a Covid-19 e gripe.
Retribuição e proximidade
Para o Dr. Feras, que vive no Brasil há nove anos, atender pessoas que passaram pela mesma situação que ele é como atender a um chamado que vai além da medicina.
“Quando saí da Síria e cheguei ao Brasil, senti exatamente o que muitos refugiados estão sentindo. Sinto-me ligado aos refugiados que são meus pacientes de várias maneiras. Eu vejo minha história em cada um deles. E essa conexão abre caminho para a empatia e um atendimento médico humano”.
O projeto conta com apoio financeiro da Tides Foundation, sediada nos Estados Unidos. Mas há o desejo futuro de expandir os atendimentos para outras especialidades e ampliar a rede de cuidados de saúde – incluindo, por exemplo, acesso a exames complementares e medicação, já que a demanda por tratamento médico especializado e na língua materna do público refugiado e imigrante é crescente.
Por enquanto o I Hear U oferece atendimentos de clínico geral e otorrinolaringologia, especialidade do médico sírio. Para ele, além da identificação com os pacientes, oferecer esse serviço é uma forma de Fares retribuir a possibilidade de exercer sua profissão no Brasil.
“Após anos de muita luta e desafios, validei meu diploma de médico e minha especialização. Desde então, trabalho como médico no Brasil. Agora, a vida me abençoou com a possibilidade de retribuir. Trabalhar no Projeto I Hear U, levando assistência médica e tratamento a pessoas como eu, que um dia foram obrigadas a deixar suas vidas para trás e arriscar tudo para recomeçar em terras estrangeiras, é também uma forma de retribuir tudo o que conquistei”.
Ação na Grécia e expansão
Além da iniciativa em prol de imigrantes no Brasil, o projeto I Hear U também tem o objetivo de se somar a missões humanitárias onde o atendimento médico se faz necessário. Foi assim que Kadletz e Feras fizeram uma extensão do I Hear U em um Campo de Refugiados localizado em Atenas, na Grécia, em dezembro passado.
Durante a missão, foi prestada assistência médica a famílias refugiadas de 6 nacionalidades diferentes – afegãs, angolanas, congolesas, iraquianas, somalis e sírias – que vivem de forma precária e com pouco ou nenhum acesso ao sistema de saúde grego e atendimentos médicos.
“A situação no campo foi impactante. Lá, moram cerca de 3 mil pessoas, algumas em containers metálicos e outras em barracas. Um grupo de mulheres congolesas nos contaram que dormiam na barraca sem cobertores, no auge do inverno grego. Muitas pessoas, apesar de precisarem de atendimento e orientações médicas, queriam apenas ser vistas e escutadas. Por isso, o acolhimento humanizado e a escuta ativa são pilares essenciais nesses projetos, não é somente sobre prescrever medicação ou resolver questões documentais, é sobre reconhecer a humanidade do outro”, relatou Kadletz.
O plano do projeto é promover outras ações semelhantes, levando atenção médica e acolhimento a outras localidades dentro e fora do Brasil.
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