publicidade
sexta-feira, junho 13, 2025

Quando o Estado falha na tramitação de pedidos e “culpa” os imigrantes: o caso de Portugal

Não se trata de defender “regularizações automáticas” ou ignorar falhas nos processos migratórios. Trata-se de colocar o Direito a serviço da dignidade humana, e não da racionalidade punitiva

Por Bianca Medeiros

“A pressa do Estado português em resolver a ‘fila’ migratória ameaça transformar vidas em estatísticas, e direitos em burocracia.” E maio inicia com os noticiários portugueses estampando em manchetes que soaram como um alarme: “Portugal notifica mais de 4.500 imigrantes para deixarem o país em 20 dias” (SIC Notícias, 2025). A decisão veio após a Agência para a Imigração e Mobilidade (AIMA) indeferir 18 mil pedidos de legalização, em meio a uma reestruturação que visa limpar os atrasos herdados do SEF.

O Governo alega que está apenas cumprindo a lei. E o questionamento é: que lei, a pá? Estaria Portugal, ao mesmo tempo, violando os princípios fundantes do Estado de Direito, os direitos humanos dos migrantes e suas obrigações internacionais? A justificativa apresentada pelo Ministro da Presidência, António Leitão Amaro, parece tecnocrática: “É preciso resolver os atrasos herdados e respeitar a lei”. No entanto, a iniciativa surge às vésperas de um ciclo eleitoral completamente voltado para os discursos de endurecimento migratório, mesmo em países com tradição humanista como Portugal.

A teoria política contemporânea alerta para essa correlação entre ciclos eleitorais e o endurecimento discursivo sobre imigração. Bonnie Honig, em Democracy and the Foreigner (2001), analisa como o “estrangeiro” funciona como figura simbólica da instabilidade e da ameaça, instrumentalizada politicamente para reforçar a identidade nacional e o controle soberano. Assim, não se trata apenas de “gestão pública”: trata-se de construção de narrativas eleitorais, muitas vezes excludentes. Trump ta aí pra provar isso!

A questão é, que na perspectiva jurídica, decisões administrativas que impactam diretamente a vida de milhares de pessoas devem respeitar os princípios constitucionais da legalidade, proporcionalidade, contraditório e ampla defesa (art. 266.º e 268.º da Constituição da República Portuguesa). Ao notificar imigrantes para abandonarem o país em apenas 20 dias, o Estado coloca esses direitos em xeque.

Como ensina Jürgen Habermas (1992), o Direito não pode se limitar à normatividade abstrata: ele deve estar ancorado na racionalidade comunicativa, garantindo que os afetados pelas normas possam participar de sua justificação. A decisão da AIMA não dialoga com os sujeitos afetados e só impõe uma consequência irreversível sob o pretexto de legalidade formal.

A expulsão de milhares de imigrantes em situação de espera processual contraria também a lógica empírica dos dados. Segundo o Relatório Mundial sobre Migração 2024 da OIM/ONU, Portugal é hoje um dos países europeus com maior dependência demográfica da imigração. A população estrangeira contribui para o rejuvenescimento etário, a sustentabilidade da Segurança Social e o dinamismo de setores como construção civil, cuidados e agricultura.

Dados do INE de 2023 mostravam que mais de 60% dos nascimentos em Lisboa e Setúbal envolvem pelo menos um progenitor estrangeiro. A expulsão em massa, nesse contexto, não apenas desumaniza vidas, também fragiliza a própria sustentabilidade futura do país.

Nesse sentido, Saskia (2014), assertiva que os Estados contemporâneos têm promovido novas formas de exclusão que vão além da marginalização clássica: tratam-se de “expulsões sistêmicas” motivadas por racionalidades econômicas e securitárias, mas revestidas de linguagem legal e administrativa.

Portugal tem sido frequentemente elogiado por organismos internacionais pela sua política migratória humanista e progressista como no caso do Relatório do Special Rapporteur on the Human Rights of Migrants, da ONU, após a visita oficial ao país em 2022. Na ocasião, o relator Felipe González Morales destacou o “modelo português de regularização extraordinária como boa prática internacional”. A guinada recente, no entanto, levanta preocupações. A ONU lembra que a regularização de migrantes é uma obrigação implícita no princípio da não discriminação (art. 26 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos) e no direito à vida familiar e à dignidade (arts. 17 e 23).

Ou seja, quando o Estado falha por anos na tramitação dos pedidos e, em seguida, “culpa” os imigrantes por irregularidades criadas pelo próprio sistema, há uma clara inversão da lógica jurídica: a vítima vira réu, e a omissão estatal transforma-se em base para punição. Os indeferimentos em massa, como os realizados pela AIMA, suscitam outro problema fundamental: a ausência de fundamentação individualizada. No Direito Administrativo português e europeu, decisões que afetam direitos individuais devem ser devidamente motivadas. O artigo 124.º do CPA (Código do Procedimento Administrativo) exige motivação clara, precisa e dirigida ao caso concreto.

Estudos recentes de Catarina Reis Oliveira e Pedro Góis, publicados no Journal of Ethnic and Migration Studies (2023), mostram um padrão de decisões genéricas e mal fundamentadas nos indeferimentos de processos migratórios em Portugal — muitas vezes baseadas em critérios voláteis como “capacidade de sustento” ou “inserção socioprofissional”, sem critérios objetivos. É nesse ponto que a arbitrariedade se insinua como disfarce de eficiência: quando milhares de vidas são avaliadas com base em fórmulas padronizadas, a Justiça transforma-se em algoritmo, e o humano desaparece.

Outro aspecto é a dimensão histórica e colonial da política migratória portuguesa. Durante décadas, Portugal celebrou o “mito do lusotropicalismo” — a ideia de que os portugueses seriam mais tolerantes com miscigenação e mais abertos à diversidade. Hoje, muitos dos migrantes afetados pela decisão da AIMA vêm justamente de países lusófonos: Brasil, Guiné-Bissau, Angola, Moçambique, Cabo Verde. A expulsão de milhares deles revela uma contradição entre o discurso simbólico da CPLP e a prática excludente do controle de fronteiras.

É aquilo, né?! Os Estados pós-coloniais frequentemente reproduzem hierarquias coloniais através de novas formas de controle da vida e da morte dos “outros” — inclusive dentro do próprio território estatal.

Organizações como a Associação Solidariedade Imigrante e o CPR (Conselho Português para os Refugiados) denunciam o aumento de quadros de ansiedade, depressão e adoecimento psicossocial entre os notificados.

As Ciências Sociais associam essa conduta estatal de promoção de insegurança jurídica à precarização da subjetividade. Judith Butler, em Frames of War (2009), alerta que o Estado define quem é “vida digna de ser vivida” ao categorizar juridicamente sujeitos como refugiados, ilegais ou regulares. O que está em jogo aqui não é apenas cidadania formal: é a própria ontologia social do indivíduo.

Não se trata de defender “regularizações automáticas” ou ignorar falhas nos processos migratórios. Trata-se de colocar o Direito a serviço da dignidade humana, e não da racionalidade punitiva. Como lembra Boaventura de Sousa Santos, em O Direito dos Oprimidos (2002), o Direito pode ser tanto instrumento de exclusão como de emancipação, dependendo de sua apropriação pelos atores sociais e políticos.

Portugal tem a oportunidade histórica de consolidar uma política migratória que não seja apenas “tolerante” ou “eficiente”, mas efetivamente inclusiva, transparente e humanista — à altura dos compromissos internacionais que subscreve e da sua própria história de migração. Mas, tem preferido fortalecer a crise revelada pela decisão da AIMA e do governo português que vai muito além de 18 mil indeferimentos. Ela revela a tensão entre legalidade e justiça, entre soberania e direitos humanos, entre o passado colonial e o futuro democrático.

A resposta do Estado a essa crise definirá os contornos da sociedade portuguesa nas próximas décadas, mas sobre isso acredito que o próprio Estado já decidiu. Afinal de contas, a dignidade não se notifica com prazos de 20 dias.

Sobre a autora

Bianca da Silva Medeiros é Doutoranda em Direito na Universidade Nova de Lisboa – UNL, mestre em Ciências da Sociedade com ênfase em direitos humanos, sociedade e cidadania ambiental pela Universidade Federal do Oeste do Pará – UFOPA. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Oeste do Pará – Ufopa. Especialista em Direito Constitucional Aplicado e Relações Internacionais com ênfase em Direito Internacional Público. Pesquisadora, Consultora Jurídica e Gestora de Projetos no Terceiro Setor. Amazônida, latina, filha da educação pública e defensora dos direitos humanos.

Referências

Habermas, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

Butler, Judith. Frames of War: When Is Life Grievable? London: Verso, 2009.

Sassen, Saskia. Expulsions: Brutality and Complexity in the Global Economy. Harvard University Press, 2014.

Honig, Bonnie. Democracy and the Foreigner. Princeton University Press, 2001.

Mbembe, Achille. Necropolitics. Duke University Press, 2019.

Santos, Boaventura de Sousa. O Direito dos Oprimidos. Cortez, 2002.

Oliveira, Catarina Reis; Góis, Pedro. “Migration governance in Portugal: trends and paradoxes”, Journal of Ethnic and Migration Studies, 2023.

Organização Internacional para as Migrações (OIM). World Migration Report 2024. Geneva: IOM, 2024.

SIC Notícias, 03/05/2025. “AIMA recusou 18 mil pedidos”.

Público, 06/05/2025. “Estado quer ‘expulsar’ mais depressa do que regularizar”.

Publicidade

Últimas Noticías