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terça-feira, novembro 11, 2025

Reflexões e inquietações sobre ser mulher grávida e imigrante

Quando a mulher que gesta carrega no corpo a marca da migração, o preconceito se aprofunda e o atendimento se encolhe significativamente

Por Bianca Medeiros

É comum que os meus textos nasçam da relação entre as minhas vivências: ser imigrante, ser trabalhadora, pesquisadora e estudante. Contudo, mais recentemente, uma nova dimensão passou a organizar minha percepção sobre o mundo: a maternidade. Para esta que vos escreve, a maternidade é um milagre pessoal e digo milagre nos muitos sentidos que a palavra se revela, tanto no divino quanto na inexplicabilidade das leis da natureza, mas também revelou uma janela muito incômoda sobre como observar o sistema, o de gestar.

Ser uma mulher grávida e imigrante em um suposto país de primeiro mundo é descobrir que as promessas de universalidade, acesso e equidade não cabem, inteiras, dentro das paredes de um hospital. Mais ainda: é perceber que, quando a mulher que gesta carrega no corpo a marca da migração, o preconceito se aprofunda e o atendimento se encolhe significativamente. Mas vamos lá!

Teoria e prática

Portugal construiu, nas últimas décadas, uma narrativa ilusória e muito confortável de que é uma referência em saúde materna. De fato, os indicadores consolidados pelo projeto europeu Euro-Peristat revelam uma das taxas de mortalidade materna e neonatal mais baixas do continente (EURO-PERISTAT, 2022). Só que números agregados funcionam como vitrines e é possível ter bons indicadores e, ao mesmo tempo, manter práticas desumanizantes, desigualdades territoriais e barreiras estruturais que comprometem a dignidade do parto.

A meu ver, a mais persistente dela é a medicalização excessiva. Estudos nacionais demonstram que Portugal historicamente apresentou taxas muito elevadas de episiotomia — alcançando, em certos momentos, mais de 70% dos partos — enquanto países como Dinamarca mantinham índices abaixo de 5% (TEIXEIRA et al., 2022).

Apesar de uma redução recente, a prática continua comum, especialmente em partos instrumentais, revelando uma obstetrícia ancorada em rotinas herdadas mais do que em evidência científica. A análise comparativa do consórcio Euro-Peristat publicada no BJOG reforça que fatores organizacionais e culturais influenciam de forma decisiva as condutas (MACFARLANE et al., 2016). Isso significa que o parto, em Portugal, ainda está muitas vezes mais alinhado a protocolos intervencionistas do que à valorização da fisiologia e da autonomia da mulher.

Outro dado que rompe a imagem homogênea de excelência são as desigualdades de acesso e qualidade. Pesquisas como a de Costa et al. (2022) apontam heterogeneidades significativas na assistência materna e neonatal entre diferentes regiões do país. E essas diferenças não são neutras: mulheres imigrantes, racializadas ou residentes em áreas menos centrais tendem a enfrentar mais barreiras, desde a dificuldade de deslocamento até o acolhimento muito menos empático.

Almeida et al. (2014) evidenciam que, no caso de migrantes, há lacunas graves na comunicação, ausência de mediação cultural e menor participação nas decisões clínicas. Na prática, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) é formalmente universal, mas na vivência concreta, o “dentro” é mais frio e burocrático para algumas.

Além disso, a crise estrutural do atendimento se torna ainda mais evidente quando se observam os efeitos do fechamento e da reconfiguração de maternidades. Desde os anos 1980, Portugal iniciou um processo de regionalização dos cuidados obstétricos, que se intensificou em 2006 com o encerramento de unidades de baixo volume (MATOS, 2015).

A justificativa técnica era fortalecer a segurança, concentrando recursos humanos e tecnologia em centros de referência. No entanto, estudos sobre acessibilidade espacial, como o de Weiland et al. (2021), demonstram que tal política, sem medidas compensatórias, aumenta o tempo de deslocamento e pressiona a “última milha” do acesso. Isso não é uma abstração geográfica: minutos extras podem significar partos improvisados em ambulâncias, estacionamentos ou corredores de hospital.

Casos recentes em Portugal, documentados pela imprensa e registrados como eventos sentinela, mostram mulheres dando à luz em corredores de unidades hospitalares com urgências obstétricas fechadas temporariamente ou sobrecarregadas. Esses eventos, além de evidenciarem falhas logísticas, expõem um sistema que não mantém capacidade elástica para absorver picos de procura sem sacrificar a dignidade e a segurança.

Violência obstétrica

No campo das experiências subjetivas, o termo “violência obstétrica” ganhou, nos últimos anos, reconhecimento acadêmico e jurídico. Aprovada em 31 de março de 2025, a Lei n.º 33/2025 definiu legalmente a violência obstétrica em Portugal, proibiu práticas sem justificativa clínica como episiotomias de rotina e determinou que desvios ao plano de parto sejam justificados e registrados.

A lei alterou a Lei n.º 15/2014 (Direitos e Deveres do Utente) e dialoga com a Lei n.º 110/2019, que já previa garantias durante todo o ciclo gravídico-puerperal (PORTUGAL, 2025a; PORTUGAL, 2019). É, sem dúvida, um marco simbólico e normativo.

Contudo, como argumenta Aires (2025) em estudo qualitativo sobre violência obstétrica no contexto português, nomear o problema não é suficiente: é preciso dotar o sistema de recursos para fiscalizar e punir práticas abusivas, além de formar profissionais para atuar em chave de respeito, comunicação e consentimento informado. Sem isso, corre-se o risco da “lei bonita no papel”, incapaz de atravessar a barreira das rotinas.

Mas tem mais, essa violência não é distribuída de forma aleatória: mulheres migrantes e racializadas apresentam maior probabilidade de relatar desrespeito, abandono e discriminação (AIRES, 2025). As narrativas coletadas nesses estudos são contundentes: planos de parto ignorados, solicitações de alívio de dor desconsideradas e ausência de acompanhamento informado. Tais relatos corroboram a análise de Ferrão et al. (2022) de que a violência obstétrica é uma forma de violência de gênero, enraizada em relações assimétricas de poder e em estruturas institucionais que normalizam a intervenção sem consentimento.

As fragilidades se estendem ao campo da saúde sexual e reprodutiva. Portugal legalizou o aborto a pedido até a 10ª semana de gestação em 2007, mas a objeção de consciência, amparada em lei, permite que médicos e instituições se recusem a realizar o procedimento. Isso, na prática, restringe o acesso, especialmente em regiões menos centrais e para mulheres estrangeiras. Dados de 2022 mostram que quase 29% dos abortos realizados no país foram em mulheres não portuguesas, indicando que imigrantes recorrem mais frequentemente à interrupção voluntária da gravidez e podem enfrentar barreiras duplas: legais e práticas (PORTUGAL, 2023).

Paradoxo

Nesse cenário, falar apenas de bons indicadores é insuficiente. Portugal vive um paradoxo: por um lado, consolida estatísticas elogiáveis e uma rede hospitalar que, no agregado, salva vidas; por outro, mantém zonas de sombra onde a medicalização excessiva, a sobrecarga de serviços, o fechamento de unidades e a negligência institucional corroem a promessa de universalidade. A literatura internacional reforça que leis e protocolos, isolados, não alteram culturas organizacionais nem superam desigualdades estruturais (DE FREITAS et al., 2020).

Sair desse impasse exige mudanças em quatro frentes interdependentes. Primeiro, transformar a evidência em governança clínica: usar sistemas como o Euro-Peristat não apenas para relatórios anuais, mas para monitorar e ajustar práticas em tempo real, inclusive com metas de redução de intervenções não indicadas. Segundo, reorganizar a rede com base não apenas em volume e segurança técnica, mas também em acessibilidade espacial e temporal, evitando que o ganho estatístico de um centro de excelência se perca no trajeto de 90 quilômetros até ele. Terceiro, institucionalizar a interseccionalidade como princípio: investir em mediação cultural, formação antirracista e protocolos de comunicação que respeitem a pluralidade linguística e cultural das utentes. Quarto, dar à Lei n.º 33/2025 instrumentos de implementação e fiscalização efetivos, com indicadores públicos e auditorias independentes.

Enquanto partos seguirem acontecendo em corredores e ambulâncias por falta de vagas, enquanto mulheres tiverem planos de parto ignorados e enquanto leis não se converterem em práticas fiscalizáveis, Portugal continuará a viver entre dois discursos: o da excelência estatística e o da precariedade cotidiana. E para quem atravessa essa precariedade com um bebê prestes a nascer, pouco importa se o país aparece bem colocado em relatórios europeus: o que importa é ter um lugar seguro, digno e respeitoso para parir. Daqui deste lado, só muito medo.

Sobre a autora

Bianca da Silva Medeiros é Doutoranda em Direito na Universidade Nova de Lisboa – UNL, mestre em Ciências da Sociedade com ênfase em direitos humanos, sociedade e cidadania ambiental pela Universidade Federal do Oeste do Pará – UFOPA. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Oeste do Pará – Ufopa. Especialista em Direito Constitucional Aplicado e Relações Internacionais com ênfase em Direito Internacional Público. Pesquisadora, Consultora Jurídica e Gestora de Projetos no Terceiro Setor. Amazônida, latina, filha da educação pública e defensora dos direitos humanos.

Referências

AIRES, E. Obstetric Violence Against Women in the Portuguese Context: An Exploratory Qualitative Study. Violence Against Women, v. 31, n. 5, p. 1074-1096, 2025. DOI: 10.1177/10778012221140563.

ALMEIDA, L. M. et al. Inequities in access to healthcare among migrant and native women in Portugal: challenges in maternal health. Cadernos de Saúde Pública, v. 30, n. 3, p. 533-544, 2014. DOI: 10.1590/0102-311X00105113.

COSTA, R. et al. Regional differences in the quality of maternal and neonatal care in Portugal. International Journal of Gynecology & Obstetrics, v. 159, n. 1, p. 204-211, 2022. DOI: 10.1002/ijgo.14507.

DE FREITAS, C. et al. Involvement in maternal care by migrants and ethnic minorities: a narrative synthesis. Public Health Reviews, v. 41, n. 11, 2020. DOI: 10.1186/s40985-020-00124-4.

FERRÃO, A. C. et al. Obstetric Violence: Analysis of the Concept. Revista de Enfermagem Referência, v. 5, n. 1, p. e21035, 2022. DOI: 10.12707/RV21035.

MACFARLANE, A. J. et al. Wide differences in mode of delivery within Europe: risk-stratified analyses of aggregated routine data from the Euro-Peristat study. BJOG, v. 123, n. 4, p. 559-568, 2016. DOI: 10.1111/1471-0528.13284.

MATOS, A. R. The controversy over the restructuring of perinatal emergency services in Portugal (2006–2007). História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 22, n. 3, p. 1037-1052, 2015. DOI: 10.1590/S0104-59702015000300016.

PORTUGAL. Lei n.º 110/2019, de 9 de setembro. Diário da República n.º 173/2019, Série I.

PORTUGAL. Lei n.º 33/2025, de 31 de março. Diário da República n.º 63/2025, Série I.

PORTUGAL. Relatório de Interrupção Voluntária da Gravidez 2022. Direção-Geral da Saúde, 2023.

TEIXEIRA, C. et al. Time trends in episiotomy and severe perineal tears in Portugal: a nationwide analysis. BMC Pregnancy and Childbirth, v. 22, n. 1, p. 112, 2022. DOI: 10.1186/s12884-022-04423-w.

WEILAND, M. et al. Spatial Access Matters: Policy change and its effects on maternal care in Portugal. International Journal of Environmental Research and Public Health, v. 18, n. 16, p. 8442, 2021. DOI: 10.3390/ijerph18168442.

EURO-PERISTAT. European Perinatal Health Report 2015-2019. Paris: Euro-Peristat Project, 2022.

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