Por Natália de Oliveira Ramos
De Utrecht (Holanda)
Enquanto o mundo do futebol aguarda o dia 21 de novembro, data de início de mais uma Copa do Mundo, no Qatar, a preparação para o evento esportivo carrega consigo um custo humano pesado. Desde o início das obras relacionadas ao Mundial, organizações internacionais que atuam pela defesa dos Direitos Humanos acusam a Fifa e o país anfitrião de submeterem imigrantes a trabalho análogo a escravidão – suborno, condições precárias de alojamento, ausência de direitos trabalhistas e humanos.
Também recai sobre a organização da Copa do Mundo a morte de ao menos 6,5 mil imigrantes desde o início das obras – uma média de 12 mortes por semana desde dezembro de 2010. A maioria das vítimas são sul-asiáticas: da Índia, Paquistão, Nepal, Bangladesh e Sri Lanka.
Uma investigação do jornal britânico Guardian revelou que é provável que o número de mortes esteja subnotificado, pois não há informações de países que enviam muitos trabalhadores, como Filipinas e Quênia, por exemplo. Óbitos ocorridos nos últimos meses de 2020 também não estão incluídos.
Para se ter uma ideia, durante a fase aguda da pandemia de Covid-19, o governo qatari proibiu a saída dos campos onde ficam os alojamentos. Com isso, milhares ficaram aglomerados em dormitórios com banheiros insalubres. Já as mulheres ficaram mais suscetíveis a abusos sexuais e violência doméstica.
Estrutura faraônica
Quando foi anunciado como anfitrião do evento (em 2010), havia apenas um estádio esportivo no país. Por outro lado, a promessa, que acabou cumprida, era de se erguer uma estrutura faraônica para que o Qatar pudesse sediar (e estrear) na Copa do Mundo.
Mais de uma década depois – e um investimento de 200 bilhões de dólares -, não só sete estádios climatizados passaram a fazer parte da arquitetura qatari, como também uma cidade, Lusail, projetada para a final da Copa. Além da construção de um aeroporto, rodovias, sistemas de transporte público, um porto e uma centena de hotéis de luxo.
Um país de pequenas dimensões territoriais (menor que o Estado de Sergipe), que faz fronteira com a Arábia Saudita, o Qatar possui o produto interno bruto (PIB) per capita número um do mundo, consequência de extensas reservas de gás natural. Ainda assim, sua população de apenas 300 mil habitantes (na época) não poderia ter se preparado para a Copa do Mundo sozinha.
A alternativa foi contratar mão-de-obra dos países mais pobres do mundo. Impulsionada pelo “boom” das obras para a Copa, a população atual do Qatar é de quase 2,9 milhões de pessoas, das quais 90% são nascidas fora do país.
Sob o sol do Qatar
Entre os meses mais quentes do ano, os termômetros no Qatar marcam 35 graus já nas primeiras horas do dia. Pela tarde, o aumento da temperatura faz a sensação térmica passar de desconfortável para insuportável e, logo, insalubre.
Devido ao calor, a Copa do Mundo será realizada pela primeira vez em novembro, no inverno qatari. Desde 1930, o evento acontece entre junho e julho, que coincide com o verão europeu e o intervalo entre as temporadas de futebol na maioria dos países dos Velho Continente. Mas a ideia de manter a tradição no Qatar foi tida como descabida, até mesmo pela Fifa.
Como resultado das mudanças climáticas, as temperaturas no Golfo estão aumentando duas vezes mais que a média global, chegando regularmente a 50°C.
No entanto, já acima de 40°C o mecanismo natural do corpo começa a desintegrar, podendo causar mortes súbitas, explica o cardiologista nepalês Ratna Mani Gajurel.
O especialista acrescenta que mesmo indivíduos saudáveis sofrem estresse térmico e insolação. A exemplo do que aconteceu em setembro de 2019, quando o Qatar sediou a ‘World Athletics Championships’.
As corridas demonstraram que mesmo atletas de alta performance foram vencidos pelo calor extremo. Um atrás do outro foram colapsando, em uma competição à meia-noite.
A BBC Árabe produziu o documentário ‘Qatar: Killer Heat Cripples Workers’ (O calor mata os trabalhadores, em inglês) que aborda, sobretudo, doenças renais em obreiros imigrantes no Qatar. Segundo o especialista Rishi Kumar Kafle, do Centro Nacional de Nefrologia de Kathmandu, no Nepal, a exposição a altas temperaturas compromete o funcionamento dos rins.
A maioria dos imigrantes que retornam doentes ao Nepal não êcondições financeiras para custear o tratamento, o que recai sobre o governo do país, um dos mais pobres do mundo.
Entre os ex-trabalhadores do Qatar que estão em hemodiálise no Nepal, Hen Bahandur Rana foi contratado para trabalhar em um navio e à BBC Árabe detalhou os abusos que sofreu.
“Não tinha oxigênio, mas eu não podia parar. Mesmo suado, eles não nos deixavam parar nem para beber água”, relembrou. Logo, os sintomas de insuficiência renal apareceram: “Eu tinha muita dor de cabeça, minha urina estava espumosa, mãos e pernas suando”, disse. Hen Bahandur assegurou que, ainda no Qatar, recebeu o diagnóstico de doença renal, mas nenhuma ajuda foi oferecida.
Apesar das evidências de violação de direitos humanos, um representante do Ministério do Trabalho qatari, Mohammed al-Obaidly, enfatizou que providências serão tomadas caso conste no atestado de óbito que a morte ocorreu em decorrência do calor. “No fim das contas é a medicina [que conta]”, sentenciou.
Reparações
Recentemente, a Anistia Internacional instou a Fifa, Qatar e demais envolvidos na realização da Copa do Mundo a pagarem o equivalente a R$ 2 bilhões para indenizar imigrantes e suas famílias. O valor é o mesmo que será distribuído às 32 seleções participantes do torneio este ano.
A Anistia sugere que o dinheiro seja investido não apenas para compensar as vítimas, mas também em iniciativas para melhorar a proteção dos trabalhadores no futuro.
A exigência faz parte do relatório ‘Previsível e evitável: Por que Fifa e Qatar deveriam remediar abusos por trás da Copa do Mundo de 2022’.
Em um trecho, o documento esclarece que “de acordo com as leis internacionais dos direitos humanos, o Qatar tem obrigação de assegurar compensação para cada abuso cometido em seu território”.
Quanto à Fifa, a Anistia enfatiza que “[a responsabilização] está alinhada com o Guia de Princípios dos Negócios e Direitos Humanos da ONU”, referindo-se a lista de procedimentos que se esperam de entes corporativos, no qual a Federação Internacional de Futebol está incluída.
Kafala: um ciclo de pobreza
O relatório Migrant Labour Recruitment to Qatar, realizado pela Universidade Hamad Bin Khalifa, em Doha, detalhou como a lei trabalhista nacional, conhecida como Kafala, dava brecha para abusos que começavam já no país de origem, submetendo imigrantes a um ciclo de pobreza.
Uns venderam pedaços de terra, outros contraíram dívidas para pagar o suborno de recrutadores em troca da vaga de emprego. Depois, foram obrigados a quitar as dívidas de viagem e acomodação.
Mas sem acesso à justiça, com a proibição de sindicatos e falta de aplicação de leis trabalhistas, ficaram à mercê de recrutadores que atrasavam ou não pagavam seus salários, impossibilitando o pagamento da dívida e fomentando o trabalho forçado.
Apesar de que a Copa tenha voltado a atenção para o Qatar, há décadas os países do Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) contam com migrantes para impulsionar suas economias, ao mesmo tempo em que abusam deles.
Estimativa mais recente da Organização Internacional do Trabalho sobre Migrantes Globais, do número total de 169 milhões de migrantes trabalhadores, os estados árabes abrigam pouco mais de 24 milhões ou 14,3%; a maioria são homens.
Embora o Qatar afirme que a Kafala tenha sido extinta em 2020, entidades que assinam o relatório dizem que ela continua em vigor em várias empreiteiras.
Isso significa que imigrantes continuam impossibilitados de mudar de emprego ou de deixar o país sem autorização de seus patrocinadores.