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quarta-feira, setembro 18, 2024

A “crimigração” em meio à criminalização de direitos humanos e movimentos sociais

A"crimigração" é um conceito que emerge da intersecção entre o direito penal e o direito de imigração, abordando como o controle migratório e a criminalização dos imigrantes se fundem em uma única política repressiva

Por Bianca Medeiros

A criminalização de defensores de direitos humanos e de movimentos sociais, particularmente no Brasil, tem se tornado um fenômeno cada vez mais complexo, indo além da imputação penal direta e envolvendo uma série de estratégias de deslegitimação tanto a nível nacional quanto internacional.

Desde a publicação de relatórios sobre a situação dos defensores, especialmente o de 2005, ficou claro que a criminalização das pessoas defensoras de direitos humanos, sobretudo de pessoas envolvidas com movimentos sociais ganhou centralidade no cenário político nacional. A adoção de novas estratégias para reprimir protestos sociais, como o uso da força policial, a judicialização e a ação de milícias armadas, criou desafios concretos para aqueles que lutam pela efetivação de direitos e pela resistência legítima.

No que tange ao direito a migração e ao trabalho muitas vezes voluntário ligado a este direito, a criminalização acontece vinculada a ideia imputada ao imigrante como sendo um criminoso. Mas como assim? A “crimigração” é um conceito que emerge da intersecção entre o direito penal e o direito de imigração, abordando como o controle migratório e a criminalização dos imigrantes se fundem em uma única política repressiva.

Para Stumpf (2006), trata-se de uma fusão que cria uma área jurídica que trata os imigrantes não apenas como questões administrativas, mas como criminosos, amplificando o controle sobre esses grupos por meio de políticas de segurança, detenção e deportação.

Essa denominação transforma a questão migratória em um problema de segurança, resultando em um aumento da aplicação de sanções penais para situações que tradicionalmente eram tratadas no âmbito do direito administrativo. Isso também contribui para a marginalização de imigrantes, que passam a ser vistos não apenas como irregulares ou indocumentados, mas como potenciais criminosos, reforçando estereótipos e preconceitos.

Como parte desse processo, o mesmo estereótipo recai sobre aquele que se dedica a ajudar o imigrante e, por essa razão, observamos que, embora as garantias constitucionais devam proteger esses defensores, seus direitos continuam a ser sistematicamente violados.

“Modus operandi”

Essas violações, que antes podiam ser vistas como casos isolados, agora se generalizaram e se institucionalizaram, criando um padrão de repressão que baliza as ações de seus agentes. Esse modus operandi é caracterizado por ações múltiplas que incluem também, por exemplo, empresas transnacionais, que desempenham um papel importante na despolitização de lutas sociais ao deslegitimar os movimentos que denunciam as violações dos direitos econômicos, sociais e ambientais.

Como destacado por Zaffaroni e Santos (2020), a criminalização atinge principalmente os setores mais vulneráveis da sociedade, sendo facilitada por uma realidade midiática que gera violência e impede o diálogo. A criminalização de defensores de direitos humanos e de movimentos sociais, portanto, opera como uma forma de repressão tanto legal quanto simbólica, buscando esvaziar o conteúdo político dessas lutas, transformando as demandas por direitos em ameaças à ordem pública.

Foucault (2006) ajuda a esclarecer esse processo ao destacar o conceito de dispositivo da periculosidade, em que o foco da intervenção punitiva se desloca do ato criminoso para o indivíduo considerado perigoso. No contexto brasileiro, isso se manifesta em um conjunto de práticas repressivas que inclui a utilização de dispositivos jurídicos contra militantes de movimentos como o MST. Essas práticas revelam a convivência de mecanismos antigos e modernos de repressão, evidenciando que a criminalização continua a ser uma ferramenta de controle social, usada para sufocar a mobilização coletiva.

Para Vera Regina Andrade, esse movimento reforça que estamos diante de um processo de deslegitimação por meio da criminalização, no qual convergem o controle social formal (penal) e informal (midiático). Assim, o processo de criminalização não apenas tipifica criminalmente as condutas de líderes e membros de movimentos sociais, mas também constrói uma opinião pública desfavorável e criminalizadora de suas ações. (ANDRADE, 1999).

Criminalização direta e indireta

Além das formas tradicionais de criminalização, destaca-se também o uso crescente da judicialização como meio de repressão, transformando os protestos sociais em questões jurídicas e levando os movimentos a recorrer constantemente à esfera judicial. Nessa “nova” dinâmica, o discurso punitivo amplamente disseminado na sociedade acaba penalizando ainda mais os defensores de direitos humanos, que enfrentam a seletividade estrutural do sistema de justiça.

Ou seja, a criminalização não se limita à repressão direta, mas também inclui o não-reconhecimento de direitos, que afeta populações como a comunidade LGBT, e a cooptação, que busca dividir e controlar movimentos sociais oferecendo vantagens políticas ou financeiras a seus membros. Esses processos são intensificados pela omissão do Estado, que muitas vezes se mantém inerte diante de flagrantes violações de direitos humanos, especialmente contra minorias e grupos vulneráveis.

Em 2024, essa realidade é mais marcante quanto aos defensores ambientais, especialmente na Amazônia e outras regiões de conflito agrário, onde os agricultores familiares, povos indígenas e quilombolas sofrem com ameaças de morte e violência física. De acordo com dados recentes, crimes ambientais são a principal motivação para essas perseguições, sendo relatadas mais de 99 denúncias até abril de 2024.

Figuras como Alessandra Munduruku (Amazônia), uma líder indígena, continuam na linha de frente da luta contra a exploração ilegal de recursos naturais na Amazônia, enfrentando ameaças constantes. O país segue como um dos mais perigosos para ambientalistas e defensores, sendo o segundo no mundo em número de assassinatos de ambientalistas em 2022.

Além dela, figuras como Nasrin Sotoudeh (Irã) seguem na defesa dos direitos das mulheres e dos direitos humanos no Irã. Sotoudeh é advogada e foi presa diversas vezes por seu trabalho contra a imposição do hijab obrigatório e por defender prisioneiros políticos. Ela tem sido criminalizada e encarcerada em condições terríveis, enfrentando represálias do regime iraniano por sua postura crítica e acertada em defesa das prerrogativas humanitárias.

Assim como elas, Jani Silva, Malala Yousafzai, Sônia Guajajara, Anwar El Ghazi, Rafaela Pimentel, Tima Kurdi  e tantos outros fazem parte da luta por direitos humanos. Note-se, que a grande maioria das pessoas defensoras de direitos humanos são mulheres e, por essa razão são vítimas mais frequentes de violações de direitos, desqualificações e subjulgamentos que fazem delas pessoas ainda mais vulneráveis para além do próprio gênero. Mas isso já história para uma outra discussão…

Em suma, a criminalização de defensores de direitos humanos e movimentos sociais faz parte de um processo mais amplo de deslegitimação, que busca não apenas punir, mas também desmobilizar e silenciar aqueles que lutam pela justiça social. Nesse contexto, a resistência a essas estratégias de repressão se torna fundamental para a preservação dos direitos e da dignidade das populações mais vulneráveis.

Sobre a autora

Bianca da Silva Medeiros é Doutoranda em Direito na Universidade Nova de Lisboa – UNL, mestre em Ciências da Sociedade com ênfase em direitos humanos, sociedade e cidadania ambiental pela Universidade Federal do Oeste do Pará – UFOPA. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Oeste do Pará – Ufopa. Especialista em Direito Constitucional Aplicado e Relações Internacionais com ênfase em Direito Internacional Público. Pesquisadora, Consultora Jurídica e Gestora de Projetos no Terceiro Setor. Amazônida, latina, filha da educação pública e defensora dos direitos humanos. 

Referências Bibliográficas

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A construção social dos conflitos agrários como criminalidade. In: SANTOS, Rogério Dultra dos (Org.). Introdução crítica ao estudo do sistema penal. Florianópolis: Editora Diploma Legal, 1999. [pp. 23-50].

FOUCAULT, Michel, “A evolução da noção de indivíduo perigoso na psiquiatria legal do século XIX” in FOUCAULT, Michel, Ética, sexualidade, política, 2. ed., Rio de Janeiro, Forense Universi tária, 2006, p. 18

STUMPF, Juliet P. The Crimmigration Crisis: Immigrants, Crime, and Sovereign Power. American University Law Review, Vol. 56, No. 2, 2006, pp. 367-419.

ZAFFARONI, Eugenio Raul, & SANTOS, Ílison Dias dos, A nova crítica criminológica: criminolo gia em tempos de totalitarismo financeiro, Tradução de Rodrigo Murad do Prado, São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, p. 112


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